09 Junho 2021
Em um recente episódio do podcast “Jesuitical”, Eve Tushnet - autora, blogueira e palestrante católica lésbica estadunidense - conversou com os apresentadores Ashley McKinless e Zac Davis sobre a terapia de conversão e os efeitos prejudiciais que a prática pode ter sobre o bem-estar mental e espiritual de gays e lésbicas católicos.
Tushnet conversou com nove pessoas que passaram por esse tipo de terapia para escrever um artigo para a edição de junho da revista America. Nesta conversa, ela compartilha as suas histórias e sugere maneiras de a Igreja acompanhar e guiar melhor os gays católicos.
A conversa foi publicada por America, 06-06-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Você poderia primeiro definir para nós o que é a terapia de conversão?
É qualquer forma de terapia que visa como meta à mudança de orientação. O objetivo da terapia é tornar você heterossexual.
Quais são alguns dos fundamentos filosóficos por trás disso?
Uma das coisas que eu percebi quando comecei a conversar com pessoas que passaram por essa experiência de terapia formal para mudar a sua orientação era o quanto disso ressoava com coisas que eu e outros gays católicos que nunca haviam tentado terapia ou aconselhamento de qualquer tipo ouvimos. As suposições subjacentes são bastante difundidas nos círculos católicos. E incluem coisas como a ideia de que as pessoas se tornam gays por causa de experiências negativas, especialmente na infância.
Então, se você não se dava bem com outros meninos ou outras meninas, isso pode ter afastado você deles e, mais tarde, você se tornou gay. Ou você teve uma relação ruim com seu pai ou mãe. Há um monte de teorias diferentes que as pessoas apresentam. Eu acho que a ideia da história da origem é uma das principais, porque dá uma explicação de como a terapia poderia ajudar, como o conserto poderia funcionar. Mas há uma suposição subjacente mais profunda, que é a de que a experiência de ser gay é puramente negativa e não há nada que a experiência possa lhe ensinar sobre você mesmo. Não há nenhum dom que ela possa oferecer a você ou à Igreja.
Se você fizer terapia, e ela funcionar para você, você se dissolverá na maioria heterossexual. E qualquer sentimento ou experiência gay que você teve antes pode ser empurrado para o lado, não deixando nenhum vestígio naquilo que significa ser católico para você ou na sua experiência de Deus. E eu acho que todos com quem eu conversei para esse artigo passaram por um processo – independentemente de onde eles acabaram, se continuaram católicos, se ainda estavam praticando os ensinamentos da Igreja sobre ética sexual, ou se estavam em uma Igreja diferente, com um estilo de vida diferente – em que acabaram trabalhando essa crença subjacente e acabaram dizendo: “Não, há algo valioso aqui. Há algo que eu estou realmente sentindo na experiência de ser gay pelo qual eu posso ser grato, e que eu não preciso considerar como algo puramente a ser rejeitado ou do qual preciso fugir.
Quando um católico gay passa pela terapia de conversão, o que lhe está sendo dito sobre ele mesmo e quais são os efeitos perigosos que isso pode ter sobre a sua autoestima?
Uma das coisas que vários dos meus entrevistados disseram foi que parte do poder da narrativa da terapia de conversão é que, muitas vezes, ela se baseia em experiências reais que muitas pessoas tiveram. Mas não todo mundo. Eu não diria que me senti particularmente em conflito com outras meninas. Eu tenho uma boa relação com os meus pais, mas acontece que muitas pessoas de todas as orientações sexuais têm relações problemáticas com seus pais ou com seus pares do mesmo sexo. As pessoas ouvem algumas coisas que muitas vezes podem ressoar, porque se baseiam em experiências comuns.
Um entrevistado até apontou que você pode argumentar que, para algumas pessoas, é a linha do tempo que está atrasada. Você começa a perceber que é diferente dos outros meninos ou que é diferente do modelo que os seus pais desejam para você, e é isso que causa o conflito. Mas o modelo da terapia de conversão explica que o conflito é o que causa a homossexualidade. E então as pessoas ouvem isso e pensam: “Bem, eu tenho as duas coisas”.
Isso reforça a ideia delas mesmas como essencialmente carentes, e os conflitos que elas têm são exclusivos delas, porque fazem parte desse grupo estigmatizado e muitas vezes são pressionadas pelo seu terapeuta para manter em segredo. Isso se torna o foco de um profundo sentimento de inadequação.
O que acontece então? Você fez todas essas coisas e ainda está “quebrada”. Como a pessoa fica diante de tudo isso?
Várias pessoas disseram basicamente a mesma coisa: “Eu tentei todas essas coisas. Eu fui para a terapia. Eu namorei alguém do sexo oposto. Eu busquei uma vocação religiosa. Eu tentei desenvolver vínculos mais fortes com pessoas do mesmo sexo, talvez isso ajudasse. E nada disso me tornou diferente na minha orientação sexual. Eu tentei de tudo”. E, nesse ponto, as pessoas caem no desespero total e pensam no suicídio com frequência, ou desistem na direção oposta. Elas dizem: “Bem, o que quer que seja certo para mim, não será o que essas pessoas estão me dizendo”.
Todas as pessoas que eu entrevistei tiveram que reconstruir suas vidas espirituais praticamente do zero, incluindo aquelas que ainda eram católicas praticantes. Porque aquilo que lhes foi dito, que a fé católica exigia delas, havia fracassado completamente. E, nesse ponto, é como se elas dissessem: “Bem, eu não sou capaz de ser obediente. E, portanto, estou apenas separado de Deus, sem qualquer esperança de voltar”.
Alguém comentou em seu artigo: “Você não pode chamar alguém de intrinsecamente desordenado e depois esperar que nada de ruim aconteça”. Então, essa pessoa disse que teve sorte, já que “saiu do armário” relativamente ilesa. Você acha que há algo que precisa mudar fundamentalmente no modo como a Igreja fala sobre a homossexualidade, tanto a partir de fontes magisteriais oficiais, quanto também em um nível mais cotidiano?
Eu diria que há realmente duas coisas em particular que seriam muito úteis. Uma é a linguagem da “desordem”. Os intelectuais católicos dirão: “Oh, isso tem uma história longa e variada. Essa palavra, na verdade, diz respeito à lei natural e ao modo de colocar os seus desejos em ordem”. Mas, quando as pessoas ouvem isso, especialmente com relação à homossexualidade, que tem sido tratada como um transtorno psiquiátrico tanto no passado moderno, elas ouvem termos psiquiátricos.
Usamos a palavra “desordem” ou “transtorno” agora principalmente para falar sobre coisas como transtorno por abuso de substâncias ou transtorno de estresse pós-traumático, coisas que podem ser tratadas psicologicamente. E, como é verdade que os estadunidenses e muitos ocidentais trataram a homossexualidade desse modo por um bom tempo, é claro que isso é interpretado nesse contexto. E, é claro, as pessoas ouvem isso como se fosse um transtorno a ser consertado.
A segunda coisa que eu acho que faria muito bem é resgatar os modelos de amor entre pessoas do mesmo sexo, dizer que o amor entre pessoas do mesmo sexo é bom. E a Igreja tem maneiras para guiar as pessoas nisso. A Igreja não vai apenas dizer: “Você já tentou amar alguém do sexo oposto?”. Mas nós diremos que realmente temos alguma orientação e alguma sabedoria para compartilhar com a pessoa sobre amar alguém do mesmo sexo.
Eu penso nos modelos bíblicos como Davi e Jônatas, Rute e Naomi, Jesus e todos os discípulos, mas especialmente a sua intimidade com João, o discípulo amado. São imagens profundamente entrelaçadas na história da salvação. São incrivelmente ricas em ressonância teológica e dizem respeito ao amor entre dois adultos do mesmo sexo. Não são imagens conjugais, não são sexuais. São outra coisa. Há algo belo, sagrado, aberto a todos. Foi revelador quando eu pensei: “Espere um pouco, todas essas coisas já estão de fato na Bíblia”.
O que você diria para as pessoas que ficariam felizes com essa mudança de linguagem, mas que se sentem profundamente chamadas a uma relação que envolva o sexo com alguém do mesmo sexo?
Eu não pretendo ter algum tipo de argumento sobre por que o ensino da Igreja da forma que é. Por que essas coisas estão nas Escrituras da forma como estão? No fim das contas, pelo menos para mim, eu acho que tudo se resume a uma questão de confiança para muitas pessoas gays. Os cristãos prejudicaram profundamente a veracidade do testemunho da Igreja nesse ponto. Então, eu não vou culpar ninguém que diga: “Bem, eu não confio na Igreja da forma que você confia nessas coisas, desculpe”.
Eu gostaria de saber se você tem algum conselho construtivo para alguém que é gay e está lidando com muitas dessas coisas, ou para alguém que é amigo de uma pessoa gay e está percebendo que seu amigo está realmente tendo dificuldades para encaixar todas essas peças do quebra-cabeça.
Algumas das coisas principais foram simplesmente encontrar outras pessoas que haviam passado pelas mesmas experiências, ou que eram simplesmente gays e cristãs, especialmente para as pessoas com quem eu conversei que ainda estavam tentando viver a ética sexual católica ou estavam abertas a ela. Uma coisa que foi absolutamente crucial para elas foi que elas conseguiram encontrar pessoas que não tinham vergonha de ser gays, que também eram católicas praticantes. Eu não conheci ninguém que fosse gay e católico e realmente estava tentando fazer essas coisas da forma como a Igreja diz para você fazer. E eu cometi muitos erros por causa disso e fiz muitas coisas das quais me arrependo.
E eu acho que, para muitos dos meus entrevistados, também, encontrar uma comunidade é muito crucial. Chegará um momento da sua vida em que você será grato por ser gay e talvez se pergunte: “O que isso significa? Como será? Quais são as coisas nesta experiência pelas quais eu posso ser grato?”. Independentemente do que aconteça comigo, se eu encontrar as coisas que eu acho que estou procurando, se as minhas crenças mudarem, quais são as coisas que eu poderei olhar para trás e dizer: “Tudo bem, há algo de bom aqui; isso é algo pelo qual eu posso ser grato”?
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A Igreja e os modelos de amor não sexual entre pessoas do mesmo sexo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU