29 Mai 2021
A irmã Barbara Battista não era ministra do presídio e não visitava os homens encarcerados no complexo penitenciário federal em Terre Haute, Indiana, como outras Irmãs da Providência Saint Mary-of-the-Woods. Mas ela era porta-voz, e isso era o que Keith Dwayne Nelson queria.
A reportagem é de Dan Stockman, publicada por Global Sisters Report, 27-05-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Era julho de 2020, e Nelson foi marcado para ser a quinta pessoa executada em uma leva de 13 ordenadas pelo presidente Donald Trump e seu procurador geral, William Barr, entre 14 de julho de 2020 e 16 de janeiro de 2021.
Battista havia sido presa no Capitólio um ano antes, quando protestava pela forma de tratamento do governo a crianças imigrantes e, como organizadora comunitária e promotora de justiça para sua congregação, ia à imprensa local para denunciar isso e promover outras ações de justiça social ao longo dos anos.
Mais que alguém que lhe confortasse, Nelson queria uma testemunha:
“Ele estava muito ciente desde o início. Ele queria que eu dissesse ao mundo o que estava acontecendo ali (na câmara de execução)”, afirmou Battista. “Não era como, ‘Certo, faça algumas orações’ ou ‘Seja uma pessoa religiosa’... Mais que isso, o que ele queria era alguém que pudesse testemunhar e falar sobre, dar-lhes um relato do horror e da violência e o que realmente acontece lá”.
Nelson enviou o pedido por meio de outro presidiário e de uma das irmãs da pastoral carcerária da congregação: Battista poderia acompanhá-lo até a execução?
Após um processo de discernimento de 24 horas, ela concordou.
“Para uma pessoa pedir, uma pessoa naquela situação – eles são impotentes contra o Estado, o governo federal”, disse Battista. “Tudo em mim queria dizer sim... Eu simplesmente não conseguia me imaginar dizendo não”.
Battista falou com Nelson ao telefone várias vezes e, uma semana antes de sua execução em 28 de agosto, ela o visitou pessoalmente. Enquanto estava lá, Nelson perguntou se ela consideraria acompanhar um companheiro no corredor da morte: William Emmett LeCroy Jr. estava programado para morrer em 22 de setembro e estava procurando um conselheiro espiritual.
Novamente, ela disse que sim.
Com o complexo penitenciário federal a 16 km do convento, as Irmãs da Providência estão envolvidas na pastoral carcerária há gerações e trabalham para abolir a pena de morte há décadas.
Em 2001, após um hiato de 38 anos, o governo federal reiniciou as execuções em seu complexo de Terre Haute, e a luta ganhou especial urgência para as irmãs. Houve duas execuções em 2001 e uma em 2003, depois nenhuma até a série que começou em 14 de julho de 2020 e incluiu as mortes de Nelson e LeCroy.
Nelson foi condenado pelo sequestro, agressão sexual e assassinato de Pamela Butler, em 1999, uma menina de 10 anos do Kansas. LeCroy foi condenado pelo estupro e assassinato de Joann Tiesler, em 2001, uma mulher de 30 anos da Geórgia.
Battista concordou em acompanhar os homens até a morte, mas não tinha certeza se ela conseguiria. A maior parte de sua carreira – quase 40 anos – foi passada trabalhando na medicina, trabalhando como farmacêutica oncológica clínica e assistente de medicina, bem como em medicina ocupacional.
“Eu sou um provedora de cuidados de saúde e estive com pessoas morrendo. Estive com elas morrendo em uma situação de emergência, e estive com nossas irmãs, sentando em vigília e orando por elas em casa. Mas isso era diferente”, disse Battista. “Minha pergunta era: eu poderia realmente ficar lá e assistir a uma pessoa sendo executada, sendo assassinada pelo Estado, e não instintivamente estender a mão e puxar aquele tubo intravenoso?”.
Por causa das restrições de segurança e do calendário apertado, Battista só pôde visitar Nelson e LeCroy pessoalmente duas vezes cada; todas as outras comunicações tiveram que ser por telefone ou carta. Quando chegaram as datas de execução, as horas e os procedimentos que levaram às injeções letais foram altamente orquestrados, e a segurança foi ainda mais rígida do que o normal no complexo penitenciário de segurança máxima, disse Battista.
Uma vez na câmara de morte, Battista não pôde deixar de notar que ela era a única médica presente nas duas execuções.
“Por cima, parece um procedimento médico. Mas, como profissional da saúde, posso afirmar que não havia médicos, nem assistentes médicos, nem enfermeiros ou enfermeiras envolvidos nisso”, disse ela. “É totalmente contra o código de ética [médico]”.
Também não houve emoção, disse ela.
“Fiquei impressionado como seus rostos, o marechal dos EUA e o carrasco, são como robôs, como pedra”, disse ela. “Eles também são seres humanos e tenho que acreditar que estão trabalhando duro para estar do jeito deles. Não há emoção”.
Battista disse que isso faz parte da encenação: todos os procedimentos e políticas são projetados para fazer a execução parecer o mais estéril e desprendida possível para esconder o que na verdade é violência extrema. Os relatos da imprensa sobre as execuções estão em desacordo com os relatórios oficiais: repórteres presentes nas execuções disseram que o estômago dos prisioneiros “rolou, balançou e estremeceu” enquanto morriam, enquanto relatos oficiais diziam que os prisioneiros simplesmente adormeciam e às vezes roncavam.
A maioria das pessoas presume que as execuções não são públicas, disse Battista, mas, na verdade, a câmara de morte é cercada em três lados por janelas, com áreas separadas para membros da família da vítima, membros da família do condenado e a imprensa. Nem Nelson nem LeCroy tinham família presente nas execuções.
Há cinco pessoas na própria câmara de morte: o condenado, o carrasco no ombro esquerdo, um marechal dos EUA no ombro direito, o diretor ou representante do diretor e o conselheiro espiritual, se solicitado.
O prisioneiro é amarrado a uma mesa, que Battista descreve como “cruciforme”, com os braços bem abertos.
“Eles foram crucificados. Foi uma execução pública”, disse ela.
Battista não teve permissão de tocar em nenhum dos dois até serem declarados mortos.
“Este é um homem que está em confinamento solitário há 20 anos, mas não há contato físico permitido com ninguém, exceto os agentes”, disse ela. “É apenas mais um ato de violência”.
Nelson não disse nenhuma última palavra, mas pediu a Battista que desse uma mensagem aos seus advogados.
O carrasco lê um script, o qual inclui os crimes pelos quais Nelson foi condenado, então pega um telefone – Battista não sabe para quem era a ligação – e pergunta se há qualquer impedimento. Quando não há nenhum, a execução inicia. O quarto tubo vem de outra sala através de uma abertura na parede, então ninguém pode ver quando o químico começa a fluir.
“No caso de Keith foi silencioso. Nenhum som... nenhum movimento”, disse ela. “E então acaba... agora eu poderia tocar seu corpo, então eu comecei a ungi-lo, fiz orações, rezei por ele. Eu ungi seu peito, sobre o coração, e então convidei-o a sair”.
Talvez não houvesse som quando Nelson morreu, mas Battista estava rezando fervorosamente. As Irmãs da Providência criaram um serviço de oração para execuções, e Battista disse que as rezava enquanto a sentença de morte de Nelson ocorria.
LeCroy, por outro lado, queria algo diferente. Embora algumas reportagens da imprensa o descrevessem como “obcecado com bruxaria”, Battista disse que LeCroy era muito espiritual e estudava os escritos de Thomas Merton, C.S. Lewis e outros. Suas últimas palavras, as quais ele não disse na execução, mas por carta a Battista, citavam Wyston Hugh Auden, Rainha Elizabeth II, Samuel Richardson, Søren Kierkegaard, Khalil Gibran, William Shakespeare e outros...
“Era muito clara a vontade que ele tinha de orações particulares, e ele queria rezá-las em voz alta”, contou Battista. “Ele queria a Capela da Divina Misericórdia, a qual ele quis que rezássemos juntos, e então ele quis que eu continuasse rezando em voz alta durante todo o tempo em que eu estava na câmara de morte”.
Nelson foi amarrado sobre a mesa, impossibilitado de ver qualquer um que estivesse assistindo, “outro assalto de sua dignidade”, disse Battista. Então no dia em que LeCroy foi exectuado, ela pediu ao diretor para levantar a cabeça dele e lhe dar um travesseiro. Quando ela chegou na câmara de morte, ela descobriu que a mesa tinha sido ligeiramente inclinada para que LeCroy pudesse olhar em volta se quisesse.
Ela disse ao carrasco que LeCroy pediu para que depois eles rezassem juntos, que ela continuaria rezando alto, mas ela disse que baixaria a voz enquanto ele estivesse falando.
Quando ela falou com LeCroy, ela lhe disse que estavam, do lado de fora do complexo, protestando contra a sua execução, comendo Milk Duds – seu doce favorito – em sua honra, o que lhe fez rir.
Então eles rezaram juntos, e Battista continuou rezando até LeCroy ser proclamado morto. Então ela o ungiu como fez com Nelson.
Battista disse que ela viu muitas pessoas morrerem em seus anos no hospital, mas nenhuma outra morte a afetou tão profundamente quanto as de Nelson e LeCroy.
“É uma experiência profundamente espiritual, eu estou certa que há muito para aprender sobre isso”, afirmou.
Battista disse que muito falaram que a pandemia fez de 2020 um longo ano quaresmal, mas para ela, a Quaresma começou e encerrou com as 13 execuções federais em sete meses.
“Foi apenas mais dano, mais violência sobre a violência”, disse ela. “É a violência que a pessoa cometeu ao matar pessoas, a violência que a família das vítimas vivencia. Então, eu senti – ainda hoje sinto – parte da minha missão, do meu ministério, de estar presente com eles também. Porque eles sofrem”.
Agora, seu ministério na prisão continua: ela se ofereceu para entrar em contato com outros prisioneiros no corredor da morte e está trabalhando para criar um fundo para ajudar seus familiares a fazerem as visitas. E, claro, ela continua defendendo a abolição da pena de morte.
Em suas palavras finais, LeCroy citou extensivamente Merton, escrevendo: “’Sejamos convencidos de que nunca seremos outra coisa senão iniciantes em toda a nossa vida’. Ainda estou aprendendo a ser humano. Ainda me tornando um ser humano melhor. Por causa de Merton, também exclamo: ‘Amo todos. Estou acordando do sonho da separação’”.
Battista disse que está sempre voltando a essas palavras.
“Ainda estou aprendendo? Ainda estou pensando? Ainda estou sentindo a dor e o dom de estar com Will? Sim”, disse ela.
“Tenho certeza de que continuarei – parece estranho dizer ‘colhendo os benefícios disso’, mas é verdade. Acredito que é nesses momentos de intenso sofrimento que, pela graça de Deus, aprendemos muito mais sobre o que é possível”, disse ela. “Não apenas para o lado sofredor, mas o que é possível em trazer a bondade”.
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EUA. Irmã fala sobre a dor e o dom de acompanhar dois homens condenados à execução - Instituto Humanitas Unisinos - IHU