26 Mai 2021
Água acumulada em reservatórios para gerar energia compromete população ribeirinha próxima à foz e ameaça ecossistemas. Problemas relatados vão da redução da quantidade de peixes a acúmulo de lodo.
A reportagem é de Nádia Pontes, publicada por Deutsche Welle, 25-05-2021.
Às margens do rio São Francisco, um dos mais importantes do país, a pescadora Jonilda Gomes Barbosa vê cada vez menos peixes em suas redes. Moradora do povoado de Saramén, Sergipe, Dinha, como é conhecida, diz que o sufoco se agravou na pandemia, com o aumento dos preços da comida e do combustível para mover os barcos.
"O peixe está desaparecendo. O rio está ficando seco, assoreado", resume Dinha. "Só um grande milagre para voltar a ser como era antes", diz a pescadora.
Na região onde Dinha vive, a 5 quilômetros da foz, o rio parece estar virando mar. O fenômeno, chamado de intrusão salina, tem uma explicação: a massa de água salgada avança sobre o continente com a força das marés porque há menos água doce do São Francisco correndo. Segundo o monitoramento feito pela Universidade Federal de Alagoas (Ufal), a água do mar chegou a avançar 17 quilômetros adentro do rio.
Até chegar a Sergipe, o São Francisco, que nasce em Minas Gerais, passa por 505 municípios em seis estados. Ele corta o semiárido, tem parte da água desviada pelos canais da transposição e é represado para gerar energia elétrica em nove usinas. A última delas é Xingó, que controla o quanto de água chega para a população ribeirinha na área da foz, na divisa entre Sergipe e Alagoas, estimada em 350 mil habitantes,.
Para várias fontes ouvidas pela DW Brasil, o lobby do sistema elétrico tem forte influência sobre toda a gestão da água do São Francisco. E para o Comitê de Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, o rio chegou ao limite quando se considera o seu potencial gerador de energia.
"Os reservatórios do rio são para atender os usos múltiplos, e não prioritariamente, ou hegemonicamente, o setor elétrico", critica Anivaldo Miranda, presidente do comitê, lembrando que a eletricidade produzida na região não abastece apenas o Nordeste, mas também o Sul e Sudeste.
Uma cascata de usinas hidrelétricas interfere na quantidade de água que chega para a população do baixo São Francisco, região que vai de Paulo Afonso, na Bahia, até a foz, no Atlântico. O início é o reservatório de Sobradinho, na Bahia, construído na década de 1970, e um dos maiores lagos artificiais do mundo, com 320 quilômetros de extensão.
Desde maio de 2019, uma nova resolução (2081/17) da Agência Nacional de Águas (ANA) alterou a vazão mínima nos reservatórios da região depois de um longo período de seca. Para Xingó, ficou estabelecido que a vazão só deve baixar de 1.100 metros cúbicos por segundo (m³/s) quando o nível de água acumulado na barragem de Sobradinho, que regula todas as outras que vêm depois, estiver abaixo de 60%.
Foi por isso que a notícia que chegou no último domingo (23/05) revoltou a população ribeirinha, pesquisadores e o próprio comitê. A Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf) baixou a vazão de Xingó de 1.100 m³/s para 800 m³/s com Sobradinho marcando um nível acima de 60% – precisamente 64,92%, segundo informações do próprio Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS).
A indignação vem do fato de nem a resolução 2081/17, que foi bastante criticada à época, ser respeitada. "É uma falta de respeito a tudo o que é decidido, tudo o que é recomendado. Falta de respeito com a população, meio ambiente, com a saúde do ecossistema e das comunidades ribeirinhas", argumenta Emerson Carlos Soares, professor do departamento de Zootecnia da Ufal e coordenador das expedições científicas no São Francisco. "Não há rio que aguente uma coisa dessas", critica.
Questionada pela DW Brasil sobre a mudança em Xingó, a ANA respondeu nesta segunda-feira que o "ONS poderá, excepcionalmente, operar os reservatórios do Sistema Hídrico do Rio São Francisco para atendimento de questões elétricas, posteriormente justificadas".
Horas depois, um novo comunicado da Chesf dizia que a vazão de Xingó voltaria para 1.100 m³/s a partir desta terça-feira.
Para que o rio mantivesse uma boa saúde, nem os 1.100 m³/s seriam suficientes, aponta Soares. "A vazão ecológica mínima aceitável, na verdade, é 1.300 m³/s. Essa é a vazão mínima a ser assegurada para garantir que o ecossistema aquático continue se reciclando", afirma, com base em estudos científicos.
A queda de braço com o ONS, que coordena a geração e transmissão de energia elétrica no país, não é nova. No começo de janeiro, quando Sobradinho estava com praticamente 100% de sua capacidade, a vazão de Xingó caiu de 2.800 m³/s para 800 m³/s.
Com previsão de menos chuvas nos próximos meses, a pressão para acumular água nos reservatórios das usinas e "fechar a torneira" para o baixo São Francisco é grande, afirmam membros do comitê que participam do debate.
Se a situação perdurar, os impactos negativos devem se agravar. "Essa vazão mínima impacta todo o sistema aquático, os agricultores, a foz, a intrusão salina", reforça Maria do Carmo Sobral, engenheira civil e ambiental e professora da Universidade Federal de Pernambuco (Ufpe).
Questionado, o ONS não respondeu aos questionamentos da DW Brasil até o fechamento desta reportagem.
É grande a lista de problemas apontada pelas comunidades do baixo São Francisco. "É puro lodo no fundo do rio e muitas algas. O rio não tem mais força para tirar as algas, fica como se fosse uma água parada, um açude", diz José Antonio Silva Gonçalves, proprietário rural em Pão de Açúcar, Alagoas. O cultivo de arroz, tradicional na família, teve que ser abandonado pela falta das cheias.
A última expedição científica na região coordenada pela Ufal, que contou com 53 pesquisadores de 18 instituições diferentes, trouxe detalhes do cenário. O volume baixo do rio por longos períodos amplifica os desequilíbrios.
Com menos água, existe possibilidade de aumento de enfermidades, como casos de câncer decorrentes da má qualidade de água e acúmulo de nutrientes vindos os uso de agroquímicos.
"As pessoas consomem a água e o pescado, que podem bioacumular contaminantes", acrescenta Soares. Em algumas áreas mais próximas à foz, o aumento de pacientes hipertensos jovens, sem histórico da doença na família, é relacionado ao provável consumo da água salobra.
A pouca água doce que chega ao oceano também traz impactos preocupantes na região de manguezal, onde a maior salinidade ameaça espécies costeiras, que garantem renda para muitos pescadores.
Maria do Carmo Sobral, da Ufpe, pontua ainda outra disputa pela água. "Cerca de 70% da água da bacia é usada para irrigação. Há grandes usuários no oeste da Bahia, para agricultura de grãos e frutas para a exportação", comenta. E para esses grandes consumidores, a permissão para retirada de grandes volumes de água nem sempre é alterada quando o nível do rio cai.
Para Carlos Eduardo Ribeiro Junior, fundador da organização não governamental Canoa de Tolda, não existe elemento socioambiental no vocabulário da ANA, das empresas do setor elétrico e do ONS.
"Eles falam que têm que usar a água do São Francisco para ela não ser ‘perdida' no oceano. Um absurdo", lamenta. "Não se fala em populações ribeirinhas, meio ambiente, ecossistema, ictiofauna (peixes). A primeira coisa a ser definida, na verdade, teria que ser como o rio tem que chegar à sua foz pra continuar vivo", argumenta, citando que muitas comunidades bebem "água verde" e comem peixe contaminado.
Para munir a população com conhecimento, a ONG criou em 2019 o InfoSãoFrancisco, um serviço que transforma dados, leis e resultados de reuniões em informações numa linguagem acessível.
Morador da Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Mato da Onça, em Pão de Açúcar, criada em 2014, Ribeiro Junior vê o poder da restauração ambiental. O verde da reserva tem trazido de volta animais como jaguatirica e onça parda.
Ações como essa são urgentes para preservar as águas do rio num cenário de mudanças do clima, ressalta a pesquisadora Maria do Carmos Sobral. "Vamos ter outras crises, outros períodos de escassez. As previsões climáticas apontam que no Nordeste teremos dias mais secos, e quando a chuva vier, será de uma forma torrencial. Temos que nos preparar", alerta.
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No limite, São Francisco sofre com pressão do setor elétrico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU