21 Mai 2021
"Se Podgorny ao se sentar "tivesse encontrado um cinzeiro à sua frente, significava que a mensagem tinha sido aceita", escreve Andreotti em seu L’Urss vista da vicino (Rizzoli, 1988). O cinzeiro apareceu milagrosamente em uma mesa ao lado da poltrona onde o chefe do Soviete Supremo estava sentado. Mas ele não podia imaginar que os vestígios não apenas de cada palavra sua, mas de cada baforada de fumaça terminariam em um envelope lacrado e entregue aos arquivos papais. Talvez a Guerra Fria também tenha sido vencida colecionando bitucas de cigarro oferecidas a um inimigo tabagista", escreve Massimo Franco, em artigo publicado por Corriere della Sera, 19-05-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Os dois envelopes trazem no canto as palavras: “Nobre Antecâmara de Sua Santidade”, encimadas pelo escudo pontifício. E as duas notas manuscritas que se encontram em anexo, de cinco e sete linhas, são assinadas por Monsenhor Luigi del Gallo Roccagiovine, que silenciosa e fielmente serviu a quatro papas. Saem do arquivo mais reservado e inacessível da Santa Sé, com um conteúdo no mínimo surpreendente. Eles contêm bitucas dos cigarros que em 1967 o então presidente soviético Nikolai Podgorny pediu que lhes fossem oferecidos por Paulo VI durante sua audiência privada. Com o profissionalismo digno de um agente secreto escrupuloso, o monsenhor não se limitou a esvaziar o cinzeiro. Deu instruções para que aquelas pontas de cigarros não fossem jogadas fora. Pelo contrário, pediu que lhes fossem entregues e diligentemente as arquivou, acreditando que mais cedo ou mais tarde teriam servido para alguma coisa: talvez apenas para melhor enquadrar a personalidade e as fraquezas do líder comunista.
Um escrúpulo digno de um profissional do enquadramento, que compete com as tramas dos romances de espionagem e as diabruras tecnológicas: pelo menos naquela época. Projeta uma luz intrigante não só sobre o diálogo entre o Vaticano e a URSS, mas sobre uma Guerra Fria e uma política de distensão da Santa Sé em relação ao bloco dos países do Pacto de Varsóvia em que cada pista e ocasião deveria ser explorado para conhecer melhor os inimigos da religião e do Ocidente. “O Presidente da URSS Podgorny”, consta textualmente na primeira nota, “em audiência com Paulo VI, pediu para fumar na biblioteca privada (não podia deixar de fumar!). O Papa ofereceu-lhe um maço de cigarros (americanos!) e as bitucas foram-me entregues e estão aqui anexadas”. E na segunda nota: “Essas bitucas (ou pontas) são aquelas dos cigarros oferecidos por Paulo VI ao presidente Podgorny durante a audiência que hoje durou das 13h37 às 14h39”. Data: 30-1-67. Assinado: Luigi del Gallo. Chamam a atenção os detalhes entre parênteses, acompanhados por pontos de exclamação de espanto e talvez de leve decepção. O esclarecimento sobre "bitucas (ou pontas)" é cômico. E adivinha-se uma sutil perfídia nos detalhes dos cigarros Made in USA oferecidos ao presidente do Soviete Supremo. Não se conhece o nome de quem entregou as preciosas sobras ao responsável da Antecâmara Pontifícia. Mas é claro que foi instruído a fazer isso.
Desse achado singular provavelmente não estava ciente nem mesmo Giulio Andreotti, na época ministro da Indústria, encarregado de acompanhar Podgorny em sua visita a Turim à Fiat. Andreotti se prestou a levar uma mensagem ao Vaticano por ocasião daquela audiência. Como muitas vezes costumava fazer e voltaria a fazer, o democrata-cristão era um elo discreto entre as câmaras papais e os soviéticos. Por outro lado, os contatos com o mundo além da "Cortina de Ferro" haviam sido liberados quatro anos antes por João XXIII. Em 7 de março de 1963, havia inaugurado o degelo com a União Soviética ao receber Alexei Adjubei, genro do então líder do Partido Comunista, Nikita Khrushchov, em seu estúdio particular no Vaticano. Adjubei estava acompanhado por sua esposa Rada, que, impressionada por aquele encontro e pela figura do Pontífice, disse de maneira um pouco fora do protocolo a João XXIII: "O senhor tem as mãos grandes e nodosas dos camponeses, como aquelas de meu pai".
Cauteloso e desconfiado, o Papa preferiu não superestimar aquela conversa. Mas ele confidenciou ao seu secretário que talvez "um fio misterioso da Providência" tivesse surgido. Ele morreu pouco depois e, de 21 de junho de 1963, tornou-se Papa Paulo VI. Quatro anos depois, a delegação soviética chefiada por Podgorny confirmava que aquele fio havia de fato tomado consistência. Justamente enquanto estava em viagem com Andreotti, o presidente da URSS perguntou-lhe de forma "confidencial e reservada" se os convidados do Papa podiam fumar.
“Fiquei aliviado com a pergunta”, relata Andreotti em seu diário: ele temia que Podgorny quisesse falar sobre a Aliança Atlântica. Nas horas que passaram juntos, o surpreendeu com sua curiosidade bastante eclética. Ele perguntava como havia sido a produção da agricultura italiana naquele ano, como se entrava na universidade, notícias sobre o campeonato de futebol ou quantas vezes por mês o primeiro-ministro ia se encontrar com o Papa. "Acho que ele não acreditou em mim", observou Andreotti. “quando respondi que Alcide De Gasperi em sete anos de presidência tinha ido em audiência apenas uma vez”, pelo vigésimo aniversário dos Pactos de Latrão. Referia-se a Pio XII, com quem o estadista democrata-cristão nem sempre teve relações fáceis. Mas, neste caso, o problema era muito mais inofensivo e pessoal. Sem um cigarro, Podgorny confessou, ficava confuso e perdia a lucidez nas conversas. O embaixador soviético havia descartado a possibilidade de dar duas tragadas na presença do Papa.
Andreotti, por outro lado, com flexibilidade curial e de democrata-cristã, revelou-se menos peremptório. É verdade, o fumo oficialmente era um tabu, explicou ao eminente interlocutor. Mas nos tempos em que Paulo VI era “apenas” Monsenhor Montini e ajudava os universitários católicos, “ele acendia alguns cigarros no final das refeições”, lembrou. E ele deu a entender que o mencionaria ao pontífice. Se Podgorny ao se sentar "tivesse encontrado um cinzeiro à sua frente, significava que a mensagem tinha sido aceita", escreve Andreotti em seu L’Urss vista da vicino (Rizzoli, 1988). O cinzeiro apareceu milagrosamente em uma mesa ao lado da poltrona onde o chefe do Soviete Supremo estava sentado. Mas ele não podia imaginar que os vestígios não apenas de cada palavra sua, mas de cada baforada de fumaça terminariam em um envelope lacrado e entregue aos arquivos papais. Talvez a Guerra Fria também tenha sido vencida colecionando bitucas de cigarro oferecidas a um inimigo tabagista.
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Fumo de Moscou no Vaticano. Artigo de Massimo Franco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU