"Enquanto nos EUA identifica-se a existência de duas ondas e um agravamento a partir do final de 2020; no Brasil há um longo platô em 2020 com um elevado número de casos e agora o país caminha para uma forte segunda onda, com taxas bem maiores de mortalidade e contágio em relação à primeira".
O artigo é de Alexandre Brasil Fonseca, sociólogo, professor associado da UFRJ e doutor em sociologia pela USP com pós-doutorado pela Universidade de Barcelona. É autor de “Evangélicos e Mídia no Brasil” e de “Relações e Privilégios: Estado, secularização e diversidade religiosa no Brasil”. Este texto é uma versão adaptada de artigo publicado originalmente em inglês no site Current, 14-04-2021.
Os Estados Unidos e o Brasil ocupam as duas primeiras posições de uma triste liderança. Ambos os países, que reúnem apenas 6,9% da população mundial, são os responsáveis por 30,9% das mortes em decorrência de infecção por Covid-19 (Gráfico 1). Boa parte deste resultado é fruto das posturas negacionistas e erráticas que seus presidentes assumiram durante a pandemia, no caso dos EUA o ex-presidente.
(Fonte aqui)
A abordagem da pandemia do brasileiro Jair Bolsonaro e do norte-americano Donald Trump deriva de seu estilo político: um populismo autoritário que se alimenta a partir de táticas polarizadoras. Tais líderes preferem criar novos problemas em vez de resolver os antigos, baseando suas mensagens em mentiras, irracionalidades e violência simbólica. Durante a pandemia muitos esperavam que a conduta de Bolsonaro e Trump mudasse. Mas eles se mantiveram fiéis ao seu estilo político elementar. Como diz o filósofo Alex Demirovic [1], em um momento de crise, populistas autoritários optam por não resolver os problemas, mas alimentar ainda mais a divisão. Se recusam a fazer concessões e se destacam pela constante reafirmação de uma situação de pânico moral, por isso o interesse em manter em seus discursos questões relacionadas à imigração, sexualidade, segurança pública, ordem, família e valores tradicionais – assim animam seus seguidores e se afastam das questões que exigem ação concreta no momento.
Enquanto nos EUA identifica-se a existência de duas ondas e um agravamento a partir do final de 2020; no Brasil há um longo platô em 2020 com um elevado número de casos e agora o país caminha para uma forte segunda onda, com taxas bem maiores de mortalidade e contágio em relação à primeira (Gráfico 2). Isso ocorre em meio a esperança que os processos de vacinação representam para a população mundial, porém, infelizmente no Brasil a velocidade desse processo tem sido muito aquém do desejável. Ainda não foram percebidas mudanças significativas e há o perigo do surgimento de novas variantes. Enquanto o Brasil encontra-se nesse grave momento, é possível identificar uma melhora do quadro norte-americano, líder no número de mortes diárias relacionadas à pandemia por um longo período até o final de fevereiro e que em março de 2021 passou a primeira posição para o Brasil, agora “acima de todos”.
(Fonte aqui)
A pergunta que muitos se fazem é até que ponto a ascensão de Joe Biden à presidência foi um fator importante para essa mudança. O novo presidente assumiu como uma de suas prioridades a questão da vacinação da população e teve um bom resultado ao avançar em alguns meses o calendário inicialmente proposto para imunizar a maioria da população. Algo que separa o Brasil dos EUA agora é que Bolsonaro, que já foi definido como um “Trump dos trópicos com anabolizantes” por um teólogo latino radicado nos EUA com quem conversei em 2018 na cidade de Pasadena, não tem mais o seu parceiro norte-americano em sua cruzada negacionista de propagação de soluções não comprovadas cientificamente para o enfrentamento à pandemia, ao lado da politização dela.
Trump e Bolsonaro tiveram entre os evangélicos uma parte importante de sua base de apoio que os levou à vitória e em seus governos estes também se fizeram presentes de forma destacada. Por exemplo, no Brasil, dois Ministros de Estado são pastores presbiterianos. Já nos EUA o Secretário de Estado do governo Trump, Mark Pompeo, é reconhecido por sua atuação religiosa sendo, também, atuante na Igreja Presbiteriana.
O teólogo luterano Rudolf von Sinner [2] afirma que entre os evangélicos brasileiros é possível perceber, pelo menos, três posturas diante da pandemia. Uma primeira punitivista que entende a grave crise vivida pelo mundo como castigo divino algo, talvez, similar ao relato bíblico do dilúvio. Outro grupo tem uma postura mágica, assumindo postura negacionista diante de uma complexa e nova situação, grupo que se apega a respostas fáceis para um desafio planetário que mobiliza miríades de gestores, profissionais de saúde, cientistas, entre outros. Por fim, ele indica a existência de uma postura responsável, que entende que é momento de uma atuação cooperativa para o enfrentamento à situação de emergência do novo coronavírus.
Os dados de pesquisa recente realizada pelo Instituto Datafolha [3] dão conta de como no Brasil os evangélicos se distinguem do resto da população em relação às suas opiniões diante da pandemia. Enquanto 6% de Católicos (54% da amostra) e 3% de Espíritas (10% da amostra) afirma que não pretende se vacinar, entre evangélicos esse percentual é de 14% (24% da amostra). Quando perguntados sobre o fechamento de espaços de aglomeração, a maioria dos evangélicos são contrários ao fechamento das igrejas (59%), sendo que em relação aos outros espaços (bares, estádios, áreas de lazer, etc.) estes acompanham a média da população onde cerca de 30% são contrários aos fechamentos.
O Brasil hoje é o líder mundial de mortes relacionadas à Covid-19. Ao olharmos os dados de março de 2021, temos que 37,9% dos óbitos são de pessoas que ou residiam no Brasil (24,1%) ou nos Estados Unidos (13,8%). É momento de uma tristeza esmagadora. Foram 66.573 pessoas vítimas por Covid-19 no país, o dobro do número alcançado em julho de 2020, pior mês até então. Enquanto no mundo 1 em cada 10 mortes por Covid aconteceu neste mês de março, temos que no Brasil foram duas pessoas a cada dez. Essas mortes ocorridas no Brasil representam um número maior do que o somatório de 109 países em um ano de pandemia, sendo que estes países reúnem 1,6 bilhão de pessoas e o Brasil 212 milhões. No dia 31 de março de 2021, uma em cada três mortes no mundo ocorreu no Brasil: 32.9% do total. Segundo o economista Marcos Hecksher [4], o risco de morrer em 2020 da Covid-19 é 3,6 vezes maior para as pessoas que vivem no Brasil do que no resto do mundo.
Em meio a esse caos, prefeitos e governadores, diante da ausência de uma ação nacional, promoveram uma série de restrições de circulação de pessoas para a promoção do isolamento social por 10 dias no final de março e início de abril. A proibição da realização de cerimônias religiosas presenciais foi alvo de uma ação da Associação Nacional de Juristas Evangélicos (ANAJURE) junto ao STF, afirmando que essa decisão feria a liberdade religiosa. Às vésperas do Domingo de Páscoa foi dada decisão monocrática favorável aos juristas evangélicos autorizando a abertura de locais religiosos, decisão que foi embasada, para a surpresa de muitos, por uma decisão da Suprema Corte norte-americana [5].
Em janeiro de 2021 o Lowy Institute [6] organizou um ranking em que analisou a performance de 98 países. O Brasil ficou na última posição, classificado como tendo o pior gerenciamento para o enfrentamento à pandemia entre os países analisados e os Estados Unidos na posição 94. Em março o ranking foi revisto e atualizado, agora com 102 países, e os EUA ficou na posição 96. O Brasil foi excluído do ranking, junto a outros 13 países, por considerarem que não existem dados confiáveis e assim evitar “uma avaliação enviesada da gestão desses países ao longo do tempo”. A questão da divulgação de dados oficiais é outro grave problema, ocasionando também uma ampla desinfodemia. Estudos apontam que os números verdadeiros de mortes por Covid-19 seriam muito maiores [7], isso ao lado de praticamente uma ausência de testagens e de uma “estratégia institucional de propagação do coronavírus” patrocinada pelo governo de Jair Bolsonaro, conforme afirmado em recente pesquisa [8].
O professor Todd McGowan [9] salienta um importante aspecto que nos ajuda a dimensionar essa situação aparentemente inexplicável. Diante de desastres como uma pandemia agrava-se o não alinhamento entre o Estado e o Capital. No dia a dia de nossas sociedades ao Estado cabe atender aos interesses do Capital, mas diante de um desastre natural e a morte de milhões de pessoas em todo o mundo se coloca de forma dramática que somos criaturas coletivas, solidárias e que vivemos em comunidade. No caso específico isso fica particularmente exemplificado diante de que o distanciamento social é uma das necessárias respostas. Nos isolamos em nome do coletivo. Para a proteção de todos. Qualquer solução no caso atual passa por pensar em todos, movidos pela compaixão e isso é, exatamente, o oposto ao ideário individualista e meritocrático defendido por nossas sociedades capitalistas.
Portanto, encontramo-nos agora em um ponto de inflexão: Que tipo de sociedade queremos ser? O que queremos nos tornar? Com que objetivos escolhemos nos alinhar?
Neste momento, as lideranças religiosas, tanto no Brasil como nos Estados Unidos, devem repensar suas lealdades e dedicar-se ao enfrentamento global à Covid-19. Por ocasião das 100 mil mortes, num distante maio de 2020, grupos evangélicos nos EUA promoveram o “National Day of Mourning and Lament” [10]. Aqui no Brasil algo similar ocorreu com a realização do “Lamento 100 mil” em julho [11]. Atualmente temos várias campanhas de solidariedade e de enfrentamento aos impactos sociais existentes [12].
Desafios desse tamanho exigem mobilização, liderança e responsabilidade, elementos que têm sido escassos na postura de boa parte das lideranças políticas, empresariais e religiosas brasileiras. Neste momento de dor, lamento e pesar devemos agir, seja instigando atos de solidariedade e hospitalidade, seja exercendo pressão sobre os gestores públicos, seja defendendo e reforçando medidas como distanciamento social, uso de máscaras e higienização adequada das mãos. Ao fazer isso, podemos também lembrar a oração de Habacuque e em contrição levantar de novo sua pergunta aos céus: “Até quando, Senhor, clamarei eu, e tu não me escutarás? Gritar-te-ei: Violência! e não salvarás?”.
[1] Disponível aqui.
[2] Disponível aqui.
[3] Disponível aqui.
[4] Disponível aqui.
[5] Disponível aqui.
[6] Disponível aqui.
[7] Disponível aqui.
[8] Disponível aqui.
[9] Disponível aqui.
[10] Disponível aqui.
[11] Disponível aqui.
[12] Disponível aqui.