16 Abril 2021
"A 'necropolítica soft', ou seja, esse conjunto de medidas e ações tomadas pelo governo federal de cortes e ataques a essas áreas (educação, ciência, cultura e artes) representa exatamente a contramão do que precisaria ser feito para superar a crise econômica e sanitária que estamos vivendo" escrevem William de Souza Vieira, doutor em Memória Social pela UNIRIO, Alexandre Damascena, doutor em Literatura Brasileira pela UFRJ e Paulo César Batista, Doutorando em Sociologia na UFRJ.
Não é mais original usar o conceito de necropolítica para descrever o governo Bolsonaro. Uma busca rápida na web nos leva à dezenas de autores que têm demonstrado, com riqueza de argumentos, que no atual governo há indícios (de sobra) daquilo que o autor senegalês Achille Mbembe descreveu como necropolítica, ou seja, quando o Estado, mesmo que não promova a morte diretamente, permite que o espectro desta se reproduza ao não adotar consciente e intencionalmente as políticas públicas necessárias para evitar que a morte ocorra.
Embora tenhamos na gestão da pandemia o exemplo mais dramático dessa necropolítica, queremos aqui, por analogia, sugerir que esta política de morte manifesta-se também de forma mais sutil no pouco apreço e incentivo à ciência, à produção artística e cultural. Desde o início desse governo, através da imprensa, tomamos conhecimento de cortes sucessivos de verbas para universidades e instituições importantes, tais como IBGE, CNPQ, IPHAN, IBRAM, ANCINE, FUNARTE dentre outros. Tais cortes ferem de morte a educação, a pesquisa, a cultura e a arte.
Educação e ciência: Em pouco mais de dois anos de governo, podemos nos perguntar, que realização ou proposta concreta tivemos na educação? Só para lembrar, a cadeira do MEC é ocupada pelo terceiro ministro da Educação nesse período (tivemos até um quase ministro!). Estes, com poucas variações, têm ocupado posição central em polêmicas e discussões estéreis acerca de um suposto “marxismo cultural” ou do fantasma de um comunismo imaginário e extemporâneo da década de 60.
Enquanto a educação agoniza, estes ministros empreendem uma guerra cultural ilógica, a partir da qual, a gestão do MEC tem sido marcada por preocupações ideológicas acerca das questões de gênero nos livros didáticos ou com o conteúdo de questões do ENEM, por exemplo. Também teve destaque o empenho de ministros em demonstrar apoio a projetos de lei ligados ao movimento “Escola sem Partido”, à interferência nas eleições de universidades e de institutos federais e, até mesmo, a ataques às disciplinas de sociologia e filosofia, por exemplo. Em resumo, o que temos visto é um gasto de recursos e de energia que em nada contribuem para o trabalho do MEC, cuja responsabilidade é desenvolver macropolíticas para a educação e a cultura.
Em 2019 o anúncio de cortes no orçamento das universidades gerou uma onda de protestos no Brasil. A declaração do ministro da educação à época, em entrevista ao jornal Estado de São Paulo (30/04/2019), sugerindo que tais cortes se dariam em função da baixa produtividade e da “balbúrdia” que o ministro imaginava existir nos campi, acirrou ainda mais o descontentamento da comunidade acadêmica. Todavia e a despeito das críticas, o ministro seguiu adiante na sua proposta. Ato contínuo, um novo corte de verbas foi anunciado com a proposta de lei orçamentária para o ano de 2021. Desta vez, a tesoura significou uma redução de 1 bilhão para as universidades que, além de comprometer as despesas de custeio dessas instituições, têm tido impacto significativo na manutenção de bolsas de milhões de estudantes, tanto na graduação quanto nos cursos de pós-graduação, quanto na manutenção de pesquisas importantes que são desenvolvidas nas nossas universidades públicas.
Numa linha de continuidade com a política de estrangulamento que temos verificado nas universidades, a coluna de Ancelmo Gois (o Globo – 29/03/21) revelou que duas instituições importantes também foram alvo de cortes orçamentários. Duas das mais importantes instituições públicas e que contam com corpo técnico altamente qualificado. Algumas políticas públicas importantes são desenvolvidas a partir de dados desenvolvidos e divulgados por essas instituições. Tanto o censo demográfico (IBGE) e o censo escolar (INEP) ficarão comprometidos ao se confirmar mais esses cortes de recursos.
Patrimônio cultural e anti-intelectualismo: Outra situação que gostaríamos de destacar diz respeito ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional ( IPHAN), cuja criação remonta ao governo Vargas (Lei n. 378 - 13/01/1937). No site do IPHAN é sublinhada a importância do mesmo no que tange ao cuidado com a preservação da memória e do patrimônio cultural em todos os seus aspectos (seja ele material ou imaterial). Sendo, portanto, uma instituição fundamental para que a História não seja apenas uma vaga lembrança ou caia no esquecimento.
Todavia e a despeito da importância fundamental deste instituto na preservação do Patrimônio Cultural brasileiro, ao longo dos últimos 3 anos - incluindo os primeiros meses de 2021 -, observamos um processo de enfraquecimento do órgão e esvaziamento do seu papel e atuação.
Em primeiro lugar, desde 2019, o IPHAN não tem sido comandado por um profissional específico na área de patrimônio, história ou memória; além disso, toda a estrutura do Instituto sofreu algum tipo de modificação com trocas de profissionais, recrudescimento nos processos de análise, acompanhamento e de fiscalização resultando, portanto, no enfraquecimento da instituição.
Em segundo lugar, nos últimos três anos a redução dos investimentos governamentais vem diminuindo consideravelmente. Observamos que de 2019 para 2020 o orçamento do IPHAN sofreu uma redução de 29%, uma queda considerável, tendo em vista que esta redução foi realizada antes da Pandemia de COVID19. Entretanto, chama atenção que, mesmo em face dessa redução de verbas, a gestão do instituto tem adotado uma estratégia de subutilização dos recursos em caixa. Por exemplo, em 2019 o orçamento do IPHAN foi de R$ 516,90 milhões, mas o valor executados foi de apenas R$ 349,08 milhões; Já em 2020, mesmo com o orçamento de R$ 366,31 milhões, apenas R$285,34 milhões foram utilizados .
A situação do instituto para 2021 pode assumir contornos dramáticos. Como se não bastasse o já exposto, o Projeto de Lei Orçamentário enviado ao Congresso no final do ano passado previa outra redução, desta vez, em 60%. O orçamento que já havia sido reduzido no ano anterior, caiu ainda mais para R$146,99 milhões, ou seja, um valor menor do que foi gasto em 2019. Em resumo, no conjunto, desde 2019 os cortes de verbas destinados ao IPHAN somam cerca de 70% a menos em investimentos.
A situação do IPHAN não é um caso isolado. Segundo especialistas, algumas das autarquias e fundações vinculadas ao ministério da cultura, tais como Fundação Casa de Rui Barbosa, Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), Fundação Nacional de Artes (Funarte), Agência Nacional do Cinema (Ancine), Fundação Biblioteca Nacional e Fundação Cultural Palmares estão com seus recursos reduzidos, afastados de suas funções originais e largados à própria sorte. Por fim, além dos cortes orçamentários que ocorreram neste período, a política de subutilização dos recursos do órgão destacada acima têm sido prejudiciais à instituição, o que demonstra claramente o descaso do atual governo com a fiscalização, a preservação e a conservação de nosso patrimônio artístico e cultural.
Arte e cultura: Por fim, vamos nos deter em alguns pontos do setor artístico e cultural. Uma das primeiras medidas adotadas pelo atual governo foi subordinar o Ministério da Cultura ao Ministério do Turismo (Decreto nº 10.107/19). Embora estas duas pastas possam dialogar, não resta dúvidas que ambas têm objetivos e funções bem distintas e com prerrogativas e necessidades específicas. Para muitos agentes do setor cultural, com esta medida, o governo Bolsonaro sinalizou que nesta gestão a cultura teria um papel secundário e, de certa forma, sofrendo os efeitos da sua estratégia de guerra cultural.
Quando pensamos na produção cultural, a crise no setor parece se agravar cada vez mais. No atual governo, decisões que deveriam ser técnicas se revestiram agora de forte teor político/ideológico. Se nos governos anteriores, o setor já sofria com inúmeros cortes orçamentários, com o governo Bolsonaro, este virou palco para um tal “combate ao marxismo cultural” que, segundo alguns membros do governo, teria tomado conta não só da educação, como da própria cultura brasileira.
Apontado por alguns como “guru de Bolsonaro”, Olavo de Carvalho foi um dos primeiros a iniciar a guerra ideológica contra os artistas que, segundo ele e seus seguidores, estão dominados pelo “Marxismo cultural”. A título de exemplo, dentre os cinco secretários da cultura que tivemos, ganhou notoriedade Roberto Alvim que, além de demonstrar um discurso alinhado ao pensamento nazista a cerca da “pureza da arte”, ao assumir a pasta da cultura entregou a direção de um teatro público (o Glauber Rocha, no RJ) a um grupo teatral evangélico.
Alguns sinais já haviam sido dados no período pré-eleitoral. A Lei Rouanet (Lei 8.013/91), embora destinada a incentivar e ampliar o acesso à cultura e à arte, já havia sido alvo de ataques à época das eleições de 2018. Dito e feito, não demorou e esta lei sofreu um duro golpe ao ter seu alcance e poder de captação de verbas para produções artísticas e culturais significativamente diminuído. Como parte de uma verdadeira batalha de narrativas que ocorria nas redes sociais, circulava nos grupos bolsonaristas a acusação de que esta lei serviria como “um reino de mamata para os artistas”. Além de professores e intelectuais, a classe artística também foi transformada em alvo ao ser acusada de se aproveitar dos recursos públicos em benefício próprio.
Todavia, embora a Lei Rouanet, dizem alguns especialistas, tenha sido alvo de críticas no sentido de que esta precisaria ser aprimorada para cumprir melhor sua função, o ataque à este dispositivo legal parece desconhecer a importância desta na organização e manutenção do setor artístico e cultural que movimenta e emprega milhares de trabalhadores direta ou indiretamente.
Concluindo, vistas em conjunto, essa “necropolítica soft”, ou seja, esse conjunto de medidas e ações tomadas pelo governo federal de cortes e ataques a essas áreas (educação, ciência, cultura e artes) representa exatamente a contramão do que precisaria ser feito para superar a crise econômica e sanitária que estamos vivendo. Por fim, deve-se considerar que nenhum país que pense seriamente sobre seu desenvolvimento pode prescindir do apreço e do investimento maciço em ciência, educação, arte e cultura.
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Educação, Ciência, Arte e Cultura e a necropolítica soft - Instituto Humanitas Unisinos - IHU