24 Fevereiro 2021
A vacina chinesa Sinopharm chegou a Lima, mas o plano de vacinação local, ao contrário do que acontece no resto do mundo, não coloca os idosos em primeiro lugar. Em vez disso, a prioridade é das forças de segurança.
A reportagem é de Wilfredo Ardito Veja, publicada por Mondo e Missione, 23-02-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Há poucos dias, a chegada do avião com as primeiras vacinas contra o Covid-19 foi saudada por muitos peruanos com uma alegria semelhante às visitas dos papas, pelo presidente, Francisco Sagasti, e por milhares de soldados e policiais. As pessoas assistiam à TV com grande esperança de que a vacina pudesse finalmente acabar com a doença que causou tantas mortes.
Pouco tempo depois, o clima ficou pessimista. O número de vítimas continua crescendo e atingiu os números da primeira onda. Pensa-se que as vacinas não serão capazes de deter a pandemia, porque no Peru não se vacinam aqueles que mais precisam: os idosos e as pessoas com comorbidades. O governo peruano é o único da América Latina e provavelmente do mundo que não os considera prioritários e os adia para a “segunda fase”, que começará em maio ou junho.
A Fase 1 é para médicos, enfermeiros, estudantes de medicina e outros profissionais da saúde, inclusive administrativos, e um grande grupo consiste em quem trabalha na segurança, como soldados, policiais, guardas urbanos (serenos), mas também os profissionais da limpeza.
A vacina parece um prêmio para quem pertence a certos grupos do Estado peruano, principalmente ligados à segurança, como se fosse um uniforme ou uma arma. A escolha é coerente com a visão do Estado sobre a pandemia, percebida mais como um problema de segurança, em que a prioridade é controlar os cidadãos para que fiquem trancados nas suas casas e não se atrevam a trabalhar, mesmo que muitos não saibam como conseguir comida.
Nos piores meses, o então presidente Martín Vizcarra insistia que, com a disciplina, a Covid-19 seria derrotada e que policiais e soldados nos protegiam dos “irresponsáveis peruanos”, considerados cúmplices do inimigo, cúmplices do vírus. Muitas pessoas aceitaram essas ações: ao contrário de outros países, no Peru as pessoas não saíam às 20h para aplaudir os médicos, mas sim os policiais, os protetores dos quais Vizcarra falava com orgulho como aqueles que nos ajudariam a vencer a “guerra”.
E, na guerra contra a Covid, as forças de segurança atuaram como um exército de ocupação, com grande sofrimento para o povo. Vivemos meses com tanques invadindo as ruas, toque de recolher às 16h ou às 6h, dezenas de milhares de pessoas presas. Os policiais entravam em uma casa se ouvissem música em um volume um pouco alto ou se a família tomava uma cerveja, e os “criminosos que colocavam a sociedade em perigo” eram levados para a delegacia.
A morte de 12 meninas e de um jovem em uma boate no norte de Lima mostra como os policiais não sabiam como agir, fazendo mais mal do que bem, e, nesse ínterim, a Covid se espalhava. Nesse contexto autoritário, a vacina é o prêmio lógico para os “protetores da sociedade”.
Não se considerou, entretanto, que esses protetores estavam normalmente em boas condições de saúde. De fato, os militares mortos pela Covid foram menos de 300, enquanto os idosos foram mais de 35.000.
A atitude do governo foi completamente diferente em relação aos idosos. Vizcarra decidiu trancá-los de forma permanente. Segundo ele, um idoso não tinha o direito de sair de casa, de ver os próprios filhos, de falar com os amigos ou de ir ao parque. Vizcarra fechou os hospitais, os pronto-socorros, as clínicas privadas e interrompeu as terapias. Consequentemente, com a solidão e o abandono, muitos morreram não de Covid, mas de depressão, isolamento e por causa de outras doenças.
Apenas sete meses após o início da pandemia, Vizcarra deu a permissão para que as pessoas com mais de 65 anos saíssem de casa, mas muitas já haviam sofrido muito. É importante sublinhar que o severo lockdown que lhes foi imposto foi aceito por muitos, que viam os idosos como crianças ou deficientes.
Em novembro, o país passou por uma crise política: os parlamentares opostos a Vizcarra encontraram um pretexto para lhe fazer um impeachment, e Manuel Merino, presidente do Congresso, assumiu o seu lugar.
Os protestos da população contra essa decisão levaram, depois de apenas quatro dias, à sua renúncia, e Francisco Sagasti, um deputado de 78 anos, foi nomeado presidente do Peru. Seu grande erro, porém, foi de continuar com Pilaz Mazzetti como ministra da Saúde.
Na época de Vizcarra, foi ela quem escolheu as vacinas contra a Covid-19. Mazzetti aprovou a chegada da vacina chinesa Sinopharm e um “cronograma de vacinação” irrazoável, em que os idosos aparecem na Fase 2, depois dos médicos, dos enfermeiros, das forças de segurança e até mesmo depois dos escrutinadores das urnas eleitorais.
Este foi um dos aspectos mais curiosos: Mazzetti decidiu que os escrutinadores das próximas eleições presidenciais do dia 11 de abril serão vacinados, mesmo tendo menos de 60 anos, e a sua única tarefa será apenas ficar sentados algumas horas e contar os votos. No mesmo dia, haverá eleições no Chile e no Equador, mas nesses países não está prevista a vacinação para os escrutinadores.
Na semana passada, estourou um escândalo, quando se descobriu que Mazzetti e Vizcarra foram vacinados às escondidas junto com outras figuras. Mazzetti renunciou e agora está sob investigação, mas o novo ministro da Saúde, Oscar Ugarte, decidiu manter o calendário de vacinação.
Como os idosos não estão recebendo a vacina, eles continuam adoecendo, vão para o hospital e morrem. Seria importante vacinar os idosos até para evitar o colapso dos serviços hospitalares e garantir a atenção a outras doenças. Todos os dias, morrem entre 140 e 180 pessoas. Se o governo esperar até junho ou julho, morrerão outros 15-20 mil.
Em muitos países, os idosos eram considerados menos importantes, e muitos hospitais sequer queriam recebê-los. Dizia-se que eram vítimas da sociedade do descarte. Muitas pessoas pensam que, por não trabalharem e não produzirem, são mais um fardo para a economia. Mas o Peru é o único país que decidiu até não os vacinar. Uma terrível irresponsabilidade.
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Peru, o único país que não vacina os idosos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU