Enchentes, queimadas, desmatamento, ciclone bomba, nuvem de gafanhoto, animais invasores e uma pandemia sem precedentes na história moderna. O ano de 2020 apresentou grandes desafios relacionados ao meio ambiente e encerra como o terceiro ano mais quente já registrado. Por um lado, 2020 foi marcado pela união dos países em construir uma economia mais verde; por outro, pelos desafios mais imediatos provocados pelo coronavírus.
A reportagem é de Renato Santana, publicada por EcoDebate, 22-12-2020.
“Este foi um ano de paradoxos. Apesar do efeito nefasto em mortes pela Covid-19 e a perda de renda devido à desaceleração econômica, esta situação provocou uma redução considerável na poluição do ar, tanto pela redução da movimentação de veículos no planeta como pela desaceleração industrial”, resume o membro da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza (RECN) e professor do Laboratório de Inovação em Sustentabilidade da Universidade de Colorado, Gunars Platais.
Ele e outros especialistas fizeram um balanço dos eventos mais marcantes da área ambiental em 2020 e traçaram algumas perspectivas para 2021. Veja a seguir:
Em 2020, encerra-se a Década da Biodiversidade, criada pela Organização das Nações Unidas (ONU) para proteger as espécies do planeta. No entanto, nenhuma das metas definidas para o período foi atingida de acordo com o balanço final da Década divulgado pela entidade em setembro deste ano. No Brasil, números apresentados em novembro pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostraram que o país tem 3.299 espécies ameaçadas de extinção.
Um estudo da revista científica Nature Communications mostrou que a pandemia teve grande impacto na redução da poluição atmosférica. Segundo cálculos dos pesquisadores, houve uma queda de 8,8% nas emissões de dióxido de carbono (CO2) na primeira metade do ano em comparação com igual período de 2019. A redução é maior do que a registrada em crises econômicas anteriores ou na Segunda Guerra Mundial. Por outro lado, em relação à redução das emissões de gases de efeito estufa, o Brasil estabeleceu recentemente metas pouco ambiciosas a serem cumpridas até 2030, mantendo o que havia sido proposto há cinco anos.
O primeiro semestre foi de chuvas fortes em muitas cidades do país, causando alagamentos recordes e devastação. Ao mesmo tempo, outras regiões sofreram com o problema da estiagem, que em alguns casos, como em Curitiba (PR), foi a mais longa já registrada. De acordo com especialistas, o fenômeno de precipitações mais intensas e secas mais duradouras é reflexo dos efeitos das mudanças climáticas. “São eventos extremos que afetam a biodiversidade, o equilíbrio dos ecossistemas e as pessoas, com restrição ao abastecimento de água, falta de energia e aumento de tarifas, por exemplo. Além disso, quando a estiagem é muito longa, é preciso acionar as usinas termelétricas, que são mais poluentes”, explica o gerente de Economia da Biodiversidade da Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza, André Ferretti, alertando que esse cenário deve permanecer em 2021 e nos próximos anos.
Em 2020, o Pantanal recebeu atenção internacional em razão dos incêndios que queimaram o bioma e mataram milhares de animais. O fogo atingiu Unidades de Conservação (UCs), incluindo o Parque Estadual Encontro das Águas, que reúne a maior população de onça-pintada do mundo. “Em 2020, a intensidade e a quantidade de áreas atingidas pelo fogo foram muito grandes. Apesar das políticas equivocadas do governo federal e algumas em nível dos estados do Mato Grosso do Sul e do Mato Grosso, a tragédia estabeleceu um clima de solidariedade na sociedade e ao mesmo tempo aparou algumas arestas entre o terceiro setor e a iniciativa privada”, comenta o membro da RECN e diretor executivo do Instituto SOS Pantanal, Felipe Dias.
Além das chuvas e estiagens, o Brasil também conviveu com eventos climáticos incomuns ao longo do ano, como o ciclone bomba, que prejudicou mais gravemente a região Sul do país, e a nuvem de gafanhotos, ocasionada pelas mudanças climáticas e por práticas não sustentáveis de agricultura.
Em uma reunião ministerial em 22 de abril, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, declarou que o governo deveria aproveitar o foco da imprensa na cobertura da pandemia do novo coronavírus para passar “reformas infralegais de desregulamentação e simplificação”. “Para isso, precisa ter um esforço nosso aqui, enquanto estamos neste momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só falam de Covid, e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas”, disse Salles na ocasião. Entre as tentativas de mudanças orquestradas pelo governo federal estão as alterações na fiscalização da exportação de madeira e demissões nos órgãos de controle ambiental.
No final de outubro, o governo federal autorizou a pesca de sardinhas no Parque Nacional Marítimo de Fernando de Noronha, o que gerou preocupação entre ambientalistas e pesquisadores. “Foi autorizada de uma forma equivocada, atropelando um processo que já ocorria no âmbito do Parque e que acabou levando a uma situação que nos deixa muito receosos em relação ao que pode gerar. Temos como beneficiários dessa autorização pessoas que sequer têm atuação de pesca mais tradicional ou local”, alerta o membro da RECN, professor da Universidade de São Paulo (USP) e responsável pela Cátedra de Sustentabilidade de Oceano da Unesco, Alexander Turra. Já o pesquisador da Voz da Natureza e da Academia de Ciências da Califórnia, Hudson Pinheiro, lembra que a sardinha é base da cadeia alimentar de outras espécies. “É um precedente inacreditável você poder entrar num Parque Nacional para pescar. É inaceitável. A sardinha é a base da cadeia alimentar, seu desaparecimento pode resultar no colapso de toda ecologia trófica da ilha, inclusive da própria pesca de recursos locais”, diz Pinheiro, que também é membro da RECN.
O episódio da cobra naja – uma espécie exótica do Brasil – tomou conta do noticiário no segundo semestre. Um estudante de veterinária do Distrito Federal acusado de traficar o animal foi picado pela cobra e foi parar no hospital, em coma. Na metade de dezembro, uma piton albina birmanesa, espécie típica da Ásia e da África, foi resgatada no município de Mucambo (CE). Os casos trouxeram à tona a questão das espécies exóticas invasoras, capazes de causar sérios distúrbios aos ecossistemas. “Esses animais trazem vários riscos, desde o ataque a outras pessoas, como foi o caso da naja, à proliferação de doenças”, alerta a diretora executiva do Instituto Hórus de Desenvolvimento e Conservação Ambiental e membro da RECN, Sílvia Ziller.
No final de setembro, o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) se reuniu para revogar três resoluções publicadas em anos anteriores, incluindo medidas que fortaleciam a proteção de áreas de restingas e manguezais. A decisão foi criticada por ambientalistas e acabou indo parar no Supremo Tribunal Federal (STF), que já formou maioria pela restauração das resoluções em julgamento ainda sem data de conclusão.
Com o fim da Década da Biodiversidade, a ONU dá início em 2021 à Década da Ciência Oceânica para o Desenvolvimento Sustentável. O objetivo é unir esforços de todos os setores relacionados ao mar para reverter o ciclo de declínio na saúde do oceano e criar melhores condições para concretizar o desenvolvimento sustentável. No Brasil, foram conduzidas diversas oficinas para a construção do Plano Nacional de Implementação da Década, com participação de diversos atores da sociedade. A criação de um banco de dados on-line, integrado, transparente e acessível a todos, não somente aos espaços de educação formal, foi a principal necessidade identificada para o país.
Em 2021, importantes eventos relacionados ao meio ambiente, dentro do âmbito da ONU, ocorrerão como forma de unir os países em torno de um futuro sustentável. “Será um ano crucial para a agenda ambiental global, com o início da Década da ONU de Restauração de Ecossistemas; a realização – em Glasgow, na Escócia – da Conferência das Partes (COP) 26 de Clima para pactuar acordo sobre as regras de implementação do Acordo de Paris; e a realização da COP 15 de Biodiversidade — em Kunming, na China — para adotar a nova Estratégia Global de Biodiversidade para o período de 2021 a 2050. São oportunidades únicas que o Brasil não pode perder para influenciar, fazendo bom uso das lições aprendidas com as ricas experiências desenvolvidas no país”, comenta o membro da RECN e professor do Departamento de Ecologia da Universidade de Brasília, Braulio Dias, que também é ex-secretário executivo da Convenção da ONU sobre Diversidade Biológica.
A eleição do presidente Joe Biden nos Estados Unidos e o retorno do país ao Acordo de Paris irá fortalecer a política ambiental global e influenciar países como o Brasil. “No governo do presidente Donald Trump foram sistematicamente desmanteladas mais de cem regulações ambientais de grande importância. O presidente-eleito Biden já indicou que vai começar a, paulatinamente, voltar a implantá-las”, detalha Platais. Já para Dias, a política ambiental de Biden irá impactar e influenciar o Brasil, uma vez que ela é “diametralmente oposta” à política de Trump.
O ano atual foi marcado por posicionamentos cada vez mais enfáticos das empresas na proteção e conservação do meio ambiente e numa crescente conscientização da sociedade sobre os impactos ambientais de negócios econômicos. “O fato de os setores financeiros de grande envergadura estarem prestando muita atenção ao impacto que a mudança climática está causando no lucro das empresas é de suma importância. O resultado esperado é que estejamos cada vez mais descarbonizados”, comenta Platais, ex-economista do Bando Mundial. Outro fator que caminha nessa direção é a adoção e o fortalecimentos de boas práticas ambientais, sociais e de governança (ESG) pelas corporações, o que tem levado grandes investidores a levarem isso em conta na hora de escolher os negócios que receberão recursos.
A mudança dos padrões de consumo da sociedade, em especial da juventude, é um importante aspecto a monitorar ao longo do próximo ano e década, indicam os especialistas. Os modelos atuais de crescimento econômico estão sendo questionados e a economia circular ganha cada vez mais tração e relevância nesse novo contexto.
A tendência de cidades em todo o mundo de implantar ações de mitigação e adaptação às mudanças climáticas deve continuar em 2021. No Brasil, especificamente, essa ação deve ser liderada pelos novos prefeitos e vereadores eleitos em 2020. Exemplos já existem, como o movimento Viva Água, em São José dos Pinhais (PR), que busca contribuir com a segurança hídrica para milhares de famílias e indústrias locais por meio da recuperação do solo e da vegetação da bacia hidrográfica do rio Miringuava. O projeto é uma iniciativa da Fundação Grupo Boticário em parcerias com os governos municipal e estadual, além de empresas e entidades da sociedade civil organizada. “É preciso dar espaço para a natureza, introduzindo tipologias de Soluções Baseadas na Natureza (SBN) por meio de tetos verdes nas edificações, jardins de chuvas, canteiros fluviais, biovaletas e parques multifuncionais”, explica a membro da RECN e pesquisadora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Cecilia Herzog.
Seguindo a pauta dos últimos anos, a política ambiental para proteger a Amazônia continuará a atrair a atenção da população global. A falta de medidas eficazes para combater o desmatamento – que cresceu 9,5% em 12 meses, passando de 11 mil km² devastados – e preservar povos e terras indígenas seguirá desencadeando pressões ao Brasil vindas a partir da perda de investimentos estrangeiros, boicote a produtos nacionais e sanções comerciais de outros países.