16 Dezembro 2020
Muito já foi dito sobre a seca iniciada em 2012 no Semiárido brasileiro: que sua intensidade foi a maior dos últimos 100 anos e, que apesar disto, a população da região não a sentiu como as estiagens das décadas de 1990 e 1980. O que talvez ainda não seja tão divulgado é que esta mesma estiagem ainda se faz presente até os dias atuais, de forma mais branda, em alguns territórios deste Semiárido de um milhão de quilômetros quadrados.
A reportagem é publicada por AS-PTA e reproduzida por Articulação Semiárido Brasileiro - ASA, 15-12-2020.
Este é o caso do território da Borborema, na Paraíba, que é caracterizado por faixas de ambientes mais úmidos, como o brejo, e mais secos como o agreste e o curimataú. Em todos estes ambientes, as chuvas ainda não voltaram ao normal. Segundo Luciano Marçal, assessor técnico da AS-PTA, ao se comparar a média pluviométrica dos últimos 50 anos observa-se uma redução média de 25% a 30% nas precipitações totais anuais de 2012 até 2020. “Nas áreas mais úmidas, o impacto é grande. Mas, na região do Curimataú, o quadro é mais severo”, pontua Luciano.
(Foto: AS-PTA)
Este fato nos remete a um desafio global que Luciano transformou em pergunta: “Como vamos lidar com uma conjuntura onde a perturbação do clima tende a ser cada vez mais severa?”
Os dados levantados por Luciano são sentidos por Paulo Alexandre da Silva, agricultor familiar de 63 anos com muito orgulho de ser experimentador. Nascido e criado na zona rural de Remígio, sem nunca ter migrado para nenhuma outra região e, tampouco, seus cinco filhos, seu Paulo não pensa duas vezes antes de afirmar que o inverno “caiu muito de 10 anos pra cá”.
Por isso, ele passou a preparar o terreno cedo para aproveitar as primeiras chuvadas. “Se não, não tiramos nada”, enfatiza. E aí o agricultor familiar emenda a conversa destacando a importância de ter guardado até hoje as sementes conservadas e cultivadas pelo seu pai e seus avôs que “com pouco inverno, planto e faço uma boa colheita”.
Com entusiasmo, seu Paulo enumera as sementes de feijão que são da sua paixão. Numa tacada só, ele citou quatro variedades diferentes, falou do tempo do ciclo do plantio, do comportamento da planta quando a vagem está pronta para ser colhida e se o feijão é bem aceito no mercado e se tem bom preço.
Nestes tempos de menos chuva, as variedades de ciclo mais ligeiro são as mais adequadas. E ele tem duas sementes que levam 55 dias para a colheita (feijão fava e feijão gorgutuba), outra de 60 dias (feijão mulatinho de cacho) e outra ‘mais custosa’ que carece de 70 dias e de mais chuva para brotar (feijão carioca tochinha). “Tem agricultor que não guarda a sementes da paixão. Vai comprar no mercado sem nem saber que semente é aquela. Planta e tem dia que não colhe nada”.
Desde 2002, seu Paulo é um dos coordenadores de um banco de sementes comunitário que funciona na casa dele, no assentamento da reforma agrária Oziel Pereira. A comunidade guarda no banco variedades de feijão de arranca e outras tantas de feijão de corda, além de duas sementes de milho que são armazenadas só depois dos testes de verificação da contaminação pela transgenia. “O que ajuda também é que a palhada do milho serve de forragem”, emenda ele, que cria junto a esposa seis cabeças de gado, dois cavalos, galinhas, guiné e peru. O Banco de Sementes Comunitário de Oziel Pereira integra uma rede com 62 BSC gerido pela comissão de Sementes do Polo da Borborema.
No arredor de casa, espaço de cuidado de dona Zefinha, fica a criação das aves. Todas cercadas com telas para evitar de devorar as plantas cultivadas na área. A tela para cercar as galinhas foi conseguida por meio do Fundo Rotativo Solidário (FRS) gerenciado pela própria comunidade. Este fundo proporcionou também para o assentamento a construção de cisternas de placa de 16 mil litros, a criação de ovelhas e de galinha de capoeira, entre outros bens. “Hoje, o fundo está adormecido, mas o que implantamos está tudo funcionando”, ressalta o agricultor experimentador.
E a sua produção é diversificada, seu Paulo? “Ah, tenho muita coisa que eu plantei. Pra forragem, gliricídia e sabiá.” E emenda com uma relação de pés de frutas semeados no arredor de casa: cajueiro, acerola, graviola, pinha, ‘imbu’, coco, mamão, banana. “Sou agricultor experimentador. De tudo, experimento. O que dá certo, eu continuo. O que não dá, descarto”, diz ressaltando que é difícil algo não dar certo nas mãos dele. “A gente que está na região de Agreste, quase Curimataú, tem que regar a muda duas vezes por dia. Tem que cuidar dela como se cuida de uma criança.”
E de onde vem a água que o senhor usa? “Tenho três cisternas. Duas de 16 mil litros e uma calçadão. E aqui perto tem dois açudes que, quando chove passa água de ano pra ano”. As cisternas são resultado das parcerias com a Articulação no Semiárido (ASA). O açude fica a 1,5km da propriedade dele. Seriam 3km pra ir buscar água sempre que precisasse, mas a comunidade, por meio da Cooperativa que constituíram, comprou um trator com tanque pipa, que faz a coleta no açude e sai abastecendo toda a comunidade. O bem coletivo foi conquistado via um projeto do Governo da Paraíba, que pagou uma parte e financiou o restante para a Cooperativa.
A seca iniciada em 2012 foi marcada pela morte de milhares de animais, principalmente o gado bovino. O esgotamento dos recursos forrageiros gerou um colapso na oferta de alimentos para os rebanhos. Esse impacto não foi sentido com a mesma intensidade no Território da Borborema. As estratégias de produção e armazenamento de alimentos para os animais com destaque para implementação de campos de palma consorciados, as cercas de mandacaru e a prática da silagem apoiada pela Rede Itinerante de Máquinas Motoensiladeiras permitiram com que as famílias envolvidas constituíssem estoques de forragem no ano de 2011 e que foram determinantes para atravessar o período de estiagem prolongada dos anos que se seguiram. Seu Paulo é um exemplo dessa iniciativa e em 2011, armazenou dois silos.
No alto de seus 63 anos, seu Paulo tem energia e vigor para fazer parte de espaços como a Rede de Agricultores e Agricultoras Experimentadores/as do território da Borborema e o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Remígio, do qual é diretor há três mandatos. A quantidade de intercâmbios que participou nem sabe precisar, mais citou rapidamente “vários na Bahia, no sertão do seu estado, em Pernambuco”. Até palestra ele foi fazer no Mato Grosso do Sul em 2016. “Era pra falar o que era Banco Comunitário de Semente e o que era a Semente da Paixão”.
Se já visitou muitas famílias e comunidades rurais, semiárido afora, já recebeu também muita gente da região e até da França e Moçambique. “Nem me lembro a quantidade. Nestes intercâmbios, a gente ensina e também aprende”.
É certo que a propriedade de seu Paulo e Dona Zefinha está cercada de infraestruturas para torná-la mais resiliente à seca. E que seu Paulo tem acesso a informações e conhecimentos que lhe proporcionam maior condição de adaptação à severidade climática. Mas, se ele estivesse isolado, não participasse das diversas dinâmicas comunitárias como o banco de sementes, o fundo rotativo solidário, a rede de agricultores experimentadores, o sindicato, entre outros, quase nada disto seria realidade.
São nas relações e nos fluxos estabelecidos no âmbito comunitário – e também para além das comunidades – que se tecem os fios que sustentam as famílias frente às adversidades climáticas ou de qualquer outra perturbação externa, como a pandemia do novo coronavírus e os desmontes das políticas públicas de fortalecimento da agricultura familiar, da agroecologia e da convivência com o Semiárido, por exemplo.
“As propriedades mais inovadoras estão inseridas em redes e em formas coletivas de gestão de bens comuns”, garante Luciano. Segundo ele, isto tem a ver com a capacidade das comunidades desenvolverem atividades autogestionárias de recursos como a água, a biodiversidade, equipamentos coletivos, o conhecimento e também tem a ver com uma série de mecanismos de reciprocidade, como os mutirões e as trocas não só de produtos e dias de trabalho, mas também as imateriais, como o conhecimento.
Dentro deste cenário, chamam atenção os vários dispositivos de ação coletiva, como as máquinas forrageiras, os equipamentos que bombeiam água, os bancos de sementes comunitários, os fundos rotativos solidários, entre outros, que gerenciam os diversos recursos existentes nas comunidades, municípios e territórios.
“Os recursos existentes, quando regulados por redes descentralizadas, comunitárias e integradas, se ampliam. E a circulação destes recursos conferem qualidades que atenuam as perturbações do clima, fortalecem a autonomia da comunidade e mantém dinâmicas de inovação apesar de um quadro desmonte das políticas públicas para a agricultura familiar, que foram, em grande medida, as ativadoras destes processos locais”, confere Luciano.
Para Roselita Victor, da coordenação do Polo da Borborema, uma rede territorial de sindicatos rurais de 13 municípios, mais de 150 associações comunitárias, e uma associação de produtores agroecológicos, a EcoBorborema, é preciso refletir como as comunidades rurais assumem a trajetória de auto-organização e gestão coletiva nos últimos anos.
“Apoiar dinâmicas comunitárias fortalece a organização local a construir um olhar coletivo a partir de sua realidade, dos seus desafios e perspectivas de fortalecimento pensando na convivência com o Semiárido e nas mudanças climáticas”, assegura Rose.
Assentada da reforma agrária e sindicalista há mais de 30 anos, Rose lembra que nos anos de 1980, no território da Borborema, as associações só serviam aos interesses dos políticos. De lá pra cá, elas têm se tornado células coletivas muito importantes para a construção de forças nas comunidades rurais. “Quando as famílias se juntam, criam outra dinâmica”, atesta ela.
A partir desta ação, a AS-PTA e o Polo da Borborema estão sistematizando experiências de sete comunidades de sete municípios do território para perceber os mecanismos que acionam um maior nível de proteção e resiliência à frente aos efeitos das mudanças climáticas globais. O projeto é financiado pelo Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (FIDA), uma agência da ONU, e do Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA).
“Já realizamos seis oficinas comunitárias e seis oficinas de auto-organização das mulheres. Está faltando só uma comunidade do município de Queimadas que está com um alto índice de contaminação pelo Covid-19. Deixamos para fazer as reuniões no ano que vem”, informa Adriana Galvão, assessora da AS-PTA.
Ela contou também que, nestas oficinas, se estimula uma leitura compartilhada trajetória histórica da agricultura nas comunidades olhando para os quatro últimos momentos de seca que assolaram a região: 2012 até hoje, 1998, 1993 e 1983. Nos encontros, também são estimuladas análises das mudanças ocorridas na agricultura familiar e nas políticas públicas. Na conversa, uma pergunta central é: “Como estamos construindo uma maior capacidade para enfrentar estas mudanças no clima?”
Por que isto que foi relatado acima, a partir da leitura da equipe técnica da AS-PTA e de Rose, liderança do Polo, precisa ser acessado a partir das próprias comunidades para que se deem conta do quanto sua organização e união são essenciais para a manutenção da vida independente das circunstâncias externas.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Para enfrentar as mudanças do clima, comunidades auto-organizadas e capazes de gerir seus recursos materiais e imateriais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU