03 Dezembro 2020
É possível “perdoar a Deus”? Pode-se pensar em Deus como “culpado” e necessitado de perdão? A Comissão Episcopal para a Doutrina da Fé da Polônia interveio sobre um tema tão particular e anômalo com um pronunciamento específico no dia 14 de novembro passado: “Julgamento teológico sobre a prática do ‘perdão a Deus’”. O texto responde a uma tendência devocional que os bispos percebem que está crescendo progressivamente e que demanda discernimento.
O comentário é de Lorenzo Prezzi, publicado por Settimana News, 02-12-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Acompanhar a atividade das comissões teológicas episcopais sobre a doutrina da fé permite perceber os elementos considerados críticos na vivência cristã local, mas também perceber os primeiros sinais de sensibilidade transversais. Foi o caso do documento bósnio-croata sobre um movimento eclesial, assim como o julgamento dos bispos franceses sobre a Contrarreforma católica.
Os bispos poloneses observam “um crescente interesse entre os fiéis pela prática espiritual que convida a perdoar a Deus [...] Sendo uma prática relativamente nova, ausente nos textos litúrgicos da Igreja e em outras fontes clássicas da espiritualidade e da piedade cristã, deve ser cuidadosamente examinada sobre a sua coerência com o ensino da Igreja Católica e, consequentemente, recomendada ou censurada”.
Entre as possíveis origens de tal sensibilidade, são indicadas “as tendências psicológicas contemporâneas”, mas é fácil imaginar que também podem ter um destaque as reflexões teológicas sobre o Deus patiens, sobre o Deus que “sofre”, assim como uma maior prática das páginas da Escritura nas quais o orante se dirige a Deus de forma dramática ou acusatória. Às vezes, o “perdão a Deus” é um revestimento retórico para o mais tradicional “ato de esperança” ou a aceitação da vontade de Deus.
“Salientamos que (…) tal mudança pode levar a mal-entendidos inúteis e a associações equivocadas. Portanto, é melhor manter as expressões tradicionais enraizadas no ensinamento da Igreja Católica: ‘Aceito a vontade de Deus’ e ‘confio em Deus’.”
O “perdão a Deus” muitas vezes nasce de experiências dramáticas, diante do mal inocente ou incompreensível, como a doença e a deficiência, a perda dos entes queridos, a experiência da solidão e do abandono. Ele interpreta uma reação emotiva diante do mal e leva o fiel a expressar abertamente o rancor e o pesar “contra” Deus.
Com efeitos terapêuticos positivos. “Uma admissão tão sincera a Deus de um rancor contra Ele e, portanto, o seu pedido de perdão teriam efeitos terapêuticos positivos, levando à reconciliação consigo mesmo e com o Criador.” Mas, mais do que se interrogar sobre a responsabilidade de Deus, o dado maior é curar os próprios sentimentos, reparar a própria relação com Deus no pedido de perdão.
Nas Escrituras, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, não há exemplos de perdão a Deus. O perdoador é sempre Deus. Assim, Jesus não pede perdão pelo Pai, mas, ao Pai, pede perdão por todos. E também na tradição – dizem os bispos – não há nenhum vestígio de uma prática de perdão a Deus. Tal atitude, por sua vez, é contrária à doutrina revelada sobre a transcendência de Deus, a sua Providência e a própria lógica do perdão.
“A permissão divina do mal físico e do mal moral é um mistério, que Deus esclarece por seu Filho Jesus Cristo, morto e ressuscitado para vencer o mal. A fé dá-nos a certeza de que Deus não permitiria o mal, se do próprio mal não fizesse sair o bem, por caminhos que só na vida eterna conheceremos plenamente” (Catecismo da Igreja Católica, n. 324). A prática do “perdão a Deus” pode sugerir que os planos do Criador não são necessariamente benevolentes.
Além disso, o perdão está estreitamente ligado ao pecado. “Perdoar a Deus” poderia levar a pensar que Deus é o transgressor e capaz de cometer o mal. Com o paradoxo de que o ser humano se tornaria o curador de Deus. Em suma, a fórmula “perdão a Deus” é a projeção sobre Deus de comportamentos humanos.
É verdade que, nas Escrituras, há expressões extremamente sinceras e dramáticas de dor e de aflição, como esta de Jó: “Clamo para ti, e tu não me respondes. Eu insisto, e tu não te importas comigo. Tu te transformaste em meu carrasco, e me atacas com o teu braço musculoso. Tu me levantas e me fazes cavalgar o vento, sacudindo-me no furacão” (Jó 30,20-22).
“Salva-me, ó Deus, pois a água está chegando ao meu pescoço. Estou afundando no lodo profundo, sem nada que me segure; vou afundando no mais fundo das águas, e a correnteza me arrastando… Esgotei-me de tanto gritar, minha garganta queima e meus olhos se consomem, esperando por meu Deus” (Sl 69,2-4). E o mesmo ocorre em muitos outros salmos. Mas “os lamentos são sempre acompanhados da ação de graças e da oração, expressões de confiança na proteção de Deus”.
“Considerando, portanto, que a prática do perdão a Deus não se encontra na revelação e que contradiz o ensinamento revelado sobre a relação de Deus com o ser humano, sobre a Providência e sobre a natureza do perdão, deve-se afirmar que a prática do ‘perdão a Deus’ é incompatível com a fé da Igreja. Por isso, não pode ser entendida como expressão de uma compreensão mais profunda da Revelação de Deus. Portanto, não se deve defender que, embora a prática de perdoar a Deus não encontre razão na verdade revelada, ela pode, mesmo assim, ser entendida como o resultado da nossa compreensão progressiva da Revelação.”
Apostar nos efeitos terapêuticos positivos significa ignorar o fato de que, do “falso”, só pode nascer uma ajuda envenenada. “A prática de ‘perdoar a Deus’ pode instilar no coração de uma pessoa uma imagem de Deus como um transgressor onipotente que abusa maliciosamente do seu poder.”
É possível dar vazão à dor e às palavras que gostariam de interpretar e de atravessar o tempo da elaboração do luto, sabendo decantar o ressentimento e a raiva rumo a um encontro renovado com Deus através do Filho. Cristo “comprou-nos por um caro preço”, chamando-nos a confiar na sua graça e poder.
O texto conclui com uma citação da “Carta a Proba”, de Agostinho: “Portanto, nas tribulações, que tanto podem ajudar quanto prejudicar, não sabemos o que nos convém pedir, entretanto, como se trata de coisas duras, incômodas e contrárias à inclinação da natureza, seguindo um desejo comum a todos os homens, rezamos para que nos sejam tiradas. Porém, devemos mostrar que confiamos no Senhor (…) Por isso, se ocorre exatamente o contrário daquilo que pedimos na oração, nós, suportando pacientemente e dando graças por todas as eventualidades, absolutamente não devemos duvidar de que era mais conveniente para nós aquilo que Deus quis, e não aquilo que queríamos nós. Quem nos dá a prova disso é o nosso divino mediador, que, tendo dito: ‘Pai, se é possível, afasta de mim este cálice’, logo depois, modificando a vontade humana, que tinha em si a partir da humanidade assumida, acrescentou: ‘Mas, não como Eu quero, mas como tu queres, ó Pai’. É por isso que, precisamente pela obediência de um só, todos são constituídos justos.”