28 Julho 2020
A pandemia do coronavírus continua levantando inúmeras interrogações, envolvendo também o problema-Deus.
Thomas Hieke, teólogo e especialista em Antigo Testamento da Faculdade Católica da Universidade de Mainz, em uma contribuição publicada no sítio Katholisch.de, no dia 17 de julho, propõe uma reflexão ampla em que rejeita as teorias da conspiração na eclosão e na propagação do vírus e ressalta que Deus tem muito a nos dizer nesta crise.
O artigo foi traduzido ao italiano e publicado por Settimana News, 24-07-2020. A tradução para o português é de Moisés Sbardelotto.
Neste tempo de pandemia, a teologia se depara com várias interrogações: Deus é o responsável? Por que um número tão grande de pessoas têm que morrer de Covid-19? Na crise, se eu acredito em Deus, isso me ajuda? Em última análise, é mais humano buscar a origem do vírus em Deus do que em uma teoria da conspiração, culpando os chineses, Bill Gates ou a suposta dominação mundial judaica.
Uma religião serena e baseada na razão é melhor do que qualquer teoria da conspiração que queira atribuir a culpa, apenas por ódio, a certos grupos ou minorias.
Deus não é responsável em relação a ninguém e não deve prestar contas a ninguém. Deus nem precisa se ater às minhas ideias acerca do que é certo ou errado. Ele é sempre maior do que todo raciocínio e esforço nosso para fazer o que é certo.
A eclosão da pandemia do coronavírus é um fenômeno complexo. Mas, se existe o Deus todo-poderoso que professamos no Credo, algo pode acontecer neste mundo independentemente dele e totalmente apesar dele? Excluindo, naturalmente, aquilo que é atribuível ao comportamento e ao agir equivocado dos homens a quem ele deu liberdade, também para ir contra o seu mandamento e contra a razão.
No livro do profeta Amós, encontramos palavras provocadoras: “Ruge o leão na floresta, sem ter uma presa para atacar? (...) Cai o pássaro no chão sem o laço da armadilha? (...) Vem uma desgraça à cidade, não foi Deus quem mandou?” (Am 3,4-6; trad. Bíblia da CNBB). As imagens dizem que todo efeito tem a sua causa. Mas toda causa também pode ser compreendida como o efeito de uma causa mais a montante, e, portanto, pode-se fazer uma pergunta retrocedendo, em última análise, a Deus.
Porém, é importante ter em mente que aquilo que estamos dizendo não é uma afirmação definitiva sobre como Deus é em si mesmo. Nem a teologia o sabe. Ela reflete a interpretação com que os homens e mulheres tentam encontrar uma lógica para realidades complexas.
A contraprova se apresenta assim: se Deus não é a causa última (mesmo que sob a forma do simples “permitir”), quem é, então? O acaso? Então, o acaso é mais forte do que Deus? Como pessoas que creem no Deus único de acordo com o Credo judaico-cristão, não temos escolha. Se não é ele, quem é, então?
Jó também pergunta algo assim (9,24). Se se tratou de um acidente e de um acaso que Deus não podia impedir, então ele não é um Deus todo-poderoso.
Ninguém sente a necessidade de um feiticeiro assim. A alternativa seria crer em um Deus que não tem (mais) nada a ver com este mundo. E ninguém sente a necessidade de uma “entidade superior” assim.
Deus não joga xadrez com os seres humanos, sacrificando alguns peões de vez em quando. Toda pessoa que morre da doença importa, e a perda deve ser lamentada. No entanto, essas pessoas – como todos os nossos mortos – não caíram no nada, mas passaram para o mundo de Deus: “As almas dos justos estão nas mãos de Deus”: essa frase do Livro da Sabedoria é muito importante (Sb 3,1). Os falecidos estão bem seguros nas mãos de Deus. Mas aqueles que permaneceram no luto se sentem separados de seus entes queridos. E isso demonstra a nossa limitação e a nossa finitude como seres humanos.
A teologia não sabe o que Deus realmente quer, mas pode tentar formular reflexões, sem excluir Deus.
Acima de tudo, se poderia partir da convicção de que Deus não existe. Então, o que essa crise pode significar?
O grande problema na mídia, antes da crise do coronavírus, dizia respeito às mudanças climáticas, que infelizmente continuam. Enquanto isso, já são demasiadas as pessoas que morreram por causa da Covid-19. Mas, mais cedo ou mais tarde, todos os oito bilhões de pessoas morrerão devido a mudanças climáticas descontroladas (depois de todas as espécies de animais e de plantas que já morrem hoje).
Tudo isso caiu no esquecimento, mas mostra a urgência do problema – ou dos problemas. Ora, na discussão sobre as mudanças climáticas, sempre se disse que nenhuma restrição pode ser posta, que a economia deve girar, que devemos continuar assim para não perder o nosso bem-estar. De repente, um vírus silencia tudo.
Aqui fica evidente o que pode ser aprendido com a crise: contentar-se em ter menos e fazer o melhor usando os nossos recursos de maneira mais razoável.
O tão discutido e inevitável confinamento bloqueou rápida e quase totalmente uma máquina superaquecida. Agora, devemos aproveitar esta oportunidade para recomeçar do zero e colocar a nossa economia em bases diferentes e pôr à prova o nosso estilo de vida.
Toda medida deve ser verificada: deve ser encorajada a antiga ganância, que se baseia no desperdício de recursos e não se questiona sobre o amanhã? Ou devem ser promovidas novas tecnologias baseadas na sustentabilidade, na proteção do clima e na compatibilidade ambiental? Cada um deve se perguntar: o planeta e aqueles que nele habitam são ainda capazes de suportar aquilo que eu consumo, as minhas viagens, as minhas diversões e aquilo que eu desperdiço?
A situação anterior à pandemia não era um mundo saudável a se promover. Devemos repensar um novo “normal” e reconhecer aquilo que é realmente importante para a vida. Talvez Deus tenha querido nos fazer entender que não podemos continuar com esse tipo de economia. Brutal e global, assim como as mudanças climáticas também são brutais e globais.
Esse pensamento já se encontra no livro de Jó: “Pele por pele! Para salvar a vida, o homem dá tudo o que tem. Mas estende a tua mão e fere-o na carne e nos ossos, e então verás se ele não vai maldizer-te na cara!” (Jó 2,4-5). Foi isso que Satanás disse a Deus, e foi isso mesmo que ele quis dizer: se se atentar contra a sua saúde, o homem se preocupa, torna-se suscetível e começa a refletir, ou a rezar, ou a amaldiçoar.
Quem se coloca no lugar de Deus acabará se dando mal. “Guardareis minhas leis e meus decretos, pois o homem que os cumprir, por meio deles, viverá” (Lv 18.5), mas ele não obedecerá. Vai ao encontro deles alguém como homem (Jesus), e eles o crucificam. O que mais – se pergunta Deus – ainda deverei fazer para que cheguem a pensar?
Atualmente, o ser humano se relaciona com a terra de tal maneira que as coisas não irão muito bem. No entanto, Deus não quer que oito bilhões de pessoas pereçam junto com o planeta por causa das mudanças climáticas. Como leitor da Bíblia e como teólogo, acho difícil reconhecer aqui um plano de Deus.
Quando Deus liberta o seu povo do Egito, ele não manda uma legião de anjos para atacar os egípcios, mas divide as águas em duas partes. O Livro de Judite conta que um enorme exército inimigo sitia o último bastião diante de Jerusalém; também nesse caso Deus não manda um exército de anjos, mas uma mulher inteligente, corajosa e bela, Judite.
Como teólogo, reflito sobre esses episódios contados por homens e indago como as criaturas humanas imaginam Deus: Deus é totalmente diferente e age de maneira totalmente diferente em comparação com os homens que pensam segundo a sua lógica de guerra e de conquista.
O vírus, por isso, se adapta bem às histórias bíblicas. Trata-se de mitos e, portanto, da interpretação de alguns eventos. Com esses relatos, descubro um significado naquilo que observo.
Os virologistas verdadeiramente excepcionais, que fazem um trabalho incrível, não se interrogam sobre o sentido dessa pandemia. Quando eu afirmo que Deus quer nos fazer entender com a pandemia que não podemos mais continuar assim como antes, destruindo a Terra, eu não quero dizer que descobri uma verdade científica. Eu sei tanto quanto os virologistas se existe uma razão convincente do ponto de vista científico para explicar o surto dessa epidemia.
Do ponto de vista da razão, devemos aprender a mudar o nosso modo de usar os recursos deste mundo e a nossa atitude em relação aos pobres.
Do ponto de vista da teologia, que também implica o olhar voltado para Deus, Deus deu ao ser humano a liberdade de fazer e de desfazer. Mas Deus criou o ser humano à sua imagem e como seu representante para proteger esta terra como uma morada de vida para as plantas, os animais e as criaturas humanas. Ele quer que todos – plantas, animais e seres humanos – vivam em paz e na justiça nesta terra. É isso que a Bíblia ensina.
Deus tem o poder de fazer respeitar a criação. Ele pode escolher o caminho do vírus para impedir a ganância devastadora do homem. Isso se adapta bem às histórias e às imagens bíblicas de Deus.
A teologia volta a sua atenção para a razão: Deus deu ao ser humano um coração para pensar, assim ensina o sábio Jesus Ben Sirá (17,6). O vírus deve ser enfrentado com a razão e com a inteligência. A teologia pode e deve se contrapor, com os seus bons relatos baseados na Bíblia, às narrativas discriminatórias da conspiração. Aqui a teologia tem uma boa utopia para oferecer. Ela não prega a luta final, na qual os fracos terão que perecer primeiro.
Pelo contrário, a Bíblia fala de um mundo que oferece boas oportunidades de vida para todas as criaturas humanas – e não só a uma minoria dominante de homens ricos, brancos e ocidentais.
A teologia deve indicar o plano de justiça de Deus: ele quer meios prósperos de sustento para todos os seres humanos, os animais e as plantas. É isso que ensinam os textos bíblicos da criação (Gn 1-2; Sl 104). Os relatos bíblicos narram a incomum lógica de Deus ao predispor esses planos, lógica que não se conforma à lógica humana.
Além disso, no caso de alguém sentir a falta de um Deus misericordioso nesse raciocínio, eis a resposta: diante da possibilidade do dilúvio (Gn 6-9) e de uma total aniquilação de toda a vida (com exceção da arca) – esta também é uma experiência conceitual, um mito –, Deus foi misericordioso.
No entanto, ele não absolve simplesmente (Ex 34,6-7), mas pede as contas dos homens que colocou como seus representantes sobre a terra. Nós temos uma grande oportunidade, uma tarefa: aprender com esta crise e evitar os velhos erros.
Justiça, sustentabilidade, salvaguarda dos recursos naturais: estes são os imperativos do século; e com eles anda de mãos dadas a limitação da própria ganância e da míope busca do lucro. É a simples razão que nos pede isso.
Aqueles que creem em Deus devem entender que ele não quer que continuemos como antes, mas que mudemos o nosso estilo de vida, a nossa economia e a nossa convivência global, de modo que todos – humanos, animais e plantas – possam viver bem neste planeta.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Deus, o culpado? Artigo de Thomas Hieke - Instituto Humanitas Unisinos - IHU