03 Dezembro 2020
"Nove corpos jovens, quase todos pretos. A casa grande odeia nossa alegria — mas a imita, em cópias brancas. A polícia nos agride, porque não suporta olhar-se no espelho. Nossa cultura está no seu coração; nosso sangue, em suas mãos", escreve Bruno Ramos, articulador Nacional do Funk, ex-conselheiro nacional de Juventude e estudante de Sociologia e Política na FESP-SP, em artigo publicado por OutrasPalavras, 01-12-2020.
No dia 1º de dezembro de 2019, meu celular amanheceu gritando. Um massacre no fluxo da DZ7, em Paraisópolis, na madrugada, deixou nove vítimas, entre elas uma menina e quatro menores de idade. Na versão da polícia, dois homens em uma moto teriam atirado contra agentes da Rocam (Ronda Ostensiva com Apoio de Motocicletas) e fugido para dentro do baile, discurso que caiu por terra logo depois. A comunidade estava revoltada.
Protestos foram organizados. No dia 05 de dezembro, saímos do centro de Paraisópolis até as proximidades do Palácio dos Bandeirantes do estado para pedir que o governador recebesse as famílias das vítimas. Vale dizer, inclusive, que nenhuma delas vivia em Paraisópolis. O que pode ter facilitado que elas ficassem encurraladas diante da polícia sedenta.
A versão da polícia foi desmentida, mas as famílias ficaram sem resposta, sem acolhimento psicológico nem indenização por parte do Estado. E o que fica – além da ausência dolorida de 9 jovens periféricos – é mais um amontoado de reflexões sobre a inexistência de políticas públicas para a quebrada, o discurso falido de segurança pública, o aumento da criminalização não só desses jovens como dos seus territórios e, claro, da sua arte.
Como, há mais de dez anos, defendo o funk diante do poder público e tento estabelecer diálogo com todas as pontas desse ecossistema, o caso de Paraisópolis me pegou fundo, de maneira particular. Por que um baile precisa de dispersão violenta? Até quando vamos culpar a cultura que nasce do descaso do poder público no lugar de culpar o próprio descaso? Na mídia, a tentativa era de livrar a polícia que, segundo o governador João Doria, teve atuação exemplar. Traduzindo o que o governador disse naquele primeiro momento: matar pessoas pretas e pobres na favela é exemplar. É para isso que existe a polícia.
Da esquerda para direita. Em cima: Denys Henrique Quirino da Silva, 16; Gustavo Cruz Xavier, 14; Gabriel Rogério de Moraes, 20; Mateus dos Santos Costa, 23. Em baixo: Bruno Gabriel dos Santos, 22; Dennys Guilherme, 16; Marcos Paulo, 16; Luara Victoria de Oliveira, 18 e Eduardo Silva, 21.
Jovens mortos pela PM, em um baile funk em Paraisópolis, em 01/12/2019. (Fonte: Outras Palavras)
Nas semanas que se seguiram ao massacre, participei de inúmeras reuniões com representantes das polícias do estado, do governo e da prefeitura, Ministério Público, organizações de direitos humanos, além de representantes da Assembleia Legislativa do Estado e da Câmara dos Vereadores de SP. Sites de notícias, jornais e programas de cultura buscavam humanizar o funk e a cultura periférica, na tentativa de amenizar o noticiário violento que jogava a culpa pelas mortes daquele sábado sangrento na nossa conta: “Como os pais não sabiam onde esse menino tava?”, “Também, quem vai pra um lugar desses”? Aos poucos, o fato de jovens se divertirem em um baile ao ar livre vai se tornando um problema muito maior do que a invasão policial grotesca, cujo saldo é de nove mortes.
Os fluxos de rua ou bailes são problema e solução na quebrada. E, por isso, precisam de atenção de várias das secretarias do governo e não apenas da pasta de Segurança Pública. Parte grande das reclamações das comunidades, por exemplo, vem do fato de que os fluxos são barulhentos e deixam lixo na porta dos moradores. O que isso significa? Que faltam espaços adaptados para que a molecada curta tranquilamente, deixando as vias da favela livres. Ou seja, temos aí um problema das secretarias de Cultura e de Planejamento urbano.
Outra questão é a economia informal: a venda de bebidas e comida segura uma boa fatia da economia do território, que poderia ser potencializada com programas das secretarias de Finanças e Desenvolvimento. Se uma das razões da criminalização é o abuso de álcool e drogas ou pouca informação na hora de prevenir DSTs e gravidez precoce, temos uma questão de saúde pública e projetos de redução de danos trariam seguramente ótimos resultados.
Sobre as críticas ao conteúdo das músicas, que é o que eu mais ouço, apenas projetos que criem proximidade e confiança com quem produz e consome funk conseguem fazer diferença. Pelo menos, com Cultura e Educação presentes, o Estado pode apresentar outros horizontes, ampliar o repertório cultural da quebrada. Não que as pessoas não devam falar de putaria e ostentação. Cada um expressa o que sente, o que sonha, o que almeja. Mas por que, antes de reclamar da estreiteza das utopias da favela, não buscam possibilitar que a favela sonhe mais longe?
Bom, acabo de elencar os “problemas” dos fluxos nas quebradas e as secretarias que poderiam pensar maneiras de resolver seus mais variados aspectos. Agora, me respondam uma coisa: o lixo depois de festas, o barulho exagerado, o abuso de álcool e drogas, a hipersexualização em festas e o funk comendo solto, tudo isso acontece apenas em territórios marginalizados? Ou também podemos ver isso na Peruada da USP; na Virada Cultural; no Carnaval de rua em Pinheiros?
A cópia branca da cultura preta entra pela porta da frente, enquanto o original está aí para ser desprezado, proibido, inviabilizado… morto. Como bem disse um familiar de uma das vítimas do massacre de Paraisópolis: “Isso não teria acontecido assim, se essa festa fosse em Higienópolis”. Ele tem razão: bairros nobres recebem muito mais reclamações de barulho (de acordo com o G1, a região de Pinheiros fez quase 800 chamados no primeiro semestre de 2019, contra 60 de Paraisópolis), mas nunca têm suas festas interrompidas a bala paga pelo Estado. O preconceito e a repressão variam de acordo com o CEP.
Os policiais, mal-preparados e mal-remunerados, também são vítimas neste cenário. Fazem um estrago descomunal ao território a que – muitas vezes – eles mesmos pertencem. Quando falamos de acesso à cultura, saneamento básico e educação na quebrada, precisamos entender que também estamos pensando na qualidade de policiais que vão sair dali. Porque, em um país com tão baixas possibilidades de mobilidade social, são poucas as chances de se destacar por aí. A corporação e a estabilidade que ela oferece são, muitas vezes, uma rota de fuga da vida no crime ou na economia informal.
Desta forma, sem atenção na primeira infância e na juventude, sem acesso a aparelhos de cultura, temos a formação de duas categorias que se tornarão inimigas: uma juventude que segue pra vida no crime – outro lugar para se ter destaque e notoriedade dentro do território – e jovens adultos que, na tentativa de mostrarem o quão “diferentes” se tornaram, buscam na farda e na arma em punho uma maneira de legitimação. Ambos se consolidam neste cenário como eficientes instrumentos do ódio contra si mesmo. Colocados diante do espelho, os policiais disparam contra o reflexo, já que servem a uma corporação que tem como objetivo eliminar o que representam.
Dito tudo isso, é impossível olharmos para este episódio sem uma leitura sobre a criminalização da cultura negra e periférica, não só por parte do braço armado do Estado, mas também pela mídia, que tem um papel fundamental na reprodução de estereótipos e perpetuação de preconceitos. A morte na favela está naturalizada. Os argumentos não são racionais e não servem a outras áreas da cidade, onde filhos de procuradores, médicos e políticos podem estar transgredindo leis.
Para minimizar esse descaso, o movimento funk tem tentado criar mecanismos de valorização da cultura periférica. Em 2014 e 2016, foi instituído na cidade e no estado de São Paulo respectivamente, o dia 7 de Julho como dia oficial do Funk. Em julho de 2020, iniciamos uma articulação para garantir a data no âmbito nacional.
Para nós, é um dia não somente de comemoração, mas de reflexão. A data foi escolhida em memória do MC Daleste, grande nome do Funk Paulista, que perdeu a vida no palco, no dia 7 de julho de 2013. Mc Daleste é o único artista brasileiro a ter sido baleado durante um show. Um episódio que marcou não somente a história do funk, mas da música nacional como um todo. A data serve para homenageá-lo ao mesmo tempo em que nos lembra da responsabilidade que temos como movimento de trabalhar para fazer com que situações como esta ou mesmo a de Paraisópolis deixem de ser rotina.
Foi a politização do movimento funk que conseguiu emplacar a proposta que tramita hoje no Senado Federal, de reconhecimento do funk como manifestação cultural popular. Nessas três décadas de luta por autonomia, reconhecimento e respeito, tivemos de enfrentar o poder público em diversas ocasiões, como em 2017, quando tentaram enquadrar o funk como crime de saúde pública. Foi a nossa luta que barrou esse esforço de estigmatização da juventude e da cultura periféricas. Nós existimos, não só como culturalmente, mas politicamente também.
Apesar de difuso e segmentado em diversas vertentes, o funk reúne um público de cerca de 20 milhões de pessoas espalhado por todo o país. O ritmo e a estética que nascem desse movimento servem de cenário para novelas (como a própria Paraisópolis); animam o auditório do Faustão; fazem a alegria das baladas da classe média-alta; e projetam internacionalmente a cultura brasileira de uma maneira que não acontecia desde a Bossa Nova.
Então, o que faz com que nove jovens morram em uma ação policial em Paraisópolis? A resposta é simples: este país mascara seu passado. A violência que sofremos nas margens é o saldo de 400 anos de escravidão e mais de meio milênio de racismo institucional e contenção da cultura negra. Mas não vamos nos calar. Estamos organizados e nosso bonde segue firme na luta para existir e construir um futuro em que “andar tranquilamente na favela onde eu nasci” não seja só um hino nostálgico.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Um ano após Paraisópolis, funk vive e se politiza - Instituto Humanitas Unisinos - IHU