25 Novembro 2020
O Governo Federal chegou a informar três prazos para normalizar o serviço no estado, mas nenhum foi cumprido.
A reportagem é de Dyepeson Martins, publicada por Agência Pública, 24-11-2020.
“Vai normalizar 100%” foi a frase mais ouvida pela auxiliar de serviços gerais Francilene Medeiros, de 46 anos, em relação a ativação de geradores termoelétricos para suprir o fornecimento de energia no Amapá. Contudo, mesmo com o funcionamento dos equipamentos, a promessa do Governo Federal não se concretizou e os moradores permanecem convivendo com os prejuízos provocados pelo apagão que atinge o estado há 23 dias — desde o último dia 3.
Os geradores foram ativados no sábado (21), durante a visita do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) ao Amapá. Acompanhado do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM), e do governador do estado, Waldez Góes (PDT), o presidente da República foi recebido por apoiadores e também por manifestantes que gritaram “fora, Bolsonaro” e outras palavras de insatisfação.
“Disseram que ia ser 100%, mas eu não sei o que aconteceu que continua no rodízio”, disse a auxiliar de serviços gerais sobre o sistema de racionamento de energia implantado pela Companhia de Eletricidade do Amapá (CEA).
O Ministério de Minas e Energia (MME) chegou a informar três prazos para a normalizar a situação, mas nenhum deles foi cumprido. Com isso, os maiores impactos do apagão são sentidos pela população periférica, que vive em meio a fiações velhas e estruturas – como cabos de alta tensão e transformadores – danificadas.
Na maioria dos bairros, a energia é oferecida em intervalos de 3h e 4h. Em algumas regiões, o fornecimento se tornou mais frequente e chega a permanecer mais de 12 horas. Porém, ainda há reclamações sobre interrupções constantes e falhas na distribuição.
Após o início do racionamento, algumas atividades no estado normalizaram. Os moradores passaram a conseguir abastecer os veículos, fazer compras e sacar dinheiro sem enfrentar longas filas. Além disso, os sinais de internet e das operadoras de celular também melhoraram. Mas a medida não conseguiu evitar a continuação dos prejuízos e transtornos.
As dificuldades provocadas pela crise energética refletem no sentimento de impotência da Francilene sobre a situação dela e dos três filhos. “Eu me sinto mesmo, assim, no meio disso tudo? Me sinto um nada, não sei o que que eu faço”, lamentou.
Aguardando por um fornecimento normal, uma região da Zona Norte de Macapá começou a semana com um susto durante um curto-circuito. Vídeos compartilhados nas redes sociais mostram o desespero dos moradores. “Gente, socorro! Meu Deus do céu, tá estourando tudo aqui (…)”, disse a autônoma Ane Caroline Lobato, de 28 anos, em uma das gravações.
Os moradores acreditam que o problema tenha sido causado pelas interrupções constantes na alimentação dos transformadores do bairro. A Companhia de Eletricidade do Amapá (CEA) alega que o curto-circuito foi provocado por uma ventania que ocorreu na capital.
A ventania a qual a empresa se refere teria acontecido após as chuvas fortes que atingiram o estado no último domingo (22). Várias ruas de Macapá ficaram alagadas. A Defesa Civil e o Corpo de Bombeiros registraram mais de 30 pontos de alagamento.
“Acontece sempre, sempre. (…) Na última vez chegou energia de meia-noite, que era o racionamento, aí quando chegou quase todo mundo ligou [os eletrodomésticos] e quando todo mundo ligou estourou de novo [a rede elétrica]”, contou a autônoma Ane Caroline Lobato, de 28 anos. “O rodízio não funciona, praticamente. (…) A gente tá no pico do esgotamento físico e mental”, ressaltou.
Na mesma região, mora a dona de casa Maria de Jesus Carvalho, de 62 anos. Ao levantar as mãos e apontar para os postes de iluminação, ela recorda os momentos de pânico que passou temendo pela segurança da família. “A gente tá sofrendo as consequências desse rodízio”, disse a aposentada, acrescentando ser comum ficar um dia inteiro sem luz.
À noite, devido a temperatura do estado – que tem um clima quente e úmido – é comum encontrar famílias reunidas em frente às casas pela ausência de um ambiente refrigerado. Mas o desconforto continua mesmo em alguns locais abertos devido ao “carapanã”, que é o nome regional dado a um mosquito sugador de sangue, conhecido em outras regiões como pernilongo.
Os relatos de noites mal dormidas passaram a fazer parte do cotidiano dos amapaenses. Algumas pessoas dormem de janelas abertas, outras deitam em cima de toalhas molhadas como alternativa para a amenizar o calor durante a madrugada. Mesmo assim, ter uma noite de repouso é quase impossível para quem não tem condições financeiras de ter um gerador ou de pagar por um hotel com sistema próprio de energia.
“A gente sai do serviço ‘pra’ ter o descanso né, mas chega em casa e não tem luz. Passo três [horas] com energia e três sem. E aí, chega em casa e não tem como descansar”, contou o serviços gerais Guilherme Bastos, de 57 anos, em um ponto de ônibus totalmente no escuro, no Centro de Macapá. Ele mora no bairro Vale Verde, uma área periférica onde boa parte dos moradores residem sobre palafitas em casas de madeira construídas em uma região alagada.
Além da tranquilidade, pequenos estabelecimentos comerciais também perdem dinheiro. As quedas frequentes de energia provocam a queima de equipamentos e transformam a rotina de trabalho dos donos e funcionários, que precisam se adequar aos horários do rodízio. Em alguns locais, o cronograma de racionamento não é cumprido e os comerciantes contam com a sorte para trabalhar.
Em uma padaria na Zona Norte da capital, por exemplo, os pães eram preparados durante o dia. Mas agora, a dona do estabelecimento conta que a produção está “parcelada”. Os funcionários trabalham de sobreaviso e as vendas caíram substancialmente.
“Eles [funcionários] tão trabalhando no horário da noite quando chega a energia. E as vezes, quando chega de dia, eles trabalham e ‘pow’ vai embora a energia de novo”, descreveu Natana de Cássia, de 28 anos, que abriu o pequeno negócio em 2015. “Antes a gente tinha o horário certo: dormia de noite ‘pra’ trabalhar de dia. Agora a gente tá tendo sono de 3 horas só”, explicou.
A tranquilidade e a rotina do Dorenildo Albuquerque também foram afetadas devido ao “liga e desliga” da rede elétrica. O comerciante, de 26 anos, disse ter perdido três freezers desde o dia 3 de novembro. Apesar da distribuidora dele continuar de portas abertas, boa parte das bebidas – como sucos e refrigerantes – são vendidas quentes em decorrência da falta de dinheiro para consertar os equipamentos. O valor do prejuízo, segundo ele, ultrapassa R$ 5 mil.
“É muito complicado a gente que paga imposto tudo certinho e passa por uma dificuldade dessas”, falou o jovem, que mora nos fundos do estabelecimento e diz ter perdido o sossego em casa e no trabalho. “Dormir? Não! é passar a noite. Porque ninguém consegue dormir. O cara trabalha de oito da manhã às dez da noite e além de não ter energia não tem água”, acrescentou.
A falta de água citada pelo comerciante é um outro problema enfrentado pelos moradores desde o início do apagão e que permanece sem solução. Parte da população do estado – principalmente de regiões mais pobres – continua sendo abastecida por carros-pipa. Várias pessoas, no entanto, reclamam que a água disponibilizada é suja e imprópria para o consumo.
As 13 cidades atingidas pelo apagão passaram por mais um blecaute total no dia 17 de novembro. As regiões ficaram totalmente no escuro por mais de cinco horas. Em nota, a Eletronorte disse que houve um desligamento na Usina Hidrelétrica de Coaracy Nunes, em Ferreira Gomes, a 137 quilômetros de Macapá. O Ministério de Minas e Energia informou que o caso está sendo investigado e que se tratou de “um evento externo à usina.”
Hotéis com gerador lotaram em menos de duas horas e vários protestos foram registrados em Macapá e Santana, distante 17 quilômetros da capital. A Polícia Militar informou ter acompanhado quase 120 manifestações desde o início do apagão.
Moradores estão indo às ruas e queimando pneus e pedaços de madeira para cobrar a solução imediata dos problemas decorrentes da maior crise no fornecimento elétrico do estado nos últimos anos. Muitos manifestantes denunciaram a agressão de militares durante os atos e a PM chegou a informar ter sido “mais rigorosa” com pessoas que estavam com “os ânimos exaltados.”
A primeira promessa de restabelecimento total do fornecimento de energia elétrica foi dada pelo ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, em uma entrevista concedida ao lado do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM- AP). Na ocasião, o ministro afirmou que o fornecimento seria normalizado em um prazo de dez dias.
Durante uma visita ao Amapá, no último dia 7, um novo prazo foi divulgado. Desta vez, Albuquerque disse que a energia seria reestabelecida em 100% até o final da semana seguinte (entre os dias 13 e 14 de novembro) com a contratação de 44 geradores movidos a combustível.
No sábado (21), mais uma frustração para quem esperava ter luz 24h. Desta vez, o presidente Jair Bolsonaro esteve no Amapá para ligar os geradores termelétricos, alugados para suprir o consumo no estado. O Governo Federal chegou a anunciar que 100% dos municípios teriam energia, mas em seguida disse que o fornecimento seria normalizado somente na quinta-feira (26).
Na manhã desta terça-feira (24), a Linhas de Macapá Transmissora de Energia informou ter restabelecido a carga nos dois transformadores da subestação onde ocorreu o incêndio que provocou o apagão.
Uma das máquinas – a menos danificada no incêndio – passou por reparos e voltou a funcionar no último dia 7. A outra, foi transportada de Laranjal do Jari, no Sul do Amapá. O equipamento, que pesa 200 toneladas, levou mais de trinta horas para chegar à capital em uma viagem de balsa.
Conforme o Ministério de Minas e Energia, o funcionamento das duas máquinas é suficiente para suprir 100% da demanda do estado, embora a subestação funcionasse com três transformadores. Um terceiro transformador, requisitado de Boa Vista (RR), deve ser instalado e entrar em funcionamento apenas em dezembro.
A crise no sistema elétrico acontece em meio a pandemia de covid-19. O último boletim divulgado pelo Governo do Amapá aponta a confirmação de mais de 56 mil casos e 789 mortes. O apagão iniciou um dia depois do governador assinar um decreto mantendo medidas restritivas para evitar a proliferação do vírus.
“A gente não tem muita informação, só expectativa e medo né. Porque ninguém vai consertar o nosso prejuízo”, comentou a autônoma Silvana Magalhães, em frente a casa onde mora com mais nove familiares. Aos 45 anos, ela disse nunca ter passado por uma situação assim. “Só quero que melhore”, completou.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Amapá: os impactos do apagão na população periférica: “me sinto um nada” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU