14 Novembro 2020
"Foram quatro anos em que ela – a democracia – caminhou sobre um fio tênue, suspenso num abismo sem fundo. A verdade é que os mandos e desmandos de Trump, em lugar de evidenciar a postura conservadora dos republicanos, vinham timbrados com a marca de retrógrados. Eleito com as regras do processo democrático, o ex-presidente cedo revelou, em seus gestos, palavras e ações, boa dose de conduta autoritária e ditatorial", escreve Alfredo J. Gonçalves, padre carlista, assessor das Pastorais Sociais e vice-presidente do SPM – São Paulo.
O magnata estadunidense Donald Trump pode construir uma mansão de ouro, uma estátua de ouro, além de ostentar um topete da cor do ouro. Mas sua casa tem telhado de vidro e seus pés são de barro. Lutou com potências externas e poderosas, como Irã e a China, por exemplo. Porém, foi derrotado por um “inimigo invisível, silencioso e letal”: o novo coronavírus. Possui uma aparência virulenta de homem forte, soberbo e potente. Entretanto, foi sintomaticamente infectado e corroído em suas entranhas pela pandemia Covid-19. Acabou por se tornar, dessa forma, o símbolo emblemático e paradoxal de uma teoria negacionista que se volta contra si mesma. Testemunha, às avessas, uma dupla derrota. De um lado, perdeu para o que chamou de simples gripe, tendo que se internar no hospital; por outro, e em grande medida devido à sua atitude negligente e irresponsável para com a gravidade do flagelo, para com suas mais de 230 mil vítimas fatais e para com as famílias enlutadas, perdeu também a eleição para o adversário democrata e sua vice-presidente mulher, negra e descendente de estrangeiros.
O negacionismo obscurantista, a mentira obsessiva e a barbárie desenterrada cobraram o seu preço. Ficará para a história dos Estados Unidos e do mundo como um furacão tempestuoso e devastador. Deixa em seu itinerário obtuso e prepotente um rastro de feridas abertas, difíceis de cicatrizar. Além de promover o armamento e a divisão no país, exacerbou uma polarização político-ideológica que não ajuda os cidadãos a se reencontrarem. O próximo presidente Joe Biden, e sua vice Kamala Harris, terão em mãos a tarefa gigantesca e delicada de costurar e tecer novamente os laços e valores que representam o tecido social da democracia naquele país. Foram quatro anos em que ela – a democracia – caminhou sobre um fio tênue, suspenso num abismo sem fundo. A verdade é que os mandos e desmandos de Trump, em lugar de evidenciar a postura conservadora dos republicanos, vinham timbrados com a marca de retrógrados. Eleito com as regras do processo democrático, o ex-presidente cedo revelou, em seus gestos, palavras e ações, boa dose de conduta autoritária e ditatorial.
Terminou de forma medíocre e melancólica. Depois de ter sido alçado ao posto mais elevado do escalão hierárquico, tentou queimar a escada para evitar que outros a usassem. Com o mesmo processo eleitoral com que subiu à Casa Branca, porém, teve de abandoná-la. E aí, feito menino mimado, tentou ameaçar, espernear, chantagear e desqualificar a votação que arrancou dele o “brinquedo” do trono, mas os números e a tradição falaram mais alto que sua bizarrice estéril e infantil. Vencido pelo vírus pandêmico, cuja potência devastadora foi ignorada, ridicularizada e menosprezada, procurou orquestrar um clima pandemônico. Semelhante estratégia, entretanto, só serviu para revelar um caráter ainda mais pequeno e mesquinho. A tal ponto que lhe faltou aquela saudável mistura de humildade e grandeza para reconhecer a vitória do adversário e retirar-se a seu posto de simples cidadão. O tirano que se nutre do oportunismo de seu potencial e de sua influência, depois que alça voo como uma águia sedenta de altura, manifesta enorme dificuldade de descer e encontrar um ramo para repousar em paz.
O telhado de vidro se estilhaçou e os pés de barro pulverizaram-se. Em tal cenário, sofrem os cidadãos bem-intencionados. Sofrem também as instâncias, instituições e órgãos democráticos. Sofrem, ainda, os canais, instrumentos e mecanismos de participação popular, não apenas em território estadunidense, mas em todo o mundo. É conhecida e notória a dificuldade de conciliar liberalismo e democracia. Enquanto esta última se bate pela igualdade de oportunidades, aquele estimula a concorrência implacável, legitimando na política econômica a lei da seleção natural e a vitória do mais forte, núcleo da teoria de Darwin. Mas quando nem sequer as regras mínimas de um pleito nacional são respeitadas, então é a sobrevivência mesmo da democracia que está ameaçada. E o está num dos países que historicamente mais contribuiu para torná-la possível e cada vez mais consolidada e universalizada.
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Telhado de vidro e pés de barro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU