14 Novembro 2020
"O Beethoven de Simonelli é totalmente contemporâneo para nós, até mesmo na aceitação do sofrimento, gênio absoluto, mas com uma vida desordenada, músico excelente condenado a uma surdez dolorosa, ele é definido como um 'homem ávido por companhia, partilha, afeto' e depois 'ascético, nada de mago'", escreve Sergio Valzania, em artigo publicado por L'Osservatore Romano, 12-11-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo ele, "o agnosticismo um tanto ingênuo, característico do Iluminismo e da Revolução Francesa, está muito distante de Beethoven".
"Cercando Beethoven" (Procurando Beethoven, em tradução livre) por Saverio Simonelli, recém-publicado pela Fazi (Roma, 2020, 240 p. euro 18), é um romance complexo e ambicioso, construído como uma planta trepadeira luxuriante enrolada em uma história de amor ambientada na Viena de 1808, sob a constante ameaça de uma nova chegada das armadas napoleônicas. É a guerra que terminará com a Batalha de Wagram. Personagens reais aparecem com discrição na história, desde os irmãos Wilhelm e Alexander von Humbold, um filósofo, o outro explorador, até o escritor Franz Grillparzer, o primeiro biógrafo de Beethoven.
Os soldados franceses, nenhum dos quais jamais aparece no palco montado por Simonelli, representam um perigo menor para os protagonistas do que aquele constituído por uma presença negativa, oculta mas iminente, aquela de Emanuel Schikaneder, o empresário, libretista, ator e cantor para quem Mozart escreveu A flauta mágica e que interpretou Papageno na primeira apresentação.
Simonelli confia a esta figura secundária e misteriosa da história da música a missão de representar uma espécie de baixo contínuo na história, um contraponto antiquado ao florescimento da nova temporada estética e cultural personificada por Beethoven.
De fato, o romance apresenta o grande músico como intérprete de um humanismo renovado e luminoso, confiante, que está se libertando definitivamente de todas as superstições, de todas as sombras crepusculares, em que a alquimia perdeu sentido, tanto que o protagonista, o jovem pianista Wilhelm Werner, manifesta repulsa até pelos chás de ervas que lhe são oferecidos.
Uma história de amor imaginária entre dois jovens de 20 anos constitui uma oportunidade para Simonelli expressar um afeto real, profundo e maduro por aquele que julga sem hesitações o maior músico de todos os tempos. Um sentimento que também se revela pela discrição. Embora presente na história desde o início, no desejo de conhecê-lo que anima o protagonista e os coadjuvantes, Beethoven entra em cena bastante tarde e suas aparições são sempre dosadas com cuidado, contidas, como se o autor não quisesse incomodar em demasia o grande personagem ou temesse diminuir seu prestígio tratando-o com excessiva familiaridade intelectual.
Referindo-se ao compasso deixado sem notas por Beethoven no final de muitas de suas composições, Simonelli faz o jovem Wilhelm lembrar a insistência de seu professor de música: “Até o silêncio, aquele silêncio ali, você tem que tocá-lo”. Uma tensão interpretativa que evoca a passagem do Apocalipse, na abertura do sétimo selo: “Fez-se silêncio no céu quase por meia hora”.
A novidade que o autor reconhece em Beethoven em relação aos músicos que o precedem está de fato ligada também a um renascimento religioso, constitui uma saída positiva do passado, de intensa espiritualidade, com a qual termina o período da reforma católica, chegando a conquistar uma relação direta e madura com Deus, não mais velado por qualquer forma sobrevivente de conflito confessional ou esoterismo maçônico.
Um mal-entendido a respeito de uma carta do baralho para o jogo do mercador de feira que pertenceu a Mozart, na qual o símbolo alquímico da pirâmide é substituído por puro acaso pelo da Esfinge, ironicamente declara o desaparecimento de crenças agora ligadas ao passado.
Pelo contrário, o Beethoven de Simonelli é totalmente contemporâneo para nós, até mesmo na aceitação do sofrimento, gênio absoluto, mas com uma vida desordenada, músico excelente condenado a uma surdez dolorosa, ele é definido como um "homem ávido por companhia, partilha, afeto" e depois "ascético, nada de mago".
A confirmação dessa intuição a respeito da espiritualidade próxima a nós do grande compositor vem de citações textuais retiradas da correspondência de Beethoven.
Às monjas Ursulinas de um convento ao qual concedeu gratuitamente algumas peças para um concerto de caridade, escreve "não há necessidade de muitos agradecimentos: eu agradeço Aquele que me permitiu ser útil às vezes com a minha arte" e "Se as reverendas madres, mesmo assim, querem mostrar sua gratidão de alguma forma, que se lembrem de mim em suas devotas orações."
No testamento escrito por Beethoven em Heiligenstadt, em outubro de 1802, lemos "Deus Todo-Poderoso, que me olhas até as profundezas da minha alma, que vês no meu coração e sabes que está cheio de amor pela humanidade e pelo desejo de obras boas".
O agnosticismo um tanto ingênuo, característico do Iluminismo e da Revolução Francesa, está muito distante.
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