31 Outubro 2020
Depois da maior eleição desde a retomada da democracia, no plebiscito de domingo, Constituinte testará força do Chile para enterrar legado de Pinochet.
O plebiscito do último dia 25 no Chile não foi uma votação qualquer, e tem muitas razões para ser celebrado como uma vitória maiúscula. Primeiro, porque num país em que o voto é facultativo desde 2012, o plebiscito levou às urnas, em plena pandemia, mais da metade, 51%, dos quase 15 milhões de chilenos aptos a votar. Isso significa dizer que mais gente foi votar a favor de se construir uma nova Constituição do que as que elegeram o atual presidente da República, Sebastián Piñera.
Para se ter ideia, Piñera obteve 3,8 milhões de votos no segundo turno, em 2017. Ao passo que no domingo passado 5,9 milhões de chilenos disseram não à atual Constituição, redigida sob a ditadura de Augusto Pinochet em 1980. Foi a votação com a maior presença de eleitores desde o retorno à democracia. E o resultado – 79% de “aprovo” para uma nova Constituição – foi contundente.
“O resultado mostra que o povo chileno tem uma disposição fervorosa de superação do legado de Pinochet. Isso é o mais importante”, afirma a historiadora Joana Salém. Doutoranda em História Econômica na Universidade de São Paulo (USP), com tese sobre o Chile, e estudiosa da América Latina, Joana relata, em entrevista à RBA, outros importantes motivos para que o resultado do plebiscito chileno seja amplamente comemorado. Entre eles, o fato de o plebiscito ter vindo de uma mobilização social sem precedentes na história recente do Chile, que explodiu nas ruas do país há um ano. “O povo começou essa história. Não houve uma vanguarda partidária que puxou o processo. A classe política tradicional foi obrigada a aderir. O processo de luta popular foi iniciado de baixo pra cima.”
Mais do que aprovar uma Convenção Constituinte, a ser eleita em 11 de abril de 2021, o plebiscito do Chile decidiu por uma paridade histórica: metade da composição parlamentar será formada por mulheres, e metade por homens. Além de haver uma cota para as populações indígenas. Além disso, o plebiscito decidiu que o Chile elegerá integralmente seus representantes para a tarefa constituinte. Assim, derrotou-se uma proposta que previa manter metade dos atuais congressistas, e que apenas metade das vagas fosse oferecida aos novos eleitos.
Joana Salém cita o protagonismo dos movimentos de mulheres, estudantes, juventude, mapuches, trabalhadores vítimas do sistema de aposentadorias privadas – “um escândalo” – no processo de reconstrução de uma nova ordem democrática. “Que possa gerar, talvez, canais mais verdadeiros de representatividade”, diz. Ela critica, porém, os acordos firmados por setores da centro-esquerda desde o fim da ditadura, em 1990. E alerta que o quórum de dois terços para aprovar as novas leis a partir do ano que vem, estabelecido por um acordo do qual a centro-esquerda participou em novembro do ano passado, pode frustrar os movimentos que conquistaram a Constituinte. Isso porque, como observa a historiadora, “com apenas um terço dos votos a direita pinochetista poderá bloquear qualquer mudança substantiva antineoliberal da Convenção Constituinte”.
“É possível criar uma maioria de mais de dois terços, uma maioria antineoliberal? Digamos que não é impossível”, afirma. E ressalva: “Digamos que o 25 de outubro foi só o começo de um processo de superação do legado pinochetista. E que os chilenos ainda terão muitos desafios e obstáculos”.
A entrevista é de Paulo Donizetti de Souza, publicada por Rede Brasil Atual - RBA, 29-10-2020.
Podemos dizer que mulheres, juventude e periferias concentraram a força das viradas vistas nos últimos dias no continente, na Bolívia e Chile?
O fato de esses sujeitos – mulheres, juventude e periferias – estarem ativos nesses dois países em busca de uma nova hegemonia não significa que exista termos de comparação o suficiente. Isso porque, em primeiro lugar, o Chile não viveu uma onda progressista como viveu a Bolívia. No ciclo em que está a Bolívia de Evo Morales, de 2005 a 2019, o Chile foi governado alternadamente pela centro-esquerda neoliberal, com Michelle Bachelet, e pela direita neoliberal, com Sebastián Piñera. No Chile, centro-esquerda e direita fizeram uma pacto de preservação da Constituição do Pinochet, de 1980. Então, o que ocorre hoje no Chile é uma insurreição popular com poucos canais de representatividade político-partidária.
Desde o ano passado, existe uma insatisfação evidente nas ruas, e uma indignação crescente de pessoas que não aguentam mais tantas injustiças e desigualdades. Esse neoliberalismo sem freios representado pela Constituição pinochetista, em que tudo é pago, tudo é mercadoria, a água é completamente privatizada no Chile. A educação endivida os estudantes, porque a universidade pública é paga. A saúde também é extremamente mercantilizada. Os chilenos estão muito endividados.
Os efeitos da selvageria do pensamento neoliberal teriam passado a ser sentidos na carne por mais gente?
Esse neoliberalismo profundo, radical, da Constituição de 1980, causou uma insatisfação popular dos de baixo contra os de cima. E foi isso aí que a gente viu acontecer agora, no plebiscito chileno do dia 25 de outubro. Uma insatisfação social enorme, organizada nas bases, nos movimentos sociais.
E o que acontece na Bolívia já é bem diferente. Porque a Bolívia teve uma participação vibrante, vanguardista, na onda progressista sul-americana. Por exemplo, foi um dos países que contribuiu com a formulação do Estado plurinacional, que é hoje um conceito que o Chile almeja para sua nova Constituição. Então, a Bolívia, de certa maneira, se adiantou na compreensão sobre coexistência dos povos indígenas originários junto com uma sociedade baseada nos valores dos colonizadores, digamos assim. Então, a necessidade de uma plurinacionalidade na Bolívia se expressa também em legislações que defendem a autonomia territorial desses povos originários. Que, inclusive, podem ter seus próprios regimes políticos e, enfim, uma série de outros dispositivos constitucionais que foram criados em 2009 na Bolívia, a partir do governo do Evo Morales.
Isso não quer dizer que o governo do Evo Morales não teve contradição, pois foi um governo que viu rupturas importantes dos movimentos indígenas, contrários a algumas ações. Por exemplo, a construção de rodovias, obras de infraestrutura. Esse paradigma neodesenvolvimentista, extrativista, que deixou insatisfeitos setores importantes de base de apoio do Evo. E essa insatisfação foi um dos fatores que permitiu o enfraquecimento político do Evo. E criou, portanto, condições para que a extrema direita se aproveitasse em 2019 e desferisse esse golpe de Estado.
O que você destaca de mais importante no resultado da votação de domingo?
Acho que o mais importante do resultado da votação de domingo no Chile foi a expressiva maioria. Foi um verdadeiro plebiscito contra Pinochet. É possível dizer que 79% dos chilenos rejeitam o que foi a ditadura do Pinochet e a suas heranças, enquanto 21% ainda apoiam. Então, é muito simbólico que isso tenha sido tão esmagador. Que tenha deixado as direitas políticas tão encurraladas, e tão minoritárias.
Outro aspecto importante foi a participação popular na eleição. A eleição de Piñera, em 2017, teve 47% do eleitorado (no 1º turno), dentro de um conceito de voto facultativo. Isso significa que 53% dos eleitores chilenos não participaram da eleição que escolheu o atual presidente. É muito pouca legitimidade. Ao passo que agora, no plebiscito, com voto também facultativo, quase 51% dos chilenos participaram.
Milhões de pessoas que foram participar do plebiscito não votaram na eleição de Piñera. Porque não se reconhecem representadas no sistema eleitoral e nesses partidos que concorreram. E ao participar do plebiscito, indicam que acreditam na possibilidade de uma reorganização muito profunda da institucionalidade e do sistema político do país. Que possa gerar, talvez, canais mais verdadeiros de representatividade. Então, é um resultado que mostra que o povo chileno, na sua maioria, tem uma disposição fervorosa de superação do legado de Pinochet. Isso é o mais importante.
Quais as principais marcas desse crescimento da adesão popular ao desejo de transformações no Chile?
Acho que “adesão popular” não é a melhor expressão para explicar o que aconteceu no Chile. Ao contrário, foi o povo que começou essa história. Se teve alguma adesão, foi dos setores da classe política que foram obrigados a aderir a posteriori ao processo de luta popular – iniciado de baixo pra cima. Isso é muito importante, pois não houve uma vanguarda partidária que conduziu essa proposta e que puxou o processo.
Foi um processo social, construído nos últimos 20 anos, desde que o movimento estudantil emergiu no Chile como sujeito político desestabilizador da hegemonia neoliberal. Primeiro em 2006, depois 2011 novamente, com mobilizações de massa que tornaram o tema da educação inescapável para os governos neoliberais. A gratuidade da educação, a necessidade de considerar a educação como um direito, não como uma mercadoria.
Além disso, o movimento No Más AFP (Não Mais às Administradoras de Fundos de Pensão privadas, controladas por bancos), dos aposentados contra a previdência 100% privatizada no Chile, é um movimento popular muito relevante e expressivo. Os idosos participam das marchas, e são sujeito social ativo do país também. E quanto mais trabalhadores foram se aposentando no sistema do Pinochet – o José Piñera, irmão do atual presidente, foi quem criou o sistema privado da AFPs –, mais o movimento cresce. Isso porque mais pessoas ficam revoltadas com as condições em que estão vivendo na velhice, passando por muitas penúrias. A ponto de ter de trabalhar até morrer. Então, realmente é um escândalo o sistema previdenciário chileno.
Os povos Mapuche também, desde os anos 1990 – na verdade desde o século 19 –, lutam pela sua autonomia territorial. E esses povos têm se organizado e denunciado a violência dos carabineiros contra eles, contra seus territórios, a violação de seus direitos. Esses indígenas também estão lutando faz tempo, e se incorporaram em 2019 à luta pela Constituinte. Isso pra ficar só em três setores: estudantes, aposentados e indígenas.
As mulheres no Chile também têm se organizado de maneira expressiva. O movimento feminista chileno é muito plural na luta contra violência contra as mulheres. Tem denunciado muitos casos de assédio, tem fomentado essa transformação cultural pela qual a América Latina tem vivido. É sempre importante lembrar a importância simbólica daquela performance artística que aquelas meninas chilenas fizeram e que rodou o mundo – Un Violador en Tu Camino. E que foi reproduzida e reinventada em mais de 50 países. Então, o movimento feminista mundial se expressou com solidariedade ao movimento das meninas chilenas. Portanto, elas foram fortalecidas por essa proposta comunicativa artística.
Linguagem, métodos e signos utilizados pelos movimentos de resistência foram mais eficientes do que os discursos tradicionais?
Na realidade, se fosse fazer uma síntese de tudo isso, 2019 foi a convergência de uma série de movimentos populares, sociais, que têm sido construídos de baixo pra cima. E que pressionaram as classes políticas, inclusive a esquerda e centro-esquerda, para uma agenda mais substantiva de mudanças. E que seja orientada por um horizonte mais popular de direitos sociais e de liberdade política. Ainda existe muita repressão do Chile. E perseguições que aconteceram desde o ano passado principalmente, a partir da mobilização do estalido social. Então a síntese seria essa.
As esquerdas partidárias no Chile estão bastante fragilizadas e fragmentadas. Na verdade, é um paradoxo, porque as esquerdas sociais estão muito fortalecidas, enquanto as esquerdas partidárias ficaram muito fragmentadas. Porque parte dessas esquerdas partidárias assinou um acordo com o Piñera e com as direitas no ano passado, impondo algumas condições ao processo itinerário constitucional, que não tinham sido combinadas nem com a esquerda social, nem com as pessoas que estavam na rua sofrendo a repressão. Então, essas esquerdas partidárias que assinaram um acordo do dia 15 de novembro do ano passado são muito mal vistas pelos movimentos sociais. E um outro setor da esquerda, que não assinou um acordo, tem ainda um pouco mais de credibilidade perante a população, digamos assim.
Sobre as linguagens e os métodos e os signos, nesse mesmo sentido, destaca-se a criatividade popular. A criatividade da juventude. A criatividade do movimento feminista. A estética do protesto criada pelos próprios manifestantes das ruas. É mais tudo isso do que uma questão sobre o discurso da esquerda. Acho que nesse processo as esquerdas partidárias tiveram de correr atrás do movimento social, que estava muito à frente em suas demandas por uma mudança real, substantiva, por uma democracia verdadeira, que deixe para trás e enterre de uma vez por todas o legado de Pinochet.
Com mídia comercial e instituições formais atuando de certa forma coesas em meio à onda de rebeldia, existiria algum risco de, na correlação de forças, essa gana de transformação ser frustrada por uma Constituinte conservadora?
Esta pergunta é muito importante. Porque a resposta é sim. É possível que as forças tradicionais da direita e da centro-esquerda consigam minimizar as mudanças da nova Constituição. E quando eu falo em centro-esquerda me refiro ao Partido Socialista, que governou o país em diversas oportunidades e compactuou com a Constituição do Pinochet. No governo da Michelle Bachelet houve um pequeno esforço de mudança da Constituição, mas foi mais teatral, cênico, e não substantivo. Então, sim, existe uma grande possibilidade de que as forças tradicionais da política chilena capturem de volta esse processo de mudança para si para que se construa um pacto os conservadores.
E o principal problema relacionado a isso é o quórum de dois terços que foi aprovado no acordo de 15 de novembro do ano passado. Desse acordo, assinado por forças de esquerda e de direita, e pelo presidente Piñera também, dois pontos foram muito criticados. O primeiro foi o quórum de dois terços. Porque uma Convenção Constituinte vai ser composta por parlamentares eleitos para este fim, mas a aprovação de uma nova Constituição dependerá da aprovação de dois terços do quórum desses novos parlamentares. Isso é uma herança da ditadura, porque a Constituição de 1980 estava também blindada por um quórum de dois terços que impedia a sua reforma dentro da lei. É como se fosse um sistema fechado sobre si mesmo que se reproduz agora na nova Constituinte que vai ser eleita em abril.
É um problema enorme para o qual as esquerdas sociais e os movimentos estão atentos, e indignados. Questionam a legitimidade desse acordo e vão pressionar para que seja diferente. Porque senão a direita, com apenas um terço dos votos, consegue bloquear todo tipo de mudança substantiva antineoliberal que a Convenção Constituinte possa propor.
O segundo problema do acordo do ano passado é a questão dos direitos humanos. O presidente Sebastián Piñera não foi responsabilizado pelos abusos e pelas violações que aconteceram, e que foram contabilizados pelo Instituto Nacional de Direitos Humanos do Chile. Foram milhares de prisões, milhares de feridos por carabineiros, dezenas de mortos. Eles escandalosamente atiravam na altura do rosto das pessoas. Por isso, mais de 400 perderam a visão. Então, esse foi outro problema que o acordo do ano passado não contemplou. Nenhum tipo de justiça para as vítimas dessas violações praticadas pelo governo Piñera.
Olhando mais para frente existe o seguinte calendário: no dia 11 de abril de 2021 vão ocorrer as eleições dos parlamentares que vão atuar na Convenção Constitucional. É possível criar uma maioria de mais de dois terços, uma maioria antineoliberal? Digamos que não é impossível, considerando os 79% que disseram “apruebo” a esta nova Constituição. Mas é difícil, porque as máquinas eleitorais da direita são muito poderosas. E a centro-esquerda, que também voltou o “apruebo”, por exemplo o Partido Socialista, também tem base social e, de certa maneira, uma máquina eleitoral poderosa. Mas não são uma força política confiável, porque o PS foi cúmplice da Constituição pinochetista desde os anos 90.
Ou seja, para se criar uma maioria política que seja representativa dessa maioria social, muita luta ainda precisa acontecer. Para que essas esquerdas sociais, esses movimentos, consigam se organizar de maneira representativa, em partidos e em candidaturas independentes, que vão expressar canais de representação verdadeiros dos anseios populares. Digamos que o 25 de outubro foi só o começo de um processo de superação do legado pinochetista. E que os chilenos ainda terão muitos desafios e obstáculos.
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Mulheres, jovens, mapuches, aposentados: o Chile foi sacudido de baixo para cima - Instituto Humanitas Unisinos - IHU