30 Outubro 2020
Gaslighting (1) e dissonância cognitiva nos documentos papais.
O artigo é de Phyllis Zagano, teóloga estadunidense e pesquisadora da Hofstra University, em Nova York, publicado por National Catholic Reporter, 29-10-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Não é o que eles dizem, mas a forma como eles dizem. Documentos e traduções das Escrituras irritantemente tangenciam o gaslighting contra as mulheres. Não é um grande evento que as manipulam até deixarem-nas loucas, mas apenas uma dissonância cognitiva que desliza em relações grandes e pequenas.
Você sabe, “ele me ama, ele não me ama...”.
Dissonância cognitiva inclui dizer uma coisa que significa outra. Isso existe, dolorosamente, na Igreja. Nós sabemos o que a Igreja diz, mas nós sabemos o que ela faz.
Reflita: estão as mulheres em uma relação tóxica com a Igreja?
Talvez sim, talvez não, mas eu penso que as mulheres estão cansadas de ouvir o que eles dizem “ter uma presença mais incisiva na Igreja” e “mais posições de responsabilidade”, etc., etc., etc. Como Eliza Doolittle disse (ou cantou) em “Minha Bela Dama”: “Demonstrem”.
Essa é a pena de tudo. O papa Francisco é um homem maravilhoso. Seu papado reabriu janelas que se fecharam muito cedo após o Concílio Vaticano II. Seu último documento, Fratelli Tutti, é lindo, realmente é. Mas, aparentemente, é dirigido aos homens. Não importa como você o faça, “fratelli” significa irmãos em qualquer idioma e em qualquer cultura. Em seguida, considere o fato de que o documento inclui as palavras “fraternidade” cerca de 55 vezes, “fraterna” cerca de 18 vezes e se refere à igreja como “ela” pelo menos cinco vezes. Para piorar, nenhuma mulher é citada ou referenciada.
Oh, parece que eles tentaram consertar. Uma pesquisa no computador parece ter substituído “irmão” por “irmão e irmã” quase 30 vezes, até mesmo mudando as traduções das Escrituras. Por exemplo, a tradução de 1 João 2, 10-11 aprovada pela Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos começa com “quem ama seu irmão”, não com “quem ama um irmão ou irmã”, como cita a Fratelli Tutti.
O documento critica implicitamente a si mesmo e à Igreja, apoiando-se nas palavras de Francisco de sete anos atrás: “De modo análogo, a organização das sociedades em todo o mundo ainda está longe de refletir com clareza que as mulheres têm exatamente a mesma dignidade e idênticos direitos que os homens. As palavras dizem uma coisa, mas as decisões e a realidade gritam outra. Com efeito, ‘duplamente pobres são as mulheres que padecem situações de exclusão, maus-tratos e violência, porque frequentemente têm menores possibilidades de defender os seus direitos’”.
Esse é precisamente o tipo de dissonância cognitiva, até mesmo gaslighting, que figurativamente enlouquece as mulheres.
O que, exatamente, significa incluir mulheres na Igreja? O que significa para as mulheres estarem presentes? O que significa, mesmo, que as mulheres sejam reconhecidas como metade da raça humana?
É um mundo de homens, sem dúvida. Pensando bem, Fratelli Tutti foi escrita por um homem (Francisco) que recebeu o título de um homem (São Francisco de Assis) que falava a homens (seus frades), e agora este documento é dirigido a homens. Bem, e por que não ser assim? Não são as mulheres que estão arruinando o mundo.
Embora Francisco não pretenda insultar as mulheres, escrever o que é publicado sob seu nome muitas vezes erra o alvo e é desnecessariamente ofensivo.
Como tantas outras coisas que saem das impressoras do Vaticano, este maravilhoso documento e tantos outros não se beneficiam da presença de mulheres à mesa. Sim, pode ter havido mulheres conselheiras. “Irmãos e irmãs” são bem conhecidos do começo ao fim. E pode ter havido mulheres entre os tradutores. O inglês é extremamente bom, e o documento publicado no site do Vaticano contém apenas um pequeno erro tipográfico.
Mas sua linguagem, como a de São Jerônimo, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, pode ser desanimadora. Então o que fazer? Como conciliar o que foi dito com o que se quer dizer? A mágoa com este e outros documentos é que a escolha das palavras muitas vezes obscurece os significados. Palavras usadas, não usadas ou mal usadas não apresentam o pensamento e a visão do escritor.
Isso tem que parar. Tem que parar porque as pequenas alfinetadas de linguagem se acumulam até que toda a conversa morra, e as pessoas que podem ouvir não ouvem mais o que é dito. Tem que parar porque as pessoas que precisam de ajuda, os pobres famintos abraçando este planeta enfermo, os migrantes e os sem-teto, os doentes e os frágeis, todos ouvem uma voz a menos levantada em seu nome.
Não se trata apenas das mulheres, mas principalmente.
1.- Gaslighting é uma forma de abuso psicológico no qual informações são distorcidas, seletivamente omitidas para favorecer o abusador ou simplesmente inventadas com a intenção de fazer a vítima duvidar de sua própria memória, percepção e sanidade. Casos de gaslighting podem variar da simples negação por parte do agressor de que incidentes abusivos anteriores já ocorreram, até a realização de eventos bizarros pelo abusador com a intenção de desorientar a vítima. O termo deve a sua origem à peça teatral Gas Light e às suas adaptações para o cinema, quando então a palavra popularizou-se. O termo também tem sido utilizado na literatura clínica. (A nota é do Instituto Humanitas Unisinos - IHU com informações de Wikepedia.)
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As mulheres estão em uma relação tóxica com a Igreja? Artigo de Phyllis Zagano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU