24 Outubro 2020
Em mais de 1,2 mil páginas, a publicação traz relatos de resistência indígena em meio ao abandono do Estado.
A reportagem é de Izabel Santos, publicada por Amazônia Real, 22-10-2020.
“A Covid-19 tirou você de nossas vidas, mas não de nossas memórias e histórias. Tínhamos muitos planos para nossas filhas, não é??? Fique tranquilo pescando lá na Ilha da Oscarina (no Alto Rio Negro) que eu cuidarei das meninas. Nestes últimos dias, tenho dito para elas que você virou encantado.” É com esse depoimento emocionado que Ana Carla dos Santos Bruno se despede do companheiro Aldevan Baniwa. Especialista em histórias do cotidiano nas aldeias, a antropóloga e linguista relembra do marido também como o cientista indígena, conhecedor dos segredos da floresta e defensor da saúde dos povos tradicionais.
Assim como milhares de amazonenses, Aldevan morreu sem atendimento médico adequado. Vagou por dias sem ar e sem forças por unidades de saúde de Manaus em busca de teste de Covid-19 e exames de imagem. Quando finalmente o sistema de saúde se dispôs a atendê-lo, já era tarde. Histórias tocantes como essa foram reunidas no recém-publicado livro “Pandemia e Território”, que pode ser acessado gratuitamente pela internet, dentro do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia. Mais de 120 estudiosos que desenvolvem pesquisas na Amazônia se reuniram para a produção dessa obra, com 1.226 páginas. Além de 57 artigos escritos pelos pesquisadores, o final do livro é dedicado aos tristes obituários de mais de cem quilombolas e indígenas vítimas da doença.
Reprodução da capa do livro. (Foto: PNCSA)
Uma das partes mais impactantes é o relato da agonia e morte da liderança Guilherme Padilha Samias, do povo Kokama, em 14 de maio. Não bastasse a agressividade da doença, Samias teve de esperar por um avião que nunca chegou para transferi-lo para Manaus. Seus rins falharam e ele não resistiu. Após a sua morte, a direção do Hospital de Guarnição de Tabatinga quis registrá-lo como pardo e exigia o Rani (Registro Administrativo de Nascimento Indígena) para que ele pudesse ter a sua identidade indígena reconhecida. Em luto e cheia de dor, a família ainda precisou brigar por cerca de cinco horas para que Guilherme tivesse a sua identidade indígena respeitada.
“Nossa intenção não foi registrar os obituários de forma necrológica, mas como uma forma de abraçar a vida, considerando-os como uma oportunidade de refletir sobre a existência dos que se foram”, explicou à Amazônia Real o antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida, coordenador do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia, grupo de pesquisa vinculado à Universidade do Estado do Amazonas (UEA) e à Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Almeida assina a organização da publicação com Rosa Acevedo e Eriki Aleixo de Melo.
Indígena do povo Wai-Wai, de Roraima, e aluno do doutorado em Antropologia Social da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Eriki Aleixo escreveu a apresentação e mais dois artigos do livro. “A proposta dos textos escritos sobre o ‘território da morte’ não é ser uma biografia, mas um ato de resistência contra o apagamento de identidades e um reforço à luta”, afirmou, lembrando que a pandemia agravou a vida das populações indígenas da Amazônia.
O livro também traz textos redigidos por organizações indígenas, como o “A Quem Interessar: o Povo Indígena Kokama na Guerra Contra o Coronavírus”, da Federação Indígena do Povo Kukami-Kukamira Pray+iuka Perukariai Kurumpiaka e do Cacicado Geral do Povo Kokama. Com palavras extremamente críticas ao poder público e fotos e nomes dos, até então, 45 mortos, os Kokama relatam a violência da pandemia em seus territórios e contra a sua identidade.
“Então, chegamos a pandemia do novo coronavírus e o Brasil não se preparou e teve tempo, mas não se interessou defender os povos indígenas que são mais vulneráveis. Todos os planos de genocídio vieram numa boa para o presidente da República que odeia indígenas desde a época de campanha”, diz um trecho do texto. Eriki lembra que no caso dos Kokama, um dos povos mais atingidos pela Covid-19 no Brasil, houve uma maior mobilização para o registro de informações.
O livro traz um abrangente panorama dos povos tradicionais da Amazônia. No sul do Amazonas, a gravidade da pandemia é evidenciada pela história dos Tupi Kagwahiva. O antropólogo Jordeanes do N. Araújo, a historiadora Suellen Andrade Barroso e a liderança indígena Angelisson Tenharin traçam um histórico do contato dos Parintintin, Tenharin, Jiahui, Juma, Jupau, Amondawa, todos pertencentes ao tronco Tupi Kagwahiva, com “doenças de branco”, como a gripe, o sarampo e a tuberculose. Eles recordam que os Ipajís, antigos tuxauas, “detinham o conhecimento Kagwahiva” contra essas enfermidades, mas eles mesmos foram vitimados por elas durante a política de “pacificação” perpetrada Serviço de Proteção ao Índio (SPI), órgão indigenista criado em 1910 e que foi substituído pela Fundação Nacional do Índio (Funai), em 1968. “Com a morte dos Ipajís se foram, além da pajelança, todo o conhecimento que fora historicamente acumulado e dinamicamente transformado em séculos de vivência dos povos indígenas naquela região”, dizem os autores.
Os pesquisadores analisam que, em cem anos, nada mudou e o novo coronavírus só veio reforçar a política de Estado de extermínio dos povos indígenas e outras minorias. “Se este vírus tem se mostrado letal às populações do mundo, tão mais o é entre os povos indígenas, historicamente desassistidos pelo Estado”, escrevem, reforçando uma real ameaça à existência desses povos. “Referimo-nos às diversas formas de matar (madeireiras ilegais, garimpeiros ilegais, queimadas desenfreadas, desmatamentos sem fim) orquestradas/permitidas pelo Estado brasileiro.”
“Aspectos da invisibilidade”, artigo de Glademir Salles dos Santos, traz um relato de dor, sofrimento, perplexidade, abandono, esquecimento e falta de atendimento específico para indígenas em contexto urbano, especialmente os moradores do bairro Parque das Tribos, em Manaus, e moradores de comunidades da zona rural da capital amazonense. Ele destaca que está em curso um avançado processo de “erosão do Estado do bem-estar social”, aliado a um “projeto desumanizador, fortalecendo a dinâmica de segregação, ou de abandono urbano” na capital amazonense.
Enterro do vice-cacique Aldenor Tikuna, em Manaus. (Foto Fernando Crispim/La Xunga/Amazônia Real)
Dois exemplos de vítimas fatais da Covid-19 entre indígenas que tiveram grande repercussão em Manaus foi de Aldenor Félix Tikuna e de Aldevan Baniwa, ambos citados no livro pela linguista indígena do povo Kokama e professora da Universidade de Brasília (UnB) Altaci Corrêa Rubim. Ela conta sobre os derradeiros dias dos dois indígenas. O antropólogo Clayton de Souza Rodrigues dedica o artigo “Um funeral digno como sua derradeira luta: Aldenor Basques Félix Gutchicü (Babu)” ao professor Tikuna, que morreu dentro de um carro na porta de um hospital de Manaus. “Além de falecer sem assistência médica apropriada o corpo de Aldenor permaneceu insepulto por quase 48 horas, levando-o a uma derradeira luta pós-morte.”
O livro não poupa as autoridades, revelando-se um registro histórico e documental para que as gerações futuras saibam o que está acontecendo. “O governo do Estado do Amazonas não se preparou para defender os povos indígenas e até hoje não fizeram um Plano Emergencial para os povos Indígenas. E ainda contratou uma branca que não conhece a realidade dos povos da floresta e ainda envolvida em várias polêmicas de corrupção de seu Estado de origem, tudo orquestrado para destruir todos os conhecimentos milenares que foram levados pelos anciãos indígenas vítimas de Covid-19”, diz outra parte do texto, se referindo à ex-secretária de Estado de Saúde Simone Papaiz.
Desde os primeiros casos de Covid-19 no Brasil e o avanço das medidas de isolamento social, Alfredo Wagner Berno de Almeida conta que o grupo de pesquisadores começou a se preocupar com a segurança alimentar dos indígenas e quilombolas. “Primeiro, distribuímos cestas básicas e máscaras de proteção. Depois, conforme a doença foi avançando, começamos a fazer vaquinhas virtuais. Com esse recurso, fizemos os enterros de alguns indígenas”, explica.
Alfredo Wagner Berno de Almeida, coordenador do PPNCSA. (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
O organizador afirma que a ideia do livro “Pandemia e Território” surgiu à medida que os pesquisadores do projeto começaram a reunir informações e perceberam que elas poderiam resultar num registro sobre os fatos presentes. O livro também traz reportagens, como a que foi produzida pela jornalista Elaíze Farias, cofundadora da agência Amazônia Real, sobre os Kokama, com o título “A morte está vindo muito rápido para meu povo, diz professora Kokama sobre a Covid-19”.
“Quando as mortes começaram a acontecer, nos preocupamos em fazer os registros. O maior obstáculo foi o contato com as pessoas, que moram em locais remotos, o que dificulta a comunicação. Mas todas as informações foram colhidas diretamente com familiares ou através de redes sociais”, acrescentou o antropólogo.
A pandemia também agravou ainda mais a insegurança nos territórios quilombolas. Apesar de algumas vitórias na justiça, as famílias quilombolas de Alcântara, no Maranhão, por exemplo, correm risco de serem removidas devido à um acordo entre o Brasil e os Estados para a exploração da Base Espacial de Alcântara. Os quilombolas Danilo da Conceição Serejo Lopes e Davi Pereira Junior escrevem no livro sobre os ataques covardes do governo do presidente Jair Bolsonaro aos moradores do local.
Quilombola de Alcântara durante a pandemia. (Foto: Soldado Soares/FAB)
“Neste momento delicado pelo qual a Humanidade está passando, onde se tem quase que um consenso mundial sobre a necessidade do isolamento social como forma mais eficiente de autoproteção e de prevenção contra a disseminação desenfreada da Covid-19, o Brasil publica na imprensa oficial um documento com o teor doloso com vistas a vilipendiar um determinado grupo social. Podendo-se supor, então, que o Estado brasileiro não reconhece nos quilombolas qualquer humanidade possível, tampouco os vê como como sujeitos de direitos. Estão, segundo esse raciocínio, expostos a violências de toda sorte, podendo ser notificados sobre sua expulsão, inclusive, durante uma pandemia. Isto é, vulnerabiliza-se duplamente as comunidades ao expô-las ao risco de expulsão de suas terras e ao contágio da Covid-19”, escrevem os juristas.
Sandra Amorim, presidente da Associação de Moradores da Comunidade Quilombola Sítio São João, no Pará. (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)
Até agora, são 26.993 infectados e 685 mortes de indígenas na Amazônia. As etnias mais afetadas são os Kokama, com 57 mortes, e o Xavante, com 76. Os estados com maior número de casos confirmados são o Amazonas, com 6.586, e Pará, com 5.500. As informações são do boletim de monitoramento da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).
Entre os quilombolas, há 4.604 casos confirmados e 167 mortes em todo o Brasil. Os dados são do boletim do Observatório da Covid-19 nos Quilombos, de realização da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) com o Instituto Socioambiental (ISA).
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Livro traz obituários de povos tradicionais da Amazônia vítimas da Covid-19 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU