"Todo aquele que se opõe ao Cristo é um anticristo, mesmo que dele se utilize para algum fim. Hoje, com mais da metade da população brasileira declaradamente cristã (católica, evangélica etc.), políticos e até mesmo uma bancada que se declara cristã, bispos, padres, pastores e pastoras, que testemunhos assistimos? Diante disso, é impróprio fazer uma justaposição entre Cristo e qualquer movimento e ideologia que seja contrário ao que os evangelhos dizem sobre ele", escreve Leonardo Gonçalves, teólogo, filósofo, doutor em Ciência da Religião (PUC-SP/EHESS), pós-doutor em Políticas Sociais (UENF) e membro do CRELIG (Dinâmicas Territoriais, Cultura e Religião).
“toda cristologia deve estar unida à ética: ‘quem diz que permanece d’Ele, deve andar como ele andou’” (I João 2,6). Leonardo Boff, Jesus Cristo Libertador
“...no fundo houve um único cristão, e este morreu na cruz. O ‘Evangelho’ morreu na cruz”. Friedrich Wilhelm Nietzsche, O Anticristo
Este pequeno texto tem como objetivo propor um ensaio reflexivo teológico-filosófico a partir de fatos contemporâneos envolvendo sobretudo a presença da religião na esfera pública, seus percursos e desafios à teologia e a vivência da fé. Esse é o ponto de partida. Considerando que a fé cristã em suas mais variadas expressões está em evidência numérica, me apropriarei do termo “anticristo” usado na carta joanina e na filosofia nietzschiana como chave de leitura dessa conjuntura.
Um único autor da bíblia usa o termo “anticristo”. Este autor é João. Ele o faz para descrever “aquele que nega que Jesus é o Cristo”, que “nega o Pai e o Filho” (I João 2.22). Uma advertência a comunidade é feita no sentido que o “anticristo está vindo” e “já agora muitos anticristos têm surgido” (2.18). Mais adiante o autor da carta alerta que “muitos enganadores têm saído pelo mundo, os quais não confessam que Jesus Cristo veio em corpo. Tal enganador é o anticristo” (2 João 1.7). Por último, o autor bíblico diz que a comunidade precisa “discernir os espíritos” e que “todo espírito que não confessa Jesus não procede de Deus. Esse é o espírito do anticristo” (I João 4.3). Analisando estes textos observa-se que o substantivo “anticristo” designa negação e engano, de forma preponderante. O termo é acompanhado do prefixo de negação “anti”. Para João, quem nega a corporeidade de Cristo é anticristo. Quem engana o outro dizendo que Jesus não é o Cristo e não procede de Deus é anticristo.
Uma pergunta básica para interpretação do texto bíblico é: com quem ou de quem o autor está falando? Segundo Espinosa, a interpretação “destina-se a tentar refazer a história do texto através (...) da história dos que o escreveram, dos que o selecionaram e daqueles a quem foi primeiramente dirigido” (s.d). Não precisamos ser ingênuos a ponto de supor que tais palavras não tenham destinários. Sim, tem. João (o autor) se dirige combativamente aos gnósticos. O gnosticismo era uma forma sincretista de religião, que tirava elementos do judaísmo, das religiões orientais e do cristianismo, e floresceu no século II d.C. e continuou até ao século IV. O gnosticismo cristão procurava separar a fé da sua base histórica ao negar a realidade da encarnação de Cristo. Tal concepção tinha no docetismo sua base. O Docetismo consistia na doutrina de que Cristo somente tinha a aparência de um corpo durante a Sua vida na terra, e, como consequência, apenas pareceu sofrer na cruz. Logo foi rejeitado como doutrina falsa (Brown; Coenen, 2000). Esse apanhado serve só para nossa compreensão acerca de quem é o anticristo, para João. O gnóstico e o doceta são anticristos, ou seja, aquele (a) que nega e engana sobre Jesus Cristo.
Tomemos essa singela explicação que, de imediato, nos lança no campo filológico das relações entre texto e interpretação para uma primeira hipótese. O anticristo é uma categoria de análise para todo aquele que contraria em palavras e atos a verdade do Cristo.
Em 1888 o filósofo F. Nietzsche escreveu o livro “O Anticristo”, publicado só em 1895. Nietzsche diz que a palavra ‘Cristianismo’ (Christenthum) é um mal-entendido, “pois no fundo houve um único cristão, e este morreu na cruz. O “Evangelho” morreu na cruz. O que, desse momento em diante, chamou-se de “Evangelho” era exatamente o oposto do que ele viveu: ‘más novas’. Um Dysangelium” (Nietzsche, 2015). Diante de uma falsa interpretação do evangelho, da vida de Jesus, Nietzsche acusa o Cristianismo (Christenthum), como um mal-entendido. A fé cristã é um mal-entendido, tal qual se apresenta no cristianismo histórico. A partir de uma ótica teológica do pecado, da culpa e do castigo a Boa Nova de Jesus é desvirtuada, principalmente ao tomá-lo como vítima expiatória de um sacrifício vicário. No ponto de vista nietzschiano existe uma oposição entre Christenthum (Cristianismo) e Christlichkeit e Christ-sein (respectivamente Cristianicidade e ser-cristão). “O Cristianismo ‘oficial’ consiste na redução do Ser-cristão, da espiritualidade própria à Cristianicidade, a dogmas, fundamento da crença eclesiástica” (GIACOIA JUNIOR, s.d). Tal empreendimento interpretativo do anticristo nietzschiano consiste necessariamente em “desposar o tipo psicológico do Redentor de traços alheios com os quais foi sobrecarregado e, de outro lado, em reparar as mutilações que o desfiguram” (GIACOIA JUNIOR, s.d). O anticristo de Nietzsche é, em certo sentido, um ataque ao Cristo do Cristianismo (Christenthum).
Tanto na teologia bíblica quanto na filosofia nietzschiana (os opostos se atraem) observa-se o óbvio em relação à manifestação do anticristo: oposição, negação e engano. Seria então o anticristo aquele que em qualquer tempo se opõe e nega a verdade sobre Jesus? Mas que verdade? Não se trata nesse texto de defender uma única verdade e doutrina sobre Jesus. A verdade ou a vontade de verdade sempre foi algo difícil de lidar e ainda por cima gerador de guerras e totalitarismos. Todavia, temos praticamente uma única fonte sobre quem foi Jesus e o que ele pregou. A questão que talvez chame mais atenção diz respeito à forma como seus seguidores se apropriaram dessa imagem, dessa experiência e que tenha os colocado numa posição de anticristo. Isso faz muito sentido nos dias atuais. Um anticristo “secular” não chamaria tanto a atenção quanto alguém de dentro do cristianismo.
Vejamos alguns registros dos evangelistas sobre Jesus que podem tornar-se um guia para discernirmos sobre quem poderia ser um anticristo. João disse no primeiro capítulo de seu evangelho: “E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, e nós vimos a sua glória, glória que ele tem junto ao Pai como filho único, cheio de graça e de verdade” (João 1.14). Em outro evangelho, de Lucas, Jesus abriu as Escrituras e como revelação sobre si leu: "O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou pela unção para evangelizar os pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos presos e aos cegos a recuperação da vista, para restituir a liberdade aos oprimidos e para proclamar um ano da graça do Senhor" (Lucas 4:18,19). No evangelho de Mateus, Jesus disse: Vinde a mim todos os que estais cansados sob o peso do vosso fardo e vos darei descanso. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração; e encontrareis descanso para vossas almas. Pois meu jugo é suave e o meu fardo é leve (Mateus 11:28-30). Será que bastaria, nesse tempo, dizer que o anticristo é todo aquele que ao invés de proclamar sua habitação entre nós, cheio de graça e verdade fosse o oposto a isso? Será que bastaria, nesse tempo, dizer que o anticristo é todo aquele que ao invés de pregar boas novas aos pobres, proclamar liberdade aos presos e recuperação da vista aos cegos, para libertar os oprimidos fosse o oposto a isso? Será que bastaria, nesse tempo, dizer que o anticristo é todo aquele que ao invés de ser manso e humilde fosse o oposto a isso? Historicamente, não há um anticristo, mas vários. Essa é outra hipótese. Todo aquele que se opõe ao Cristo é um anticristo, mesmo que dele se utilize para algum fim. Hoje, com mais da metade da população brasileira declaradamente cristã (católica, evangélica etc.), políticos e até mesmo uma bancada que se declara cristã, bispos, padres, pastores e pastoras, que testemunhos assistimos? Diante disso, é impróprio fazer uma justaposição entre Cristo e qualquer movimento e ideologia que seja contrário ao que os evangelhos dizem sobre ele. O que é contra Cristo é anticristo. “Muitos me dirão naquele dia: ‘Senhor, Senhor, não foi em teu nome que profetizamos e em teu nome que expulsamos demônios e em teu nome que fizemos muitos milagres? Então eu (Jesus) lhes declararei: Nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, vós que praticais a iniquidade!” (Mateus 7.21-23).
BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2012.
BOFF, Leonardo. Jesus Cristo Libertador. 18ª Ed. Petrópolis: Vozes, 2003.
Dicionário internacional de teologia do Novo Testamento/Colin Brown, Lothar Coenen (orgs.); 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 2000.
ESPINOSA, Baruch de. Tratado Teológico-Político. Tradução, introdução e notas de Diogo Pires Aurélio. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, s/d.
GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. Nietzsche e o cristianismo. Disponível aqui. Acesso em: 26 set 2020.
NIETZSCHE, Friedrich W. O anticristo. Martin Claret; 1ª Edição, 2015.