16 Setembro 2020
"O livro do Deuteronômio insiste em que: recordar é preciso. Se lido a partir das/os injustiçadas/os, a História nos inspira. 'Não esqueçam que vocês foram escravizados no Egito e que Javé seu Deus libertou vocês' (Dt 5,15; 15,15; 16,12; 24,18. 22 etc.). Este refrão repete-se mais de 100 vezes no Deuteronômio. Recordar as opressões do passado e as lutas de resistência popular é imprescindível para seguirmos com as lutas libertárias", escreve Gilvander Moreira, frei e padre da Ordem dos Carmelitas.
Frei Gilvander é doutor em Educação pela FAE/UFMG, licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR, bacharel em Teologia pelo ITESP/SP, mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália, assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas e professor de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.
Em setembro de 2020, estamos refletindo sobre o quinto livro da Bíblia: Deuteronômio, que busca resgatar os ideais do Êxodo em tempos de monarquia na iminência de mais um exílio. Os autores e as autoras de Deuteronômio resgatam o ensinamento e o testemunho dos Levitas – lideranças que não podiam ter terra, o que gerava poder – que buscam alertar o povo para não recair nas agruras de outra escravidão semelhante à imposta pelo imperialismo dos faraós no Egito. Imersos na ditadura de monarquia opressora que reproduzia relações sociais escravocratas, os levitas, em textos inseridos no livro do Deuteronômio, propõem a superação de toda e qualquer escravidão e que o povo conquiste liberdade, mas não liberdade abstrata e formal como a ocorrida no Brasil com a Lei Áurea de 13 de maio de 1888, que despediu de mãos vazias o povo negro escravizado, somente após 38 anos da criação do ‘cativeiro da terra”[1] por meio da Lei de Terras, Lei n. 601, de 18 de setembro de 1850.
“Quando um de seus irmãos, hebreu ou hebreia, for vendido a você como escravo, ele servirá a você no máximo seis anos” (Dt 15,12). Nem um dia a mais. Para não se repetir a escravização em novos moldes, o Deuteronômio alerta: “Não despeça seu irmão ou irmã escravizado/a de mãos vazias: carregue os ombros dele com o produto do rebanho de você, da sua colheita e de cereais e de uva” (Dt 15,13). Com essa prescrição se denunciam as propostas de liberdade abstrata e se defende a conquista de condições objetivas que garantam a liberdade e emancipação efetivas. No caso, os frutos da mãe terra, da irmã água e do trabalho humano devem ser destinados a quem ‘sua’ a camisa para produzir.
Nesse ponto, o livro do Deuteronômio está em sintonia com o que prescreve a utopia de Outro Mundo Possível e Necessário, cantado pelos discípulas e discípulos do grande profeta Isaías: “Construirão casas e nelas habitarão, plantarão vinhas e comerão seus frutos. Ninguém construirá para outro morar, ninguém plantará para outro comer” (Is 65,21-22). Isto é, um mundo transfigurado, sem exploradores e sem explorados, sem escravocratas e sem escravizados, com todas as cercas rompidas. Um mundo com todos/as tendo as condições objetivas necessárias para viver e conviver com dignidade, sendo livres, de fato.
O livro do Deuteronômio não defende apenas a concessão de paliativos, mas a partilha do que se produz na pecuária, na agricultura e na produção voltada para exportação – caso do vinho, inclusive. Orienta a dar o necessário, de acordo com a bênção recebida de Javé. A Bênção de Deus não pode ser privatizada, pois é para todas e todos, para todos os seres vivos, inclusive.
O livro do Deuteronômio insiste em que: recordar é preciso. Se lido a partir das/os injustiçadas/os, a História nos inspira. “Não esqueçam que vocês foram escravizados no Egito e que Javé seu Deus libertou vocês” (Dt 5,15; 15,15; 16,12; 24,18. 22 etc.). Este refrão repete-se mais de 100 vezes no Deuteronômio. Recordar as opressões do passado e as lutas de resistência popular é imprescindível para seguirmos com as lutas libertárias. “Recordar para não repetir”, alerta a filósofa Hannah Arendt ao analisar o totalitarismo político nazista.
Entretanto, a experiência bíblica deuteronomística demonstra que não adianta forçar a libertação das pessoas escravizadas, se elas não se reconhecerem como escravizadas e não se despertarem para o valor de se lutar por libertação. Enquanto a opressão estiver assimilada – “Não quero ir embora...” (Dt 15,16), ou segundo a linguagem de Paulo Freire, enquanto o oprimido estiver sendo ‘hóspede do opressor’, estará trancada a porta que pode dar acesso a um processo de libertação. Paulo Freire e a experiência de quem luta por justiça social nos dizem que jamais os opressores libertam os oprimidos.
Os oprimidos, isoladamente, também não conseguem se libertar. Em comunhão, lutando juntos, os oprimidos podem se libertar e libertar também os opressores, que estão amarrados nas estruturas de poder opressor. Sendo lideranças populares e religiosas no meio do povo, os Levitas, sem possuir terra, desenvolviam a missão de acordar a memória adormecida do povo, cutucar para manter viva a fina flor da vivência que assegurava fidelidade à Aliança de Javé com seu povo oprimido. “O opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos”, analisa Simone de Beauvoir no livro O Segundo Sexo[2].
Encontramos características libertadoras do amor integral a Deus e ao próximo no livro do Deuteronômio, que pede de nós amor integral a Javé, nosso Deus solidário e libertador, não apenas um amor caritativo. Após repudiar outras imagens de Deus – idolatria – o/a autor/a Deuteronomista aponta o rumo: “Ame a Javé seu Deus com todo o seu coração, com toda sua alma e com todas as forças” (Dt 6,5). Como amar com todo o coração, com toda a alma e com todas as forças? O primeiro mandamento exige um total e absoluto amor a Deus, como dedicação que abarca todo o âmbito da pessoa: os três constitutivos pessoais que são mencionados: “coração”, “alma”, “forças” expressam a totalidade indivisa das várias dimensões da pessoa humana. O livro do Levítico exorta: “Ame o seu próximo como a si mesmo” (Lv 19,18).
O segundo mandamento[3], que provém de outra codificação legislativa, como é o chamado “Código de Santidade” (Lv 17-26), inculca o amor ao próximo, isto é, ao próprio compatriota, ao membro da mesma etnia, ao israelita“[4]. “Amar a Deus” é uma das constantes características de todo o corpo deuteronomístico e está intimamente interligada com “amar o próximo”. Não existe um integral amor a Deus se falta amor integral ao próximo. O caminho que leva a Deus passa necessariamente pelo próximo, a partir do próximo mais violentado. Dedicar-se a Deus e ao próximo são duas faces da mesma medalha e é significativo que Dt 6,5 e Lv 19,18 estejam em Lc 10,27 como uma “leitura” da Lei que revela a íntima ligação entre “amar a Deus e amar o próximo”: “O que está escrito na Lei? Como tu lês?” (Lc 10,26), interpela Jesus Cristo ao escriba preocupado em conquistar a vida eterna.
A lei da solidariedade com os pobres ocupa em Deuteronômio um lugar especial (Cf. Dt 14,28-29; 15,1-18; 23,25-26). O próprio rei deve viver como um pobre (Cf. Dt 17,17b). Em Dt 5,6-21 temos uma releitura e atualização do Decálogo que está em Ex 20,1-17, núcleo da Lei libertadora, do Sinai, da época em que o povo marchava para conquistar a terra prometida. Primeiro, o Decálogo, que é a Constituição do povo de Deus, é dirigido a todo o povo, a Israel, e não apenas às pessoas individualizadas. Logo, reduzir o Decálogo a Dez Mandamentos direcionando-os apenas às pessoas individualizadas é privatizar o sentido do Decálogo que proíbe não apenas que pessoas matem outras pessoas ou roubos individuais. Muito pelo contrário: toda a sociedade, na sua forma de organização social, não pode matar, nem roubar e nem adulterar.
O agronegócio, por exemplo, com uso indiscriminado de agrotóxicos na agricultura mecanizada, adultera a produção de alimentos, o que tem causado uma epidemia de câncer. O Deuteronômio enfatiza que a Aliança do Deus libertador com o povo escravizado não foi feita só com os antepassados, mas também conosco (Dt 5,2-3). Isto é, o Deus libertador não estava apenas lá no passado com nossos antepassados escravizados no Egito, mas está caminhando conosco atualmente. Nós também estamos sendo escravizados até os tempos de hoje e, segundo o Deuteronômio, Javé cultiva a Aliança de compromisso libertador com o povo escravizado de hoje, também.
O livro de Deuteronômio analisa que a idolatria é raiz também das explorações e violências que se abatem sobre o povo. Por isso, Deus é apresentado de forma enfática como “Javé seu Deus, que o libertou da terra do Egito, da casa da escravidão”. Com veemência e grande ênfase, todo e qualquer tipo de idolatria é rechaçada (Dt 5,7-10). Seguir outros deuses não é apenas uma questão ‘teórica’ irrelevante, mas tem incidência direta sobre a convivência social. Experimentamos isso nas lutas por direitos – luta pela terra, luta pela moradia, luta para frear as mineradoras que devastam, luta pela superação do racismo, luta contra a homofobia, luta pela superação da violência contra as mulheres etc. Isso porque, para se reforçar as lutas sociais por direitos, é preciso coesão, união e unidade na luta coletiva.
[1] MARTINS, José de Souza. O Cativeiro da Terra. 9ª edição. São Paulo: Contexto, 2013. Livro de leitura indispensável.
[2] BEAUVOIR, S. O Segundo Sexo Vol 2: A Experiência Vivida, Difusão Europeia do Livro, 1967.
[3] Presente também em Gl 5,14; Rm 13,9 e Tg 2,8 como uma síntese da Lei de Moisés e dos profetas.
[4] J. A. FITZMYER, El evangelio según Lucas, 3 vol. Madrid: Ed. Cristiandad, 1987, p. 268.
1 - Frei Carlos Mesters fala sobre o Livro do Deuteronômio em entrevista a frei Gilvander - 15/01/2020
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Deuteronômio: “Não despeça de mãos vazias seu irmão ou irmã!” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU