14 Setembro 2020
"O que não entendo é por que a instituição Igreja continua a manter sua forma de organização centralista e absolutista que não funciona mais. Sua constituição pré-moderna desperta muita resistência e aversão em nosso país. E afirmar que essa seria a vontade de Jesus significa continuar a considerar as pessoas tolas. Por que a Igreja se obriga a permanecer fechada em uma constituição arcaicamente autoritária e desprovida de liberdade como numa armadura que nunca lhe serviu? Na verdade, nem mesmo nos dias em que ainda havia estados-igreja e os bispos eram senhores mundanos! Posso inclusive não culpar a nossa antiga instituição por gastar tempo verificando tudo. Vejo também a dificuldade em manter a unidade da Igreja universal com a extrema multiplicidade das Igrejas locais e de rito diverso. Mas é tão difícil elaborar uma constituição adaptada aos tempos?", questiona Johannes zu Eltz, padre, decano católico de Frankfurt e prelado da diocese de Limburg, em artigo publicado por Zeit, 09-09-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
A Igreja Católica está bloqueada não só pelo medo da mudança, mas também pelo seu absolutismo – afirma Johannes zu Eltz. O decano de Frankfurt pede que os bispos renunciem voluntariamente ao seu poder. E elaborem uma nova constituição.
Segundo ele, "espero que minha Igreja pare de temer perder o poder. Temos que abrir nossas portas e sair de nossos círculos fechados. Justamente agora, na pandemia: somente se formos livres, em vez de nos trancarmos atrás dos nossos muros, estaremos perto daqueles que precisam de nós".
No ano passado, em minha grande paróquia no centra da cidade, quase 700 católicos deixaram a Igreja, a maioria entre 25 e 35 anos. Este ano serão ainda mais. Escrevo a todos pedindo que me digam por que estão indo embora. Um bom número responde. O fio condutor que perpassa constantemente entre as várias motivações é a reclamação de que a Igreja, embora esteja atravessando uma crise que põe em risco a sua existência, não demonstre qualquer vontade de uma verdadeira mudança. Eles deixaram a Igreja considerando sua fixidez repugnante. No entanto, eles carregam a fé com eles, como algo a ser guardado em segurança.
Sou decano em Frankfurt am Main, nossa igreja paroquial é a catedral, nossa paróquia tem 20.000 membros. Ainda são 20.000, se poderia dizer. Mas estou muito preocupado. Estamos passando por uma dramática perda de reputação e de confiança dentro de uma sociedade secularizada. Os católicos, como todos, entendem a sua liberdade religiosa em primeiro lugar individualmente e usufruem dela quando a consideram justa, mesmo contra a sua Igreja. Isso não pode ser combatido apenas com boas palavras ou eventos simbólicos. Para conquistar novamente o consenso das pessoas, são necessários fatos concretos. Minha igreja está pronta para mudar?
Nessa situação, penso no Cardeal Richelieu, primeiro-ministro do Rei da França Luís XIII. O cardeal não acreditava que a soberania do rei devesse servir ao bem dos súditos ou ao bem do rei, mas que tivesse um único e exclusivo propósito: a manutenção e o desenvolvimento de si. Não sei se aquele homem de Deus do século XVII se sentisse atormentado pela preocupação de que não pudesse haver nenhuma bênção na divinização do poder estatal – nem quando usava tal poder para tornar a Igreja Católica inatacável como igreja de estado.
Ao contrário, eu sim, tenho essa preocupação! Temo que a ideia de soberania de Richelieu ainda esteja profundamente presente na instituição Igreja, que garante que o poder esteja nas mãos dos membros do clero e seja mantida como um fim em si mesma. Eu acredito que isso possa passar pela cabeça somente se houver uma imagem sombria do ser humano: que o homem seja um lobo para o homem; que lutamos uns contra os outros se isso não nos for impedido pela força.
Posso entender como Richelieu tenha chegado a uma visão tão pessimista por causa das convulsões febris da França das guerras religiosas, assim como o filósofo Thomas Hobbes por causa do Guerra civil inglesa e como Nicolau Maquiavel pelas rixas entre as cidades italianas. Posso entender por que, após as grandes convulsões do início do século XIX, a Igreja Católica se organizou como um mundo alternativo e societas perfecta, porque desenvolveu o poder monárquico-sacro dos ministérios ordenados, tendo o papa à frente.
Eu entendo por que o Bispo Joachim Meisner, atormentado pelos governantes da RDA com sua desumana mentalidade, no Ocidente estivesse tão oprimido, irritado e desconfiado em relação a qualquer pessoa que criticasse a Igreja. Eu entendo por que o Papa João Paulo II, que chegou no cenário mundial vindo do absurdo teatro da tardia Polônia comunista, certamente abriu sua Igreja para o exterior, mas a danificou por dentro com uma mentalidade de bunker.
Posso até entender o que o cruel ensinamento de um menino isolado, que considerava que tinha que se impor a todos, fez de Donald Trump, e o que a queda pós-1989 da vitoriosa União Soviética fez do jovem da KGB Vladimir Putin: certamente não pessoas a favor da separação dos poderes. Tudo isso eu posso entender.
O que não entendo é por que a instituição Igreja continua a manter sua forma de organização centralista e absolutista que não funciona mais. Sua constituição pré-moderna desperta muita resistência e aversão em nosso país. E afirmar que essa seria a vontade de Jesus significa continuar a considerar as pessoas tolas. Por que a Igreja se obriga a permanecer fechada em uma constituição arcaicamente autoritária e desprovida de liberdade como numa armadura que nunca lhe serviu? Na verdade, nem mesmo nos dias em que ainda havia estados-igreja e os bispos eram senhores mundanos! Posso inclusive não culpar a nossa antiga instituição por gastar tempo verificando tudo. Vejo também a dificuldade em manter a unidade da Igreja universal com a extrema multiplicidade das Igrejas locais e de rito diverso. Mas é tão difícil elaborar uma constituição adaptada aos tempos?
A Igreja sempre teve que fazer ou pelo menos permitir: no final da perseguição pelo poder estatal romano, na época carolíngia, no início da Idade Média, diante da Reforma e assim por diante. Claro, aquelas reformas foram impostas em sociedades autoritárias e sempre apenas aumentaram o poder do clero no sistema eclesiástico. Eram, no entanto, atividades de ajuste. A afirmação que muitas vezes ouvimos repetir de que a Igreja nunca se adapta aos tempos, que não é necessário e, também, que não pode fazê-lo, é realmente anômala. Na realidade, sempre houve motivos para introduzir reformas. Que também foram pensadas por pessoas inteligentes e devotas.
Durante o ano passado, muitos católicos deixaram a Igreja alemã, um número tão alto como nunca havia acontecido. No mesmo ano, foram celebrados os 100 anos da Constituição de Weimar e os 70 anos da Constituição da República Federal. Qual é a conexão? Em primeiro lugar: há muito tempo na Alemanha não há mais católicos sãos de mente que não estejam profundamente convencidos do aspecto positivo do ordenamento fundamental liberal-democrático baseado na divisão dos poderes e não o considerem definitivo. Em segundo lugar: a confiança na constituição da Igreja alemã se esgotou.
Isso pode ser visto nas recepções oficiais, onde altos representantes do Estado e da Igreja trocam gentilezas. Mas também é perceptível na administração e no trabalho judiciário e especialmente na vida cotidiana. Quando padres e bispos são vistos com crescente reserva, muitas vezes até com desconcerto, para mim é como ver escrito no muro em letras de fogo que a Igreja morre mil vezes nas almas dos fiéis comuns. A confiança se transformou em desconfiança. Sinto isso muito claramente quando falo com aqueles que querem sair e que me fazem a gentileza de me falar sua opinião.
Isso também diz respeito a nós mesmos? Muitos, que se barricaram em suas câmaras de ressonância do mundo eclesiástico, ouvindo apenas aqueles que pensam como eles, o descontentamento os deixa indiferentes. E os conservadores que criticam o Caminho Sinodal iniciado após os escândalos dos abusos, dizem: o imperativo do momento não são as reformas estruturais, até porque não conduzem ninguém à fé, o que é urgente é a nova evangelização. Não me oponho ao pedido espiritual.
Mas estou convencido de que devem ser revelados os acessos para o "santuário". Que não é a Igreja, mas Jesus Cristo. A Igreja está ligada a ele, é amada por ele e guiada ao longo dos tempos. Mas a Igreja não é Cristo.
A Igreja confessa que Cristo é "o mesmo ontem, hoje e sempre" (Hb 13,8). Confessa o "Pai, das luzes: em quem não há mudança nem sombra de variação" (Tiago 1,17). Isso a Igreja o fará até o dia do juízo, mas ela mesma está exposta às mudanças e não está imune às sombras. Essa é uma diferença de natureza entre ela e o Senhor – e devemos dizer isso claramente. Deveríamos suportar a dor causada por nossa incapacidade, pelo nosso fracasso, em suma, pela nossa transitoriedade. A dor é benéfica se nos torna capazes de participação emocional. Aceitá-la é o oposto de rejeitar a ferida narcísica. Os pastores da igreja não precisam se tornar duros – e, mais ainda, ter orgulho disso.
Dureza não é força! É enrijecimento, as pessoas sentem isso e isso provoca aversão. A reforma de que a Igreja agora precisa, chama-se divisão dos poderes. Isso nunca existiu, com exceção do controle dos orçamentário no direito administrativo do patrimônio eclesiástico. Portanto, deve ser o objetivo do Caminho Sinodal.
No que diz respeito às questões de sexo e gênero, de celibato, ministérios femininos e moral sexual, é improvável que possa haver progresso rápido, visto que ali há restrições por parte de Roma devido às regras da Igreja universal no Código de Direito Canônico. Só podemos esperar o desejo expresso pela Conferência Episcopal alemã e pelo Comitê Central de Leigos Católicos Alemães de que o papa permita que em nosso país o celibato seja facultativo e de ordenar mulheres diáconas, só podemos esperar um projeto teológico para a renovação da ética sexual e das relações de casal. Não seria pouca coisa, mas ainda seriam apenas palavras.
Ao contrário, o direito constitucional eclesiástico oferece espaço para fatos ousados e rápidos. Mudariam a imagem da Igreja de uma só vez. Também aqui, é verdade, existem normas jurídicas da Igreja universal. Mas apenas fixam a ordem hierárquica. Os bispos podem usar seu poder para limitar por lei o próprio poder. Autolimitação é a palavra mágica que abre portas trancadas. Os revolucionários odeiam tal procedimento, porque os priva do prazer de destruir o fundamento. Mas não vejo outra via para sair do impasse do absolutismo.
A autolimitação ajudaria a separar os poderes até aqui unidos de legislação, aplicação das leis e jurisdição. Seria então possível introduzir uma justiça administrativa autêntica: instituída pelo bispo, mas não gerida por ele. Então, até mesmo o controle das leis relativas aos bispos não seria mais um problema.
E poderíamos, finalmente, envolver os fiéis na nomeação de párocos e bispos, para que os católicos não tenham mais que se envergonhar da democracia de sua Igreja. Esse caminho de redenção da instituição Igreja também nos presentearia com um novo tipo de bispo que prefere oferecer e receber confiança, escutar as críticas dos espíritos livres, ter colaboradores leais com as costas retas ao invés de permanecer um príncipe da Igreja, cuja plenitude de poder lhe impede de ser uma pessoa humana.
Para aquele que, ao contrário, não quer ser uma pessoa normal, deve ser proibido se tornar bispo. É necessária uma mudança de mentalidade que, para ter sucesso, requer que o absolutismo seja abolido.
O absolutismo impede o bem, leva à desconfiança em relação a todos. A Igreja estaria perdida se continuasse a manter fixo seu sistema clerical.
Os ministérios eclesiais e o poder a eles associado não são um fim em si mesmos. Nós, que somos titulares de tais ministérios, começando pelo papa, somos servi servorum Dei, servos dos servos de Deus. Se nosso serviço der frutos, os fiéis é que devem nos dizer. Se eles não podem mais nos suportar, temos que ir embora. Se ignorarmos suas críticas, eles não terão escolha a não ser deixar a Igreja. Espero que minha Igreja pare de temer perder o poder. Temos que abrir nossas portas e sair de nossos círculos fechados. Justamente agora, na pandemia: somente se formos livres, em vez de nos trancarmos atrás dos nossos muros, estaremos perto daqueles que precisam de nós.
A versão completa do ensaio está publicada na coleção "Von der Volkskirche zur Sekte?" (Da Igreja do povo à seita?), editada por Barbara e Michael Mertes, editora Bonifatius Verlag.
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Alemanha. Parem de considerar as pessoas tolas! O apelo do decano de Frankfurt - Instituto Humanitas Unisinos - IHU