27 Agosto 2020
"A necessidade das liminares deferidas na ADPF 744 (investigações sigilosas no âmbito do Ministério da Justiça) e ADI 6529 (limitações aos poderes da ABIN) é consequência da conduta pretérita do mesmo Supremo Tribunal Federal", escreve Ademar Aparecido da Costa Filho, advogado, sócio de Alamiro Velludo Salvador Netto Advogados, mestrando em Constituição e Democracia pela Universidade de Brasília – UNB, membro do Grupo de Pesquisa Retórica, Argumentação e Juridicidades – GPRAJ e membro da Academia Brasileira de Direito Político e Eleitoral - ABRADEP.
É possível sustentar que o pacto político e jurídico constituído em 1988 foi profundamente modificado pelo Supremo Tribunal Federal ao longo dos últimos anos de constitucionalismo, criando uma norma que valida as atuações do Ministério da Justiça e da Agência Brasileira de Inteligência, respectivamente questionadas pelas ADPF 744 e ADI 6529.
Ou seja, o fato do Poder Executivo se valer de dados sensíveis da população, obtidos sem a observância do devido processo administrativo ou autorização judicial, utilizando-os em relatórios de inteligência vocacionados à pretexto da defesa, da unidade e segurança nacionais, não causa estranheza se se considerar as decisões da Suprema Corte que paulatinamente flexibilizam as garantias fundamentais (CF 88, art. 5º).
Um primeiro exemplo, contemporâneo aos julgamentos ora analisados, foi o julgamento do Recurso Extraordinário nº 593.818 que fixou a tese de “não se aplica ao reconhecimento dos maus antecedentes o prazo quinquenal de prescrição da reincidência, previsto no art. 64, I, do Código Penal”, flexibilizando a proibição de penas de caráter perpétuo (CF 88, art. 5º, XLVII, b) e o próprio princípio da dignidade da pessoa humana (CF 88, art. 1º)[1].
A restrição jurisprudencial do direito de habeas corpus na Suprema Corte, com a edição das Súmulas 691, 692, 693, 694 e 695, no ano de 2003, somou ao entendimento de que “a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal” (HC 126.292/SP)[2], impondo restrições de índole processual e material ao writ que zela com o direito de ir e vir.
Para além da garantia da liberdade, o STF deu mostras de que a própria garantia ao sigilo de dados mereceria flexibilização diante de interesses fazendários ou, mesmo, para investigações penais.
Os temas de repercussão geral nº 225 e 990 possibilitam que informações sensíveis sejam transladadas dentro da própria Administração, de órgão em órgão, sem supervisão judicial, mitigando as garantias da intimidade e da inafastabilidade de jurisdição (CF 88, art. 5º, XII)[3].
Um último caso que merece ser recordado: após inúmeras derrotas na justiça, que proibira a desocupação das diretorias de ensino em 2016, o Estado de São Paulo se valeu de um parecer de sua Procuradoria-Geral atestando a legalidade o uso da Polícia Militar na retomada dos prédios.
O Supremo Tribunal Federal, incitado a manifestar-se na ADPF 412/DF, deixou de decidir argumentando que “o parecer jurídico de caráter meramente opinativo, editado por órgão da Advocacia Pública no exercício de seu mister constitucional de consultoria e assessoramento jurídico aos Entes públicos (art. 132 da CF), não se qualifica como ato do poder público suscetível de impugnação via arguição de descumprimento de preceito fundamental, uma vez que não produz, por si só, nenhum efeito concreto que atente contra preceito fundamental da Constituição Federal”.
Os exemplos denotam que o Supremo Tribunal Federal constrói – especialmente em temas relacionados à liberdade individual – um modelo alternativo e um tanto distante daquele pensando inicialmente em 1988. Rompe com princípios básicos como a separação de poderes e funções, ao permitir que Ministério Público, Receita Federal e COAF tenham liberdade de investigação sobre dados sensíveis sem deferimento de acesso pelo Poder Judiciário. Fortalece o Poder Executivo, ao se omitir diante de ações policiais cujo fundamento legal é construído a custom-made na própria Procuradoria. Enfraquece a liberdade diante da retórica do não conhecimento de habeas corpus.
Considerando a estrutura do Estado, a Receita Federal e o COAF estariam num mesmo plano que o Ministério da Justiça ou a Agência Brasileira de Inteligência. Ainda que tutelem interesses diferentes, mesmo assim a segurança nacional, a arrecadação tributária, o combate ao crime organizado, a ordem política, etc., não aparentam hierarquia constitucional diversa que justificasse decisões com sentidos diversos.
As atuações do Poder Executivo questionadas através das ADPF 744 e ADI 6529 se valeram do próprio hiato de constitucionalidade criado pela atuação pretérita do Supremo Tribunal Federal, que pavimentou o discurso da Advocacia Geral da União para atribuir racionalidade, validade e aceitabilidade social às atuações do Ministério da Justiça e ABIN.
Diante deste cenário, precisamos saber quais os próximos passos de nosso constitucionalismo: as decisões cautelares tomadas nas ADPF 744 e ADI 6529 são vetores de uma retomada da opção constitucional de 1988 ou, simplesmente, espasmódicas numa agenda desconstituinte[4].
[1] Os votos e resumo do julgamento podem ser vistos aqui.
[2] Íntegra disponível aqui.
[3] O primeiro julgamento fixou que “o art. 6º da Lei Complementar 105/01 não ofende o direito ao sigilo bancário, pois realiza a igualdade em relação aos cidadãos, por meio do princípio da capacidade contributiva, bem como estabelece requisitos objetivos e o translado do dever de sigilo da esfera bancária para a fiscal” (Tema 225). Posteriormente, o Supremo Tribunal Federal afetou o RE 1.055.941 ao regime de repercussão geral (Tema 990) para decidir a constitucionalidade do “compartilhamento com o Ministério Público, para fins penais, dos dados bancários e fiscais dos contribuintes, obtidos pela Receita Federal no legítimo exercício de seu dever de fiscalizar, sem autorização prévia do Poder Judiciário”.
[4] Como destacado pelo Professor Titular da Universidade de São Paulo, Gilberto Bercovici, “a soberania do Estado deve identificar com a soberania do povo. A localização da soberania no povo não é ficção, mas uma realidade de política cuja importância percebe-se quando se concebe a soberania do povo oposta à soberania do dominador” (BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição: para uma crítica do Constitucionalismo. São Paulo: Quartier Latin, 2008 p. 23).
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
As ideias fora do lugar: liberdades, dados e o Supremo Tribunal Federal - Instituto Humanitas Unisinos - IHU