17 Agosto 2020
"A diversidade de indivíduos existentes – criaturas humanas e não humanas – é o que Deus deseja criar. Deus cria indivíduos e não essências a serem revestidos, cada um com sua própria roupinha: azul para os meninos e rosa para as meninas. O desejo divino de criar é o plano de Deus, o seu projeto. Isso é o inteiro, a harmonia de que fala o Papa Francisco", escreve Paolo Gamberini, jesuíta, capelão da Universidade La Sapienza, Roma, em artigo publicado por Settimana News, 16-08-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
A teologia sistemática tradicional tem defendido a concepção de complementaridade de gênero entre masculino e feminino, como expressão da intenção de Deus para a humanidade. Essa concepção está bem presente nos escritos pessoais e catequéticos de João Paulo II, mais conhecidos como "a teologia do corpo".
Essa forma de ver o gênero pressupõe uma visão metafísica da natureza humana que é mundo essencialista. Não só a natureza humana é entendida como imutável e universal, mas os dois tipos de humanidade – masculino e feminino – são entendidos como exemplos de uma natureza estática, comum e eterna.
A antropologia cristã tende a valorizar uma visão bipolar: o ser humano é dividido em dois tipos distintos, cada um com suas próprias diferenças que são normativas. Essa antropologia da complementaridade afirma que os sexos se complementam, não apenas no nível da reprodução, mas em todo o leque da existência humana: social, intelectual, psicológica, espiritual.
Existe uma forma de ser masculino e uma forma de ser feminina, e essa complementaridade pode ser encontrada na constituição corporal. Portanto, supõe-se que os homens (isto é, masculinos) sejam, por natureza, seres ativos, racionais, intencionais e autônomos, cuja direção se estende ao mundo; as mulheres, por outro lado, são seres passivos, intuitivos, emocionais, cuja inclinação natural é para o interior.
Essa visão bipolar dos sexos leva a uma compreensão igualmente bipolar de seus respectivos lugares, a saber, o mundo e a casa. Há uma série de problemas que surgem em relação a esse tipo de concepção. De fato, é absurdo afirmar que cada um é incompleto em si mesmo, como se tivesse nascido "metade-pessoa" e só depois quando encontrar seu complemento de gênero se tornará inteiro.
Essas características ditas "complementares", que se presumem imutáveis, universais e naturais, são, na verdade, projeções masculinas sobre a identidade, a partir da experiência que os homens tiveram com as mulheres. São dualismos baseados em uma biologia obsoleta e essencialista.
É interessante que o Papa Francisco tente superar o conceito de "complementaridade" no sentido restritivo (½ + ½ = 1) com o de harmonia (1 x 1 = 1).
“Refletir sobre a complementaridade nada mais é do que meditar sobre as harmonias dinâmicas que estão no centro de toda a Criação. Esta é a palavra chave: harmonia. O Criador fez todas as complementaridades para que o Espírito Santo, que é o autor da harmonia, realize essa harmonia” (Discurso do Santo Padre Francisco aos participantes do Colóquio Internacional sobre a complementaridade entre homem e mulher, promovido pela Congregação para a Doutrina de Fé, 17 de novembro de 2014).
Por isso o Papa acrescenta que, “quando falamos de complementaridade entre homem e mulher [...], não devemos confundir esse termo com a ideia simplista de que todos os papéis e as relações de ambos os sexos estão encerrados em um modelo único e estático.
A complementaridade assume muitas formas, pois cada homem e cada mulher aporta sua contribuição pessoal para o casamento e para a educação dos filhos. A própria riqueza pessoal, o carisma pessoal e a complementaridade tornam-se assim uma grande riqueza. E não só é bom, mas também é belo”. Essa complementaridade não determinada é um bom caminho, mas ainda é insuficiente.
O problema com o conceito de "complementaridade" é que pensa a relação não como originária, mas derivada. Se o todo é dado por duas metades, isso significa que essas duas metades em si mesmas "não são". É assim que Platão, em seu Banquete, narra a origem do masculino e do feminino e do terceiro gênero.
Homem e mulher não são duas metades que juntas formam o inteiro "Adam" (do qual deriva a ideia de complementaridade). Homem e mulher expressam em sua realidade já plena o inteiro "Adam”. Homem e mulher expressam o inteiro. Só nesse sentido são partes do inteiro. Se for assim, entretanto, devo pensar a relatio (isto é, o todo, o inteiro) ontologicamente "antes" dos relata que o expressam.
Uma visão antropológica correta deveria privilegiar a relatio sobre os relata, a existência sobre a essência, a singularidade sobre o genérico. Em outras palavras, Deus não pensa primeiro em alguma "essência" abstrata, eterna e imutável, como a humanidade em sentido genérico, e depois cria secundariamente especificações individuais dessa natureza humana universal, algumas masculinas e algumas femininas, algumas agora e outras em outro momento, alguns nesse lugar e outros em outro lugar.
A diversidade de indivíduos existentes – criaturas humanas e não humanas – é o que Deus deseja criar. Deus cria indivíduos e não essências a serem revestidos, cada um com sua própria roupinha: azul para os meninos e rosa para as meninas. O desejo divino de criar é o plano de Deus, o seu projeto. Isso é o inteiro, a harmonia de que fala o Papa Francisco. Em termos joaninos, é o Logos em que tudo subsiste (Jo 1,3). Em termos paulinos, é Cristo quem é a realidade de todas as coisas (Col 2,17).
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Antropologia cristã e complementaridade dos sexos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU