Podemos contar a história deste nosso planeta em aquecimento utilizando o critério dos graus. O termostato mundial subiu um grau Celsius desde a Revolução Industrial; hoje, fluem das geleiras da Groenlândia rios de água derretida. Dois graus significariam a perda de colheitas e quinhentas mil mortes anuais por desnutrição. Três graus e teremos um mundo mais quente do que a nossa espécie alguma vez experimentou: a última vez que as temperaturas chegaram a esta altura foi há dois milhões de anos, antes da evolução do homo sapiens.
"O nosso aquecimento final:
seis graus da emergência climática"
Mark Lynas
Aumentemos mais dois graus, e poderemos ter a maior extinção em massa na história da terra. Parafraseando Ron Burgundy, as coisas se intensificam rapidamente. Se formos como a maioria das pessoas, teremos a sensação de que a mudança climática é algo ruim, mas também teremos dificuldade para explicarmos as consequências exatas de cada grau adicional de calor. Uns poucos graus de aquecimento não parecem tão ruins, talvez não sejam mais perigosos do que girar para a direita o nosso termostato. Então, em que ponto os verões suados e os invernos amenos se transformam em extinção massiva e um colapso civilizacional?
Um novo livro busca abordar essas questões: Our Final Warning: Six Degrees of Climate Emergency (O nosso aquecimento final: seis graus da emergência climática), de Mark Lynas, influente ambientalista inglês. Lynas ficou conhecido por sua capacidade de trazer provas científicas estridentes em uma prosa convincente e por realizar, há muito tempo, debates públicos com outros intelectuais. Em 2007, ele publicou um livro, intitulado Six Degrees: Our Future on a Hotter Planet (Seis graus: o nosso futuro em um planeta mais quente), mas nos anos seguintes o clima mudou tão rapidamente que o autor achou necessário não só fazer uma atualização do texto, e sim reescrevê-lo por completo.
Em 2015, um mundo aquecido em 1 grau foi realidade, não um futuro especulativo. Os níveis dos mares subiram seis centímetros; solidificaram-se as provas de que as emissões de combustíveis fósseis amplificam os furacões. Havia tantas evidências disponíveis que Lynas precisou começar tudo e escrever um livro inteiramente novo, construído sobre a mesma estrutura do primeiro volume. Recentemente, Lynas foi entrevistado pelo sítio eletrônico Grist, quando falou das mudanças ocorridas nos últimos quinze anos, da forma como a pandemia de covid-19 se assemelha com as mudanças climáticas e de como ele consegue viver feliz tendo, ao mesmo tempo, o conhecimento de uma desgraça iminente.
A entrevista é de Nathanael Johnson, reproduzida por National Catholic Reporter, 22-07-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Há um artigo [1] cuja reflexão se parece com aquela presente em seu livro, um artigo que recebeu muita atenção nos EUA, escrito por David Wallace Wells. O seu texto recebeu críticas por unir os piores cenários com o futuro mais provável da humanidade. Como você lida com a tensão entre contar uma história emocionante, ao mesmo tempo sendo rigoroso com os fatos?
A beleza em usar 6 graus de aquecimento como um enquadramento é que podemos fazer uso de ambas as coisas. É uma história assustadoramente terrível porque temos uma narrativa que vai desde o mundo relativamente moderado de 1 grau até o mundo totalmente assustador de 6 graus, e podemos interpretar essa narrativa quase como um romance na medida em que estes mundos se desenvolvem. Não digo que veremos 6 graus; isso é um produto das decisões que ainda precisamos tomar. Apenas acho que é útil ficarmos de fora desses debates polarizados sobre o que o futuro nos trará, porque, na verdade, essa não é a questão. A questão é: o que vai acontecer? Não precisamos abordar a questão das probabilidades; trata-se de uma decisão coletiva que a humanidade fará nas próximas décadas.
Uma das coisas mais assustadoras que você menciona são os “feedbacks positivos”, aqueles que se retroalimentam, onde, por exemplo, um mundo com 4 graus de aquecimento derrete o pergelissolo [ou permafrost, tipo de solo encontrado na região do Ártico], o que poderia liberar gás metano suficiente para atingir até 5 graus.
Sim, é o que provavelmente David Wallace Wells nos apontaria. Mesmo que não venhamos a quadruplicar o atual consumo de carvão, ainda assim enfrentaremos a possibilidade de cruzar estes pontos de inflexão que tornam imparável o processo de aquecimento global. Talvez eu tenha sido mais otimista no presente livro do que o fui no primeiro que escrevi: uns pensam que o que digo é que, se cruzarmos os 2 graus, desencadearemos um ponto de inflexão que nos levaria a 3 graus, e então um ponto de inflexão que nos levaria a 4 graus, como uma fileira de dominó. Não é bem assim, pois não temos certeza de onde se encontram os pontos de inflexão, e porque leva tempo para que eles se desenrolem. O pergelissolo do Ártico possui metros de espessura, ele leva décadas para derreter, apodrecer e atingir a atmosfera, e então décadas mais para que se aqueça e, então, derreta mais pergelissolo.
Quando fazemos referência a esses pontos de inflexão, estamos falando de séculos. Por exemplo, eu acho que já cruzamos o ponto de inflexão em que o derretimento da Groelândia se tornou irreversível, mas levará séculos ainda para se desdobrar.
Depois de ter escrito este livro, o quanto leva a sério a ameaça das mudanças climáticas?
Eu diria que levo muito a sério essa ameaça. Se quisermos salvar os recifes de coral do mundo, precisamos ficar na casa do 1,5 grau; 2 graus já leva ao clareamento 99% dos recifes de coral. Para mim, o mais triste é a aniquilação da nossa herança biológica: florestas tropicais, recifes de coral, o Ártico. É possível argumentar que os seres humanos podem viver perfeitamente felizes com o aumento de alguns poucos graus. Mas, para mim, continua sendo algo profundamente importante defender toda forma de vida.
E quanto aos cenários que podem levar não ao colapso civilizacional, mas ao sofrimento daquelas pessoas que não têm acesso ao condicionamento de ar, por exemplo, no sul asiático?
A data na qual tornaremos regiões do mundo inabitáveis por causa do calor extremo está se aproximando. Uma primeira pesquisa sobre isso estabelecia essa data dentro de um cenário de 5 graus. Hoje está em 3 ou 4 graus. Já estamos perto das condições que tornam letal ficar no sol em algumas regiões do Golfo Pérsico. Quanto às consequências humanas, os dois problemas que se sobressaem são o calor extremo e a produção de alimentos. Não tenho a confiança de que possamos adaptar a produção mundial de grãos para que sobreviva um aquecimento de 2 graus.
Esse conhecimento sombrio afeta o seu dia a dia? Ele o deixa triste, cheio de energia, ou o quê?
Já passei por todas essas coisas. Já tive períodos de depressão e um senso profundo de perda. Honestamente, já me acostumei. Não acho difícil lidar com esses dados agora. Sou muito bom em compartimentar, em separar as coisas. E estas não são coisas imediatas. Não é o mesmo que uma guerra ou uma pandemia. Então, por alguns instantes, podemos até nos esquecer delas.
Percebe algum paralelo com a pandemia de covid-19?
A pandemia é como uma mudança climática na dobra espacial. A causa e o efeito estão estreitamente ligados. O confinamento social lembra a necessidade de transformarmos o nosso modo de vida para reduzir os níveis de carbono emitidos na natureza. Assim, paramos com as viagens, alteramos nossas dietas, fazemos os sacrifícios necessários para dobrar a curva do carbono. E então, no longo prazo, temos a perspectiva de uma vacina.
O paralelo climático é a substituição tecnológica: podemos substituir a energia suja por uma energia limpa, podemos encontrar formas de viajar com zero emissão de carbono. Tudo isso leva tempo, portanto, no longo prazo, sim, precisamos deixar de voar, mas não é possível manter para sempre um confinamento social (lockdown), seja por causa do vírus, seja por causa das mudanças no clima.
Parece que você vê a necessidade de vivermos de forma mais simples e, ao mesmo tempo, acolher a tecnologia…
A ideia de viver de uma maneira mais simples não vai funcionar no longo prazo. A região do mundo que vive de maneira simples, a saber, a África subsaariana e outros lugares abaixo da linha da pobreza, não querem continuar nessa condição. Este não me parece um argumento viável em um sentido prático ou mesmo moral. Sim, para uns trata-se de uma escolha de vida, mas fingir, mesmo que por uns poucos instantes, que essa seria uma solução climática, é insano.
Mas você menciona que poderíamos voar menos. Não acha que os mais ricos devem fazer sacrifícios?
Acho, mas as pessoas só fazem sacrifícios no curto prazo. Lembremos que só se consegue manter as coisas segundo uma exortação moral por um breve período de tempo; depois, as pessoas se cansam e seguem adiante. Como acontece com o confinamento social de hoje, é uma questão de meses, realmente. Acho que o mesmo se aplica ao clima. Veja: temos as tecnologias disponíveis que nos permitiriam descarbonizar e continuar com o crescimento, especialmente nos países em desenvolvimento.
Mas, no livro, o seu objetivo foi só traçar as consequências. Você não busca propor soluções.
Eu pensei: que se dane, escrevi este livro cinco anos atrás, chamado Nuclear 2.0. Ele trazia toda uma estratégia detalhada para uma transição às energias renováveis e à energia nuclear, etc., etc. E mais, eu jamais poderia vender este livro na Alemanha se mencionasse a palavra “negro”. Era melhor ter um livro que pudesse ser lido por um público mais amplo e que permitisse às pessoas investigar soluções da forma que desejarem.
[1] Disponível neste link, em inglês.