09 Julho 2020
"Inépcia na pandemia arranha sua imagem, porém seus ataques à democracia não geram grandes abalos. Uma pista: presidente encarna espírito da Casa Grande, ainda arraigado no país, para mobilizar os desiludidos com a política tradicional", escrevem André Pereira Neto, Pesquisador Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz, Matthew B. Flynn, Professor Associado da Georgia Southern University e Letícia Barbosa, doutoranda da Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz, em artigo publicado por Outras Palavras, 07-07-2020.
A resposta brasileira a pandemia da covid-19 é uma das piores do mundo. Isso pode parecer surpreendente, pois o Brasil é um dos poucos países que tem um sistema nacional, público, universal e gratuito de saúde que compreende desde a prevenção até a assistência médica, em todos os níveis de cuidado: o Sistema Único de Saúde (SUS). Na ultima semana o país chegou a ter mais de 60 mil mortos. O presidente Bolsonaro foi contrario ao isolamento desde o início da pandemia. Apesar disso ele continua mantendo índices estáveis de apoio de metade da população brasileira. Como explicar este apoio? A resposta a esta questão só pode ser compreendida através de uma compreensão mais detida do contexto político que elegeu e mantém o presidente Bolsonaro no poder.
Bolsonaro venceu as eleições com 57 milhões de votos (55,13%), no segundo turno, derrotando Fernando Haddad (PT). Sua vitória encontra diferentes explicações convergentes. Por um lado o PT cometeu o erro ao adiar o lançamento de seu candidato na ilusão que Lula poderia ser absolvido e concorreria nesta eleição. Além disso, a grande mídia desgastou, de forma sistemática desde 2002, a prática política do PT. Este partido no poder foi apresentado pela mídia como uma organização corrupta e Lula como um criminoso. Uma propaganda convincente e muito bem estruturada que o PT não foi capaz ou não soube reverter. O governo de Dilma Rousseff foi responsabilizado pela crise econômica enfrentada desde 2013. Nas ruas foi se constituindo um movimento social, que vestia as cores nacionais, e acusava o PT de ser comunista. Por outro lado, em sua campanha eleitoral, Bolsonaro, enfatizou que ele não pertencia à chamada “política tradicional”. Ele se apresentava como político novo e militar que teria a coragem e força para combater os corruptos. Na medida em que as pesquisas eleitorais indicavam seu crescimento, por um partido político pequeno e desconhecido, foi sendo construída sua base política e ideológica heterogênea constituída por interesses ligados às igrejas neopentecostais, aos latifundiários e aos produtores de armas. Em sua campanha, as políticas sociais eram vistas como vantagens indevidas. Para ele, o Estado deveria se retirar do jogo econômico, passando a exercer o papel de espectador da vida social. Construiu-se, ainda, em torno de Bolsonaro a imagem de um mito. Um mito construído sobre incontáveis notícias falsas (fake news), que se tornaram verdadeiras aos olhos de muitos brasileiros. No dia 1 de janeiro de 2019, Bolsonaro tomou posse do cargo de Presidente da República do Brasil.
No Brasil, a relação do presidente Bolsonaro com a pandemia foi de profundo e explícito desprezo. Diversas vezes, durante os meses de março e abril de 2020, ele se manifestou publicamente desta forma. No dia 24 de março, por exemplo, ele chamou a pandemia de um resfriadinho. Naquela época, o Brasil ainda não havia apresentado os sinais evidentes da doença. O presidente aproveitava e circulava pelas ruas, cumprimentando as pessoas como se nada estivesse acontecendo. Ele foi, e continua sendo, contrário ao isolamento social e ao cerceamento da atividade econômica. Mandetta, seu Ministro da Saúde naquela época, dizia o contrário. Esta divergência derrubou o ministro. Em seu lugar, entrou outro médico que durou menos de um mês no cargo. Desde então um militar dirige o Ministério da Saúde.
Em abril, os mortos por coronavírus começaram a aparecer. No dia 12, o país já registrava mais de mil mortos. Bolsonaro reagia, dizendo: “O vírus tá indo embora”. No dia 28 de abril, quando os índices ultrapassavam a casa dos 5 mil mortos, reagia, dizendo: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o que? Eu sou Messias, mas não faço milagres”. Em tempo: o nome completo do presidente é Jair Messias Bolsonaro.
Durante os meses de maio e junho, Bolsonaro continuou contrário ao isolamento — apesar do número de mortos começar a crescer. Nos últimos meses, o DataFolha fez duas perguntas que consideramos fundamentais. A primeira foi a seguinte: “Na sua opinião o presidente Jair Bolsonaro está fazendo um governo ótimo, bom, regular, ruim ou péssimo?”
Os resultados foram os seguintes:
Avaliação do Desempenho de Bolsonaro em relação ao coronavírus (Foto: OutrasPalavras)
A outra foi a seguinte: “Você diria que sempre confia, às vezes confia ou nunca confia nas declarações do presidente Jair Bolsonaro?”
Grau de Confiança no presidente Bolsonaro (Foto: OutrasPalavras)
Não se deve subestimar o descrédito que o Presidente da República passou a ter nos dois últimos meses, em que ele perdeu 8 pontos na pesquisa. Entretanto, esta queda não nos parece compatível com o fato dele continuar sendo contra o isolamento e ameaçar sistematicamente a democracia, especialmente os poderes legislativo e judiciário. Este apoio não nos parece tão pouco compatível com o desgaste político relacionado com a saída do Ministro Sergio Mouro, com ampla divulgação da reunião ministerial realizada no dia 22 de Abril, nem com a recente prisão de Queiroz.
Por um lado, existe uma matriz explicativa associada à estrutura da sociedade brasileira construída sobre os pilares dos 388 anos de trabalho escravo, da brutalidade de um homem contra outro, da força física, do castigo, da exclusão social. A maneira de falar e agir de Bolsonaro encarna com maestria este ethos. Ele se assemelha a um Senhor de Escravos. A quantidade de palavrões que utilizou na reunião ministerial do dia 22 de abril, e a maneira agressiva com que se refere a seus colegas e à sociedade, sinalizam que suas palavras e seus e valores são próprios de um homem que não tem nas leis um limite para suas ações. Age como um Senhor de Escravo. Seus ministros, o seguem como Capitães do Mato, submissos às ordens de seu senhor, querendo ser ainda mais cruéis que ele. A nosso ver, muitos brasileiros, pobres ou ricos, brancos ou negros, homens ou mulheres, se identificam com estes valores e ideias e reproduzem estas palavras e sua forma de pronuncia-las. No dia seguinte da divulgação da reunião ministerial, foram realizadas manifestações de apoio ao Presidente em diferentes capitais do Brasil.
Do ponto de vista conjuntural, vivemos no mundo, e não apenas no Brasil, uma crise do modelo democrático representativo construído desde a Revolução Francesa. O modelo democrático de gestão da coisa publica está perdendo diariamente sua representatividade, legitimidade e razão de ser e existir. O político e sua pratica profissional estão visceralmente associadas à corrupção para beneficio próprio. Neste contexto, o cidadão não se interessa em votar. Essa situação talvez explique por que mais de 31 milhões de brasileiros (21%) não foram às urnas em 2018. No mesmo pleito mais de 10 milhões votaram em branco ou anularam seu voto no segundo turno. Neste contexto, o eleitor se apega a líderes visionários, que aparecem na ultima hora e se propõe a combater este ambiente contaminado pela politicagem. Bolsonaro é um ótimo exemplo neste sentido. Seus seguidores insistem em afirmar que o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal não deixam “o homem trabalhar”. Na reunião ministerial do dia 22 de abril, ele anunciou que queria “todo mundo armado. Que povo armado jamais será escravizado”.
Os mais de 60 mil brasileiros vítimas do coronavírus e a postura agressiva do Presidente em relação às instâncias democráticas parecem não influir no apoio que a metade da população brasileira continua dando ao Presidente da Republica e a seu governo.
Fonte: Datafolha
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Por que o apoio a Bolsonaro não desmorona - Instituto Humanitas Unisinos - IHU