05 Junho 2020
A Igreja Italiana está abalada com a notícia, que saiu nos últimos dias com grande alarde na imprensa nacional, sobre o afastamento, decidido pela Santa Sé, de Enzo Bianchi da Comunidade de Bose. Comunidade fundada por ele imediatamente após o Concílio Vaticano II. Um caso clamoroso. Vamos tentar entender mais, na medida do possível, nesta entrevista com o teólogo Riccardo Larini. Riccardo Larini é um intelectual muito próximo da Comunidade, fez parte dela por onze anos e sempre manteve excelentes relações com todos em Bose.
“Após a solenidade de Pentecostes, a Comunidade de Bose recebeu a notícia de que seu fundador, irmão Enzo Bianchi, juntamente com o padre Goffredo Boselli e a irmã Antonella Casiraghi declararam aceitar, embora com espírito de doída obediência, todas as disposições contidas no Decreto da Santa Sé de 13 de maio de 2020. O irmão Lino Breda havia declarado a aceitação imediatamente, no momento da notificação.
Portanto, a partir dos próximos dias, pelo tempo indicado nas disposições, viverão como irmãos e irmãs da Comunidade em locais distintos de Bose e de suas Fraternidades. Aos nossos amigos e hóspedes que nos acompanharam com oração e carinho. nestes dias difíceis, pedimos que não parem de interceder intensamente por todos nós, monges e monjas de Bose, onde quer que vivamos. Orem por cada um de nós e pela Comunidade como um todo, para que possa continuar na esteira de seu carisma fundador: fiel à sua vocação como comunidade monástica ecumênica de irmãos e irmãs de diferentes denominações cristãs, continue a testemunhar diariamente o evangelho entre os homens e mulheres de nosso tempo".
A entrevista é de de Pierluigi Mele, publicada por Confini, 03-06-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Professor Larini, esse é o texto do Comunicado de imprensa que a Comunidade Ecumênica de Bose divulgou em 1º de junho, após conversas com o delegado apostólico. Sabemos, a partir de um artigo da Avvenire, que esse afastamento será "por tempo indeterminado" para Enzo Bianchi, para as demais será de três a cinco anos. Alguns comentaristas escreveram que esse é um "adeus" para Enzo Bianchi de Bose. Eu pessoalmente não acho que seja. Qual é o seu pensamento?
Antes de tudo, espero que você entenda que estou falando de pessoas que para mim são família, mesmo que eu concorde em fazê-lo como "irmão distante", que possa ajudar a refletir os próprios "pais" e tornar a comunicação em torno do caso menos baseada em suposições que às vezes são até maliciosas ou mórbidas. Certamente, pelo que pude saber pessoalmente e por tudo o que foi publicado (e não) nos últimos dias, parece-me claro que um distanciamento entre as partes se tornou necessário. Embora sejamos pessoas maduras e de grande fé, há momentos em que a convivência só pode ser prejudicial. Por isso, é bom que todos possam respirar. O prior precisa de espaço para poder exercer seu ministério mais livremente, ou seja, para tomar decisões ordinárias sobre a vida comunitária, escolher seus colaboradores, acompanhar com os carismas da firmeza e do discernimento, como estipula a Regra de Bose, a vida espiritual e monástica dos irmãos e irmãs, que tenho certeza de que continuará de acordo com o nível de sempre. Os outros membros envolvidos (e não apenas aqueles temporariamente afastados) precisam de espaço para repensar como estar plenamente solidários com o corpo da comunidade e seus valores, sem perder suas convicções, especialmente as fundadas no Evangelho.
Placa de acolhida no Mosteiro de Bose: "toque, entre e alguém virá lhe acolher". Foto: Mosteiro de Bose
O fundador precisa de distância para encontrar uma maneira diferente de ser um "simples monge" que, no entanto, nunca será completamente um "irmão como qualquer outro". E é este último, afinal, o verdadeiro nó interno a ser resolvido.
Eu li muitos clichês sobre o que acontece ou deveria acontecer quando ocorre uma sucessão, como se estivéssemos falando de uma empresa ou de um clube esportivo, ou da sucessão entre dois abades de uma comunidade de longa história. Mas a realidade é que, enquanto um fundador de uma experiência religiosa de qualquer tipo estiver vivo, nunca poderá ter um papel idêntico ao de todos os outros, pela própria natureza das experiências religiosas.
Não querendo fugir de sua pergunta, portanto, respondo que, se a distância for acompanhada de um processo dialógico real, o irmão Enzo permanecerá parte da experiência de Bose. Provavelmente vivendo à margem, mas voltando a se envolver em formas novas e não invasivas na história de Bose. Na ausência de uma vontade por parte de todos de iniciar esse processo, os caminhos do fundador e de uma parte da comunidade, por um lado, e do restante da comunidade, pelo outro, serão definitivamente separados.
Vamos aprofundar um pouco mais as "raízes" desse caso. A providência da Santa Sé é dura. Tudo surgiu, cito do primeiro comunicado da Comunidade, “de sérias preocupações recebidas de várias partes à Santa Sé que sinalizavam uma situação tensa e problemática em nossa Comunidade no que diz respeito ao exercício da autoridade do Fundador, à gestão do governo e ao clima fraterno". Esse comunicado "diz e não diz" ao mesmo tempo. Eu pergunto: é possível que, devido a divergências entre o fundador e o atual prior, se chegue a uma providência tão drástica? É possível que um homem carismático como Enzo Bianchi seja incompatível com a vida comunitária?
Tenho muitas dúvidas... Sempre temendo e tremendo, tirando meus sapatos como Moisés diante da sarça ardente, devo declarar que a resposta à sua pergunta não pode ser dada por um processo exclusivamente interno a Bose. Deixe-me explicar. Certamente cabe a toda a comunidade (incluindo os membros afastados) recompor suas lacerações e definir o que querem ser e para onde devem ir, de uma maneira fundamentalmente autônoma (desde que não contradiga o Evangelho, porque nesse caso todo crente teria o dever de correção fraterna a respeito). No entanto, tanto os esclarecimentos fornecidos no segundo comunicado da comunidade sobre a promessa de permanecer "fiel à sua vocação de comunidade monástica ecumênica de irmãos e irmãs de diferentes denominações cristãs", quanto os muitos, demasiados, boatos que surgiram sobre novos pedidos formulados à Comunidade pela Santa Sé, levantam sérias questões sobre as razões gerais e ao dimensão global da disposição adotada. Há muitas pessoas, eu diria sem medo de exagerar dezenas de milhares, na Itália e em todo o mundo que, não por desejo doentio de espiar, mas para sua jornada espiritual pessoal, de alguma maneira têm a profunda necessidade de saber para onde Bose quer e deve ir, se as disputas internas também dizem respeito a isso ou são apenas questões de fraqueza humana, se o decreto singular emitido pelo Secretário de Estado peça ou não mudanças jurídicas e disciplinares tais à comunidade, a ponto de desestruturar, mesmo que parcialmente, sua carga profética. Existe toda uma "geração Bose", como a definiu Massimo Faggioli, que não consiste em pessoas que facilmente teriam ido a outros mosteiros e que, inclusive, se aproximaram da igreja e do Evangelho graças à unicidade da comunidade fundada por Bianchi. Para eles, acredito, a comunidade deve respostas, que de outra forma chegariam a eles do caos midiático que explodiu em torno do evento, e serão respostas distorcidas.
Enzo Bianchi acolhe o Patriarca Ecumênico Bartolomeu, no Mosteiro de Bose, 2015. Foto: Mosteiro de Bose
Vamos continuar com a análise. Até onde se sabe, nenhuma questão doutrinária foi imputada ao irmão Enzo. Para alguns observadores, no entanto, todo o caso assume o caráter de uma "normalização" da experiência de Bose. O que estaria em contradição com o espírito fortemente ecumênico do papado de Francisco. O papa sucumbiu à ala conservadora da Cúria Romana? Como você julga o comportamento da Santa Sé?
Qualquer um que entenda seriamente um pouco de teologia sabe bem que definir Bose como uma entidade super-progressista ou até herética, além de ser uma afirmação distante da verdade, é na verdade uma construção montada em gabinete muito útil para gerar polarizações na rede e para arrolar o nome de Bianchi e de Bose para fins e lutas das quais nunca fizeram parte. Obviamente, não há nenhuma questão doutrinária em jogo.
O monasticismo sempre foi uma realidade profética, em certa tensão com as instituições eclesiais. E é igualmente claro que, precisamente por esse motivo, a hierarquia eclesial é sempre tentada na história a domesticar as experiências monásticas, enquadrando-as no direito. Na minha opinião, trata-se de uma tensão até saudável, que não me escandaliza. A isso deve ser acrescentada (foi a tese do meu mestrado em Cambridge sobre Jesus e o primeiro século) que toda nova experiência religiosa passa de uma fase em que ela é vivida unicamente por uma comunidade restrita, para outra em que, especialmente com a morte da primeira geração, a institucionalização é inevitável, e tensões surgem em torno da interpretação das origens. Basta pensar no capítulo 21 do Evangelho de João.
Quando saí de Bose, 15 anos atrás, a comunidade ainda não era nem mesmo uma associação de fiéis laicos: do ponto de vista jurídico, possuía apenas configurações civis. E dispunha apenas de uma Regra composta por indicações tiradas dos evangelhos, um ofício litúrgico de sua própria composição e um mínimo muito reduzido de estruturas internas. No entanto, era reconhecida em todo o mundo e por todas as igrejas como um exemplo fúlgido de vida monástica. A lei não é tudo.
É claro que a liberdade de Bose sempre despertou pequenas invejas em algumas experiências tradicionais da vida religiosa, e que, de qualquer forma, foi a própria comunidade, já naqueles anos, que se questionou sobre um possível enquadramento institucional como associação de leigos. Também porque isso estava muito de acordo com a defesa da laicidade do monasticismo, de ser simples cristãos, consagrados a Deus em Cristo através da única consagração recebida por todos os cristãos no batismo.
Oração em Bose. Foto: Mosteiro de Bose
Quanto ao papa Francisco, eu distinguiria muito sua sincera orientação ecumênica de sua visão das questões internas, até jurídicas, da igreja. Eu acredito que é inteiramente possível que ele próprio tenha se convencido de que deve ajudar a comunidade Bose a evitar problemas futuros, solicitando mudanças e um maior enquadramento no direito canônico. Além disso, parece-me que ele não poupou tais intervenções em outros casos.
Por outro lado, sinto que sou menos generoso com o modo como a Igreja Católica tratou o assunto de maneira mais geral.
Primeiro, e até onde eu sei ninguém ainda citou isso, se Bose é uma associação de leigos de direito diocesano, considero pelo menos uma falha do ordinário local não ter conseguido mediar uma situação da qual ele não podia não ter conhecimento. É inútil pedir mais sinodalidade, uma aplicação maior do Vaticano II, se os bispos são os primeiros a não acreditar em suas prerrogativas. Está em jogo uma aplicação genuína do Concílio.
A Secretaria de Estado também interveio (porque o decreto é dela, e não do papa, mesmo que ele o tenha aprovado), aplicando de fato a jurisdição direta da Santa Sé sobre cada crente católico. Pena que em Bose também existam não-católicos, membros a pleno direito da comunidade e o recurso à única prerrogativa do papado sobre a qual nenhuma igreja cristã jamais concordará com aquela católica para dirimir uma questão inerente a uma comunidade ecumênica representa um vulnus excepcional ao espírito ecumênico, do qual aliás continuamos a nos declarar fiéis servidores. E a comunicação do Vaticano foi gravemente insuficiente. Geralmente, as partes das providências que dizem respeito a pessoas não são faladas, e se fala sobre o que diz respeito às instituições, por questões de respeito. Aqui o oposto foi feito e, no próprio Osservatore Romano, deixou-se que a falar do decreto singular fosse o comunicado da comunidade de Bose. Para poder dar mais respostas à sua pergunta, portanto, acredito que devemos aguardar neste momento a publicação muito necessária do decreto singular, na ausência do qual, mesmo sem querer, continuará a ser alimentada a humilhação de pessoas e de histórias que, ao contrário, propiciaram um enorme serviço à igreja em todo o mundo e à cultura de nosso país.
Enzo Bianchi e papa Francisco. Foto: Mosteiro de Bose
O que está claro é que todo o caso não pode e não será resolvido apenas com providências disciplinares. A experiência de Bose é um grande fruto do Concílio Vaticano II. Por esse motivo, pelo que representa para toda a "cristandade" (entendida aqui como inteira ecumene), todo o caso não é banal. Afeta o futuro da Igreja. Pergunto-lhe, então, qual é a verdadeira aposta em jogo?
As apostas são muito maiores do que o que foi percebido nos palácios do Vaticano e por uma igreja italiana culpada por muito silêncio até agora, mesmo que haja tempo para remediar isso, pelo menos em parte.
É claro que, por um lado, fica claro, pelas reações imediatas e até virulentas, que o caso Bose corre o risco de ser explorado por tristes jogos de poder desencadeados por alguns altos prelados que se opõem a Francisco e ao Vaticano II e por grupos de interesse de vários tipos. Mas, sinceramente, não quero me preocupar com intrigas de palácio.
Um dado mais importante é que está em jogo um testemunho cristão sui generis de que o mundo tem uma enorme necessidade. Bose é um exemplo extraordinário de como o estudo, o conhecimento, a profundidade e a ousadia do pensamento são compatíveis com a fé cristã, aliás, a reforçam. É um laboratório que deu clara prova ao longo dos anos, de um equilíbrio excepcional, sem nunca recorrer a clichês, sem utilizar dogmatismo. Por esse motivo, conquistou a confiança dos cristãos de todas as confissões e de pessoas com orientações culturais e religiosas muito diferentes.
Enzo Bianchi e Patriarca Bartolomeu. Foto: Mosteiro de Bose
Na sociedade dos gritos nas redes e polarizações sobre tudo, precisamos da coragem e da arte de pensar como do pão cotidiano. E Bose tem sido um exemplo extraordinário disso até hoje. Sem experiências como Bose, a igreja se tornaria um lugar muito mais árido, sombrio e triste. Por esse motivo, a comunidade deveria ser acompanhada pela igreja com mais respeito e atenção do que aconteceu nos últimos meses.
No diálogo ecumênico, que é o campo ao qual dediquei grande parte da minha vida, devo usar toda a parrésia evangélica necessária, tanto em relação às igrejas quanto às a comunidade em que vivi.
São quase trinta anos que, em face de declarações públicas, nos fatos o movimento ecumênico está regredindo. Aqueles como eu, formados na grande temporada do diálogo da caridade e dos extraordinários diálogos teológicos que culminam em eventos de época, a partir de Balamand assistiram a um declínio lento e inexorável, ao retorno cada vez mais insistente de comportamentos (bem como de posições teológicas, inclusive oficiais) nas igrejas que contradizem fortemente a busca da unidade entre as igrejas e entre os cristãos. O recurso à jurisdição direta do papa para resolver a questão que surgiu em Bose é um de tais gestos. Com isso, de uma só vez, Bose perdeu grande parte de sua credibilidade ecumênica aos olhos de todas as igrejas não-católicas. E por mais doloroso que seja, não posso deixar de dizer isso.
Levará muito tempo para reconstruir, e talvez não seja possível. E a responsabilidade por esse gesto é tanto da comunidade como da Santa Sé.
Última pergunta: "Normalizar Bose" ou "Normalizar Francisco"?
Uma única, simples resposta: despertar todos para um maior discernimento e vigilância, para não destruir tesouros preciosos, inclusive aqueles que se amam sinceramente.
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O caso Bose. Entrevista com Riccardo Larini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU