29 Mai 2020
Quando alguém, após 50 anos de missão na Amazônia, em meio à pandemia que estamos enfrentando, em uma cidade onde a assistência à saúde é muito precária, se não praticamente inexistente, lhe diz: "Como é que a gente vai tirar o corpo fora? Não, jamais, jamais”, é uma prova clara de que existem pessoas que vivem a missão como algo vital.
É o exemplo da irmã Fermina López, que, mesmo com mais de 70 de idade, não está disposta a fugir da missão que está realizando em Barcelos – AM, cidade às margens do Rio Negro, um dia de barco de Manaus. Além disso, a salesiana diz que vive esse momento com "ansiedade por querer sair, ir às comunidades da periferia e encontrar lideranças, animadores, mas não podemos". Ela até confessa que "as irmãs brigam comigo, porque não tenho medo, quero sair e fazer as coisas, como fazia nossa Mazzarello", lembrando da fundadora e sua atitude em relação a uma pandemia de tifo que a Itália enfrentou em seu tempo.
Na cidade onde ela mora, os números oficiais já falam de mais de 350 infectados e 11 falecidos. As pessoas, na maioria dos casos, usam remédios naturais, inclusive as religiosos, a quem muitos vão pedir os remédios que cultivam em seu quintal. É uma ajuda material, mas também espiritual, enviando palavras de esperança e orando por todos aqueles que pedem suas orações.
Este é um momento em que podemos aprender muitas lições, de acordo com a irmã Fermina López, "especialmente a solidariedade, como ajudar os necessitados, a cuidar dos que estão ao nosso redor" e, junto com isso, "manter a esperança", que nasce da confiança em Deus. Como algo típico do carisma salesiano, a religiosa sente o desejo de "ensinar aos jovens, mostrar essa bondade de Deus, que mesmo na provação, Ele está nos sustentando, nos dando coragem, sem nos deixar cair no pessimismo, na descrença".
A entrevista é de Luis Miguel Modino.
Como a senhora está vivendo este tempo de pandemia no meio da Amazônia?
Depois de 50 anos de missão na Amazônia, é uma experiência única, mas não boa. Dá muita ansiedade de querer sair, ir nas comunidades da periferia e encontrar as lideranças, os animadores, mas a gente não pode. Eles também foram contagiados, mas venceram, no bairro de Mariua, no bairro da Paz, no centro, no bairro São Sebastião. Está muito forte o foco, tem muita gente doente dentro de casa. Nós e nossos vizinhos, ninguém teve nenhum sintoma.
Foto: Luis Miguel Modino
Numa região onde os recursos sanitários são muito limitados, como o povo, especialmente os povos indígenas, estão enfrentando este momento?
Ontem à noite, eu estava lendo que Marivelton, da FOIRN (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro), eles estão fazendo muito remédio caseiro. Outra jovem, ontem estava passando como fazer as famosas garrafadas, com mistura de casca de jambo, de manga, de cajú, de caxi, eles fazem uma mistura e o tomam continuamente. Eles estão preservando os remédios naturais, nós também, em casa não estamos tomando remédio de comprimidos, só o chá, toda hora, de manhã, de tarde, de noite, eu sou a primeira que faço todos os dias.
Nossos vizinhos, eles também vivem nos pedindo as folhas, as cascas de árvore, mangarataia, hortelã, todos os remédios fáceis que tem aqui no nosso quintal, as plantas medicinais que nós sempre cuidamos, chegou a hora plena de usa-las e de facilitar as pessoas fazerem também.
O que vocês estão fazendo como Igreja para acompanhar a vida do povo?
O padre, desde finais de março, ele fica de manhã e de tarde a disposição. Como ele é psicólogo, toda hora ele tem gente lhe procurando. Junto com ele, nós fizemos duas campanhas de coleta de alimentos, entre os comerciantes e as pessoas de bem para levar a essas famílias que moram nas periferias. A gente motivou para doar, depois saiu juntando com o carro da paróquia e através das lideranças dos bairros, a gente foi distribuindo entre as famílias mais necessitadas. Uma vez foram 160, e agora, a semana retrasada, foram 212 cestas básicas completas. A Secretaria de Turismo daqui de Barcelos também doou muitas cestas básicas para poder levar para essas famílias.
Toda hora vem gente pedindo folha e esses remédios que sabem que nós, limão, por exemplo, e aquela fruta daqui, o caxari, que junto com o limão são um remédio muito forte. O povo que mora na beira do rio, eles têm essa árvore na beira do rio, é uma frutinha vermelha, miúda, parece com acerola, mas ela é muito forte em vitamina C. Quando a gente pergunta como eles estão, como superaram a doença, eles dizem que só tomando caxari, que é a fruta com mais vitamina C na região.
Foto: Luis Miguel Modino
Muita gente telefona, vem na porta, pergunta o que tomar, pedem que a gente reze por eles. Também enviando mensagens a través do whatsapp e do facebook, enviando palavras de esperanças, também sabendo das notícias. Em toda Barcelos, que tem 30.000 habitantes, só faleceram 9 pessoas na cidade, já de idade e que tinham outros problemas de saúde.
Acabamos de celebrar a Semana Laudato Si, que nos clama a cuidar da casa comum, da natureza. Diante de tudo isso que a senhora está dizendo, diante desses cuidados naturais, o que esse Semana Laudato Si pode nos ensinar em referência à pandemia do coronavirus?
A importância de cuidar da natureza, de preservar a floresta, suas árvores típicas e suas raízes curativas, assim como a água e o meio ambiente. Para eles, para nós, o valor dado às plantas, às árvores, às águas, isso que é importante para eles. A gente acompanhou esse convite de ouvir as palestras, de estar em sintonia, desse 5 anos de publicação da encíclica. Outras coisas com as pessoas, a gente não pode fazer, só enviar as notícias, os textos, as mensagens que chegavam para estar em sintonia. Também descobrir a importância da limpeza das ruas, nesse tempo que estão em casa, eles estão tendo mais tempo de cuidar.
A mesma coisa com o cuidado das plantas, sobretudo aquelas que são medicinais, que são muitas. O povo conta que, além da medicina, as plantas têm aqueles influxos, aquela mensagem positiva, que uma planta ajuda outra, que uma planta transmite energia positiva. Eles contam o que acontece com cada planta e para que serve.
Como religiosa, o que está significando na sua espiritual esse momento que estamos vivendo?
Uma provação de não poder ficar em contato com as pessoas. Eu fico preparando o plano do grupo de crisma, o plano pastoral do colégio, atualizando, imaginando, pensando, quando tudo isso passar, como vou fazer, como vou fazer com os alunos, com os jovens, com o povo. Também a oração, nós estamos tendo mais tempo de oração, mais tempo para rezar, para pedir por cada pessoa que nos pede oração, que passa mal.
Com a gente vive uma irmã que é de Maués, onde faleceu muita gente. Ela conta de gente perto da família dela, tios, primos, já faleceram várias pessoas, conhecidos dela. A oração de manhã, de tarde, à noite, assistimos a missa pela televisão, inclusive acabaram as hóstias e estamos sem poder comungar sacramentalmente, só espiritualmente. Também aproveitamos para estudar os documentos que a congregação tem pedido.
Foto: Luis Miguel Modino
De cara ao futuro, o que a senhora pensa que a gente pode aprender, cada um de nós pessoalmente, mas também como Igreja, como humanidade, o que a gente pode aprender deste momento que estamos vivendo?
São muitas as lições que podemos tirar desse momento, sobretudo a solidariedade, como ajudar aqueles que estão precisando, o cuidado com aqueles que nos rodeiam, a atenção para não ser ponto de contagio. Devemos fazer um esforço para manter a esperança, tudo vai melhorar, o Pai nos ama, o Pai esta conosco, Jesus está vendo, Maria nos acompanha. Tem uma série de slogans que vão servir para agora e para depois. Também uma vontade grande de ensinar os jovens, de mostrar essa bondade de Deus, que mesmo na prova, Ele está nos sustentando, nos dando essa coragem, não deixando vir a cair no pessimismo, na descrença. Muita vontade de sair falando, dizendo, proclamando que a vida é maior e que temos que ficar atentos a essa vozes negativas dos meios de comunicação, tanta coisa que passa e que pode fazer os jovens ficar perturbados, onde está a verdade, o que é melhor, como depois de tudo isso se comportar.
Depois de 50 anos de missão na Amazônia, diante dessas dificuldades que estamos vivendo, ainda tem vontade de continuar sendo missionária?
Foto: Luis Miguel Modino
Sim, imagina. As irmãs brigam comigo, porque eu não tenho medo, eu fico querendo sair para fazer as cosas, como fazia nossa Mazzarello. A nossa fundadora, na sua época, teve uma pandemia de tifo, ficou muito escrito como ela fez, como ela se comportou. Também nos escritos de Dom Bosco, como ele ajudou as pessoas contaminadas, como preparou os jovens para ajudar, e como todos eles foram preservados nesse momento da pandemia do tifo na Itália.
Continuar, sim, mais ainda, no sentido de ver como eles precisam de alguém que seja amigo, que dê uma palavra de ânimo de confiança, que mostre que não tem medo, porque a fé e o amor é maior de que essas coisas negativas que nos rodeiam. Mas, por outro lado, tem que ficar atenta para não ficar no pessimismo, para não ficar com medo. Continuar na Amazônia, junto com eles, nessa luta tão grande que eles estão tendo, nesse cuidado que eles têm com a vida, vamos continuar.
Aqui havia um grupo grande de ianomami, que ficavam muito tempo nos barracões, quando eles vinham para receber bolsa família. Quando escutaram falar de pandemia no final de março todo sumiram, todos foram para o mato, e por lá estão se defendendo. Não tem ninguém que venha buscar alimentos, dinheiro, eles estão na sua vida, lá nas matas, nas muitas ilhas, nos muitos igarapés de Barcelos, onde tem peixe, onde eles podem ter comida em abundância, e essa fruta, caxari, que está lhes salvando. Vamos continuar, sim, ninguém vai arredar o pé daqui, não, não se pode arredar o pé da Amazônia. Tantas iniciativas para vir ajudar, como é que a gente vai tirar o corpo fora? Não, jamais, jamais.
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“Como é que a gente vai tirar o corpo fora? Não, jamais, jamais”. Entrevista com a irmã Fermina López, missionária na Amazônia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU