29 Mai 2020
"Essa tragédia, que faz estourar champanhe aos integristas, deve, portanto, ser catalogada em conjunto com as operações eclesiásticas mais sofisticadas e trágicas do século XX: porque com uma única cajadada (agnosco stylum romanae curiae) se derruba a anomalia de Bose, o prior, o antigo prior, o que não foi prior, o ecumenismo, a terceira “loggia” do Vaticano, os bispos italianos, uma tira da batina do papa e - para terminar com um toque de crueldade - propõe a Enzo Bianchi que se mude em exílio", escreve Alberto Melloni, historiador italiano, professor da Universidade de Modena-Reggio Emilia e diretor da Fundação de Ciências Religiosas João XXIII, de Bolonha, em artigo publicado por La Repubblica, 28-05-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Para a igreja italiana e para o ecumenismo, a informação divulgada na noite de 26 de maio não é uma notícia: é uma bomba - contida em um ato que ordena a Enzo Bianchi, de "se separar" do mosteiro de Bose, do qual é fundador.
Os detalhes do decreto são até hoje desconhecidos, bem como os atos da visita apostólica do qual decorre e as denúncias que a precederam. Foi divulgado apenas um comunicado de imprensa no site da Bose (porém escrito em vaticanês) que diz pouco e levanta questões preocupantes. Vou mencionar quatro.
I) Na praxe da Santa Sé, são expulsos de uma casa religiosa aqueles que são culpados de crimes torpes apoiados por acusações e evidências que hoje ninguém mais pode ou quer encobrir. No entanto, Enzo Bianchi é punido com exílio de Bose sem nenhuma acusação difamatória.
Em vez disso, ele é acusado de ter exercido "a autoridade do fundador" de maneira prejudicial ao "clima fraterno": um "crime de caráter difícil" - definição de um cardeal romano - que é punido com uma pena capital e com a ordem para se mudar até 1º de junho para Praglia, Bardolino ou Chevetogne. Mesmo que o clima fraterno fosse o ponto, foi com parricídio que Roma pensou em aliviar as tensões em Bose?
II) A disposição notificada ao antigo prior está contida em um "decreto singular" assinado pelo cardeal Parolin em 13 de maio e pessoalmente aprovado pelo papa "de forma específica": portanto, um ato administrativo pelo qual são tomadas medidas que "por sua natureza não supõem uma petição feita por alguém" (cân. 48). No entanto, o próprio comunicado do mosteiro alude a "sérias preocupações recebidas pela Santa Sé de várias fontes" relacionadas a uma "situação tensa e problemática" em Bose. Foi, portanto, uma peça do que um sábio bispo italiano chama de "disputa vaticana contra Francisco", ter sido capaz de usar a briga monástica, a Secretaria de Estado e o próprio Papa para se livrar - como foi o caso do afastamento de Dom Dario Viganò da congregação das comunicações ou do comandante Domenico Giani da Gendarmaria – de pessoas próximas ao pontífice?
III) A "visita apostólica" feita a Bose no inverno era óbvio que traria à tona problemas e incertezas. Mas será que quem a solicitou ou a permitiu entendeu que seria usada para puxar Bose para a normalidade das ordens e castrar sua identidade ecumênica? E se perguntou quando o padre Cencini, um dos três visitantes, retornou a Bose para levar a sentença, por que ele foi como "delegado pontifício ad nutum Sanctae Sedis, com plenos poderes" e, portanto, com a força do sucessor de Pedro, quando teria sido suficiente o bispo de Biella?
IV) Da providência contra Enzo Bianchi, ninguém avisou o episcopado italiano e ninguém se sentiu no dever de informar nem o patriarca ecumênico, nem o patriarca de Moscou, nem as igrejas com as quais Bose tinha laços fraternos: para o primeiro, isso diz que "ninguém está seguro", como dizem alguns bispos, e aos segundos foi oferecida a versão mais bruta do primado papal. Há alguém que se esqueceu de dizer ao papa que Bose faz parte da história de toda a igreja italiana e foi o único antídoto ao espiritismo piegas do ecumenismo italiano, goste-se ou deteste-se o perfil público de seu antigo prior?
Essa tragédia, que faz estourar champanhe aos integristas, deve, portanto, ser catalogada em conjunto com as operações eclesiásticas mais sofisticadas e trágicas do século XX: porque com uma única cajadada (agnosco stylum romanae curiae) se derruba a anomalia de Bose, o prior, o antigo prior, o que não foi prior, o ecumenismo, a terceira “loggia” do Vaticano, os bispos italianos, uma tira da batina do papa e - para terminar com um toque de crueldade - propõe a Enzo Bianchi que se mude em exílio ao mosteiro de Chevetogne, Bélgica, do qual o fundador Dom Lambert Beauduin, foi exilado de 1931 a 1951 ... O que quer que aconteça com esse episódio doloroso, deve-se dizer que, se alguém o orquestrou, foi perfeito. E se não o orquestrou, cabe se perguntar como diabos ele conseguiu fazer tudo isso.
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Por trás do “mistério” de Bose. Artigo de Alberto Melloni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU