28 Mai 2020
Cinco anos após a Laudato si’, é hora de começarmos também a cuidar do nosso ecossistema eclesial comum.
A opinião é de Massimo Faggioli, historiador italiano e professor da Villanova University, nos EUA, em artigo publicado por La Croix International, 27-05-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O Papa Francisco enfatizou a noção da Igreja como povo – especificamente o Povo de Deus – desde o início do seu pontificado.
Ele deu expressão concreta a isso por meio de uma nova forma de utilizar o Sínodo dos Bispos, começando pelas assembleias de 2014 e 2015, que tratavam de questões relativas ao casamento e à família.
De fato, o papa até criou uma linguagem totalmente nova sobre a sinodalidade eclesial.
Tudo isso ocorre pelo menos duas décadas depois que o magistério papal começou a se distanciar cuidadosamente dos teólogos e de suas reflexões sobre a eclesiologia pós-Vaticano II.
Mas que tipo de efeito a experiência da Covid-19 terá sobre essa grande intuição de Francisco?
A pandemia interrompeu profundamente todas as nossas vidas e a vida da Igreja. E deixou claro como os mecanismos de desintegração social podem ser cruéis para os membros mais frágeis das nossas comunidades.
Adotamos o eufemismo do “distanciamento social” para descrever uma das maneiras pelas quais estamos tentando impedir a propagação da doença. Mas deveríamos chamá-lo de “distanciamento físico”.
O distanciamento social tem mais a ver com excluir os outros e menos com a responsabilidade moral de protegê-los e, ao mesmo tempo, proteger a nós mesmos.
E, na Igreja Católica, a pandemia produziu uma espécie de distanciamento eclesial entre o clero e o povo.
Isso não ocorre apenas porque as celebrações eucarísticas com a presença física da congregação foram suspensas – uma medida preventiva que faz um óbvio sentido, a menos que alguém acredite em teorias da conspiração.
O distanciamento eclesial também se deve à recusa da maioria do clero a imaginar outros tipos de celebrações litúrgicas online, como liturgias da Palavra e a lectio divina.
Esse tipo de jejum eucarístico (mesmo que um dia por semana) colocaria todas as pessoas, ordenadas ou não, na mesma situação. Essa recusa consciente (ou inconsciente) do clero a imaginar algo diferente é um dos sinais mais intrigantes da reação da Igreja à pandemia.
Mas há um lado positivo no distanciamento eclesial causado pela pandemia. Ela esclareceu como é crucialmente necessário o processo sinodal para a Igreja, tanto no nível universal quanto no local.
Há duas razões para isso. A primeira é a íntima conexão entre a sinodalidade e a liturgia. A sinodalidade tem uma dimensão litúrgica e nos ajuda a entender corretamente a liturgia.
A dimensão litúrgica da sinodalidade não se limita à missa celebrada durante um encontro sinodal. A experiência sinodal (nas assembleias do Sínodo dos Bispos ou durante os sínodos diocesanos) é litúrgica por si só: os sínodos não são apenas momentos de tomada de decisão, mas, acima de tudo, momentos performativos em que a Igreja afirma a si mesma em todos os seus componentes, como povo de Deus.
Seja em experiências chamadas de sínodos ou em outra coisa (a terminologia muda significativamente na história da Igreja), a sinodalidade tem um valor constitutivo e indispensável.
A segunda razão é que a Igreja terá que responder criativamente não apenas a uma nova situação eclesial, mas também a uma nova situação global em que a liderança e o magistério do Papa Francisco estão se mostrando realmente proféticos.
Isso é verdade não apenas em relação à sua mensagem na Laudato si’, que é particularmente evidente e urgente, mas também às suas palavras e ações sobre a sinodalidade.
Nossa vida eclesial normal não será retomada em poucas semanas nem mesmo quando todas as igrejas forem finalmente reabertas para as celebrações litúrgicas com o povo.
A disrupção atual continuará por mais tempo – se olharmos para a lista de encontros eclesiais que foram adiados em Roma e em todo o mundo (por exemplo, o início do Concílio Plenário na Austrália, agendado para outubro deste ano, foi adiado).
A suspensão em curso da nossa rotina e ritmos eclesiais normais poderia dificultar o desenvolvimento de uma nova vida sinodal na Igreja Católica. Ou poderia ser uma oportunidade para reformular os processos sinodais já em andamento e ajudar a recuperar uma confiança cética da Igreja (tanto clérigos quanto leigos) em seus preparativos.
O fato é que a pandemia mostrou que a Igreja deve repensar como se comunicar com aqueles que estão distantes ou se afastaram por um motivo ou outro.
Patrick Granfield, OSB escreveu sobre o problema da comunicação em uma era de profundas transformações sociais e culturais ainda em 1973.
Ele chamou isso de desafio da “cibernética eclesial”, que era o título real do seu livro sobre o assunto naquele ano. Foi um dos trabalhos mais instigantes de eclesiologia no início do período pós-Vaticano II.
“O uso de equipamentos eletrônicos abre novas possibilidades para o consensus fidelium”, já havia escrito Granfield em um artigo publicado em 1968, pelo menos duas décadas antes da internet.
Como Granfield previu, a cibernética eclesial foi transformada pela comunicação eletrônica. Podemos ver isso no surgimento das mídias católicas independentes e das mídias sociais, uma nova forma de cibernética eclesial que provocou uma desregulação traiçoeira das mensagens eclesiais.
E isso significa que a sinodalidade é mais necessária do que antes.
O distanciamento – de todos os tipos – que a pandemia produziu não pode ser curado ou superado por um mero retorno à missa. Há quem tenha abandonado a Igreja antes da pandemia e possa achar que não precisa da liturgia. Se desejarmos ir ao encontro dessas pessoas, nossas comunidades precisarão pensar seriamente em iniciar um processo sinodal.
A sinodalidade significa não apenas uma certa maneira de tomar decisões, mas também um processo para criar um espaço discursivo para todos os membros da Igreja. Ela inclui um padrão de comunicação que não seja apenas vertical, mas também horizontal. Ela deve encorajar a participação de novos atores eclesiais.
Uma experiência sinodal séria não pode ser apenas algo feito em alguns fins de semana, mas também deve ser preparada, celebrada e implementada/recebida com uma perspectiva de longo prazo. Ela tem uma dimensão performativa e ritual-simbólica, que leva tempo para se tornar carne e sangue de uma Igreja local.
É verdade que um modelo sinodal errado pode levar a uma deformação da Igreja em vez da sua reforma. Mas o mesmo pode ser dito sobre a ausência de sinodalidade.
Na Igreja pós-pandemia, a catolicidade não será medida apenas por quantas missas celebramos e de que maneira, mas também pela qualidade da nossa vida sinodal como Povo de Deus e pelo modo como estamos nos recuperando de um distanciamento eclesial que durou mais do que o confinamento da Covid-19.
Sem uma validação formal e ritual das contribuições eclesiais vindas do Povo de Deus em um processo sinodal, as esperanças de reformar a Igreja e a sua missão evangelizadora serão em vão.
Isso exigirá a aceitação e o desenvolvimento de uma eclesiologia do Povo de Deus e o abandono do modelo de contrarreforma da Igreja Católica como societas perfecta.
A pandemia expôs de um modo muito mais eficaz do que qualquer documento ou evento eclesial na história da Igreja pós-Vaticano II que é impossível retornar ao status quo.
No mundo e na Igreja de hoje, um povo peregrino precisa de um caminho sinodal. E a sinodalidade precisa não apenas de um espírito sinodal, mas também de eventos e instituições sinodais.
Os sínodos são essenciais para a ecologia humana e espiritual da Igreja. Eles são “habitats de esperança”, como o teólogo alemão Bernd Jochen Hilberath os chamou há mais de duas décadas e dois pontificados.
Cinco anos após a Laudato si’, é hora de começarmos também a cuidar do nosso ecossistema eclesial comum.
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Os sínodos como habitats de esperança. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU