15 Abril 2020
"O fato inquestionável é que o mundo da Cibercultura, iniciado no final do século passado com o advento e domesticação dos computadores, e fortalecido especialmente no início deste, com as redes sociais digitais, proporcionou uma nova forma de ser e agir", escreve Thamiris Magalhães, jornalista, mestra em Ciências da Comunicação pela Unisinos e doutoranda em Administração/Marketing pela Escola Superior de Publicidade e Marketing – ESPM. Colaborou como jornalista na Revista IHU On-Line e no site IHU.
Quem em sã consciência um dia poderia imaginar o que estamos vivendo hoje? Um confinamento forçado, por conta de um um vírus que resolveu assolar toda a humanidade. Um vírus que não escolhe país, sexo, cor, classe social... Que veio mostrar que todos, afinal, somos iguais. E fazer com que a sociedade, pelo menos neste tempo (espera-se que não apenas), torne-se mais solidária, humana e fraterna. Quando o altruísmo entra em voga, ao se abdicar por um tempo do maior bem, em prol de uma causa maior: a sobrevivência de toda a humanidade.
As consequências estão aí, surgindo dia após dia. A cada instante surge um atrativo, uma novidade a preencher os dias vazios, sem cor, em que cada dia é um dia – e não se sabe como terminará – sendo essas singularidades de horas e dias interrogações nas mentes, ao não se imaginar quando cessarão. Eis aqui uma mudança de paradigma. Estamos entrando em uma nova era, justamente em uma nova década... E, claro, com a tecnologia e o mundo digital já bem consolidados.
Há, portanto, uma mudança maior de paradigma. As Novas Tecnologias de Informação e Comunicação, com a Internet, as redes sociais digitais e seus derivados, antes tão novas e cheias de surpresas, tornam-se corriqueiras em tempos de coronavírus, preenchendo os dias de isolamento social e sendo a única alternativa de trabalho disponível. O que antes era tão novo, hoje torna-se a única opção encontrada para alegrar – ou entediar – os dias em casa. Uma constatação, porém, é fato: nunca almejamos estar tão conectados, tão próximos uns dos outros, tão ligados por meios virtuais e, justamente quando o que nos resta são apenas esses meios (claro, juntamente com os já tradicionais, TV, rádio e jornais impressos), nunca objetivamos tanto estar em contato físico com os outros. Abraçar, beijar, tocar... sentir o calor humano. Quem sabe, depois de tudo isso, não passemos a dar valor nas pequenas coisas da vida: nos apertos de mãos, nos afagos, nos encontros com os amigos, nos cafés recheados de ideias, nos restaurantes, que sempre tinham como sobremesa aquele insight que mudava as nossas vidas de alguma maneira... Enfim, quando tudo isso passar – e esperamos que seja logo – seremos seres humanos, no mínimo, bem diferentes. Tudo mudará.
Uma das coisas que tem chamado a atenção, principalmente do público fiel às redes sociais e que aderiu – seja agora em temos de Covid-19 ou há algum tempo – às lives [1] é o fato destas estarem ocorrendo constantemente, sendo realizadas pela maioria dos artistas, de todos os gêneros musicais, do Brasil e do mundo, como forma de alegrar e entreter os seus públicos, ao mesmo tempo em que continuam sendo vistos, logo não esquecidos pelo público-internauta nessas redes.
Percebe-se a participação massiva dos artistas nas redes sociais digitais há algum tempo. Porém, as lives, mais predominantemente no Instagram e YouTube, estão sendo realizadas com maior frequência nos últimos dias, por conta da pandemia do coronavírus, por conseguinte, do isolamento social, principalmente no Brasil, onde, não por mera coincidência, concentra-se o número maior de pessoas que estão e participam ativamente do mundo digital, uma vez que o Brasil é um dos principais países com maior participação on-line, mais especificamente o segundo que passa mais tempo “conectado”, perdendo apenas para as Filipinas [2].
Não à toa que os recordes de público assistindo a uma live simultaneamente tenha ocorrido, até a realização deste artigo, no Brasil, com mais de 3 milhões de acessos simultâneos, a um show de uma dupla sertaneja. Números que ultrapassam qualquer show presencial de um artista renomado internacionalmente. Ou, mesmo destes, ao realizarem suas lives na Internet.
O fato inquestionável é que o mundo da Cibercultura, iniciado no final século passado com o advento e domesticação dos computadores, e fortalecido especialmente no início deste, com as redes sociais digitais, proporcionou uma nova forma de ser e agir. Isso já não é mais novidade. O que muda a partir de agora é que somos forçados a nos adaptar quase que exclusivamente a este meio para realizar quase todas as coisas que realizávamos nele, e fora dele: conversar, conhecer pessoas, namorar, “sair para a balada”, “passear”, fazer um tour pela cidade, ir a aniversários, frequentar às missas e cultos (o que antes era inconcebível!)... Tudo isso agora “deve” e pode ser feito pela Internet. Atentem à palavra entre aspas. Ela é repleta de signos e significados sentimentais, emocionais e atitudinais sem precedentes na humanidade até aqui.
A Internet, que já estava sendo utilizada em demasia, mas porque sabíamos que tínhamos outra opção, agora é utilizada como a única “opção” disponível que temos. E isso é terminantemente entediante! Queremos sair, ver pessoas, tocar, dialogar, abraçar, conversar – nem que seja com o celular à mão – talvez até mesmo por sabermos que a palavra “fique em casa” como uma obrigação e um ato de solidariedade, carrega a carga emocional e efetiva de um comprometimento, que não estamos acostumados a ter. Sendo assim, queremos, necessitamos, o proibido, como outrora “necessitávamos” estar conectados. Agora, a necessidade, o proibido, é “apenas” sair. Nunca se valorizou tanto a liberdade.
Mas, como sabemos que não podemos ir para a rua, não o fazemos. Só que agora temos uma opção. Há algum tempo a temos, mas não a víamos como única opção, e sim como mais uma alternativa entre tantas. E está na palma de nossas mãos. Então, se estamos ansiosos para ir ao show de nossa banda favorita, que, por sinal, estávamos com o ingresso comprado para o show que foi cancelado, temos a oportunidade de assistir – e participar – por meio das lives, que os nossos ídolos fazem e nos “dão” de presente.
As lives começaram de maneira espontânea, caseiras, inusitadas, cheias de falhas e improvisos, mas bastante agradáveis de se ver. Com o tempo – e está muito cedo para definir algo maior, pois ainda estamos no meio delas – foram e estão se tornando mais “profissionais”, com um número razoável de pessoas que fazem parte da produção e execução, sendo cada vez mais cobradas pelos fãs e tornando – se quase que uma obrigação a muitos artistas. Quem ainda não a fez, é visto com desconfiança pelo público. Virou questão de Marketing. Os artistas começam a se sentir na obrigação de as fazer, o que perde muito de seu valor, e o resultado de tudo isto veremos mais para frente. Um fato intrigante, porém, é que um símbolo eficaz ocorre quando o presente é espontâneo e inesperado, e não obrigatório. Ou seja, quando se torna uma obrigação, perde grande parte de sua aura do “presenteamento”, no seu sentido literal.
O fato é que, como obrigação ou por vontade própria, as lives acabam “reunindo” novamente o público, sendo este muito maior, cada um em suas casas. Elas alegram, divertem, sendo uma forma de o artista, enfim, poder presentear o seu público com o “show” gratuito.
As lives como presentes dos artistas para com o público lembram ainda as palavras de Belk (1993), quando afirma que o presente, representando o doador, está na vida do destinatário. Nesse processo, o presente fornecido como uma extensão do doador também se torna uma extensão do destinatário e, dessa maneira, os parceiros efetivamente começam a se tornar auto-extensões mútuas. O que, de fato, percebemos nas lives. Como os presentes são vistos como parte do eu estendido do doador, aceitar um presente a partir de uma data – o dia da live - forma um vínculo com essa pessoa, o artista. Além disso, “presentes não materiais são especialmente prováveis de serem vistos como extensões do eu”. (Belk, p. 405). Neste caso, o presente não material seriam as lives que acabam se tornando extensões do eu do artista para com o seu público, que aceita o presente, realizando uma troca mútua, ao participar das lives.
Ademais, de acordo com Belk (1993), presentes denotam troca e a reciprocidade se torna o elemento chave da troca. Esta implica em oferecer alguma coisa em troca de algo recebido anteriormente ou simultaneamente, ou em antecipação de retornos futuros. O que de fato se percebe nas lives, uma vez que os artistas as fazem como forma de retribuir o carinho dos fãs para com eles durante toda a trajetória artística até o momento, que compareceram aos shows, compraram seus DVD’s etc.; uma maneira de agradecer o carinho recebido no momento da live, e, principalmente, uma estratégia de ação que objetiva o futuro, pós-pandemia, ao objetivar que o público não esqueça o “presente” que lhe ofereceu, em sua casa. Sendo assim, haverá uma probabilidade muito grande de o fã não deixar de ir para o primeiro show que o artista fizer em sua cidade – ou não - pós-isolamento social. E isso está sendo “plantado” pelo artista desde agora, com, entre outras ações, as lives.
Ainda assim, mesmo após o período de confinamento, acredita-se que o novo hábito criado por ele de divertimento e entretenimento, por meio das lives, entre outras possibilidades que ganharam mais força em tempos de isolamento social, permanecerá, tornando-se um caminho sem volta, como foram a Internet e as redes sociais digitais há alguns anos. Resta aos artistas saberem se adaptar a este novo cenário, que requer cuidados, atenção, espontaneidade e planejamento.
[1] Ao vivo ou em direto é uma expressão utilizada na reportagem, no meio televisivo ou radiofônico, agora mais recentemente nas redes sociais digitais, principalmente Instagram e YouTube, para indicar que um programa ou evento está sendo transmitido em tempo real, simultaneamente enquanto ocorre.
[2] Disponível aqui.
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Lives como alternativas de entreter em tempos de Pandemia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU