13 Março 2020
"Que tipo de vida, de plena alegria, de doçura sem fim, pensava o salmista diante de Cristo, quando as ideias sobre o pós-morte ainda eram muito confusas? Talvez nem mesmo ele o soubesse. Apenas o intuía. Intuía uma nova presença de Deus após a morte. Mais eficaz e alegre do que a presença agradável no templo e nas assembleias de seu povo. Intuição que permanecia aberta a novas luzes. Estas teriam aparecido depois de uma certa Páscoa".
A reflexão é do biblista e monsenhor italiano Giovanni Giavini, ex-Capelão de Sua Santidade durante o pontificado de João Paulo II, em artigo publicado por Settimana News, 12-03-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
O Salmo 16 (15) contém acentos pré e pós-pascoais. A primeira pregação cristã viu nele a figura do crucificado ressuscitado.
Lemos várias vezes, especialmente na época da Páscoa, mas é bastante complexo e, portanto, adequado a muitas circunstâncias. Qual foi a sua origem e em que circunstâncias?
Obviamente, devemos voltar a algum tempo antes de Cristo, ao lado de um judeu desconhecido que saiu de uma experiência de pecado e conversão.
Quem estava falando naquele salmo?
Um judeu - talvez o rei Davi - que havia se deixado encantar em algum momento pelo culto aos ídolos de seu país ou de seu "eu" considerados mais poderoso se mais úteis que JHWH; meu favor todo aos deuses poderosos: mas depois havia se afastado com decisão, talvez também porque o seu culto incluía sacrifícios e libações com imolações e sangue de homens ou até mesmo filhos e filhas: Eu não espalharei mais suas libações de sangue.
Daquela triste experiência, nasceu a conversão: eu disse ao Senhor: Tu és o meu Senhor, a minha bondade não chega à tua presença... As dores se multiplicarão àqueles que fazem oferendas a outro deus. O Senhor é a porção da minha herança e do meu cálice; tu sustentas a minha sorte. Me proteja, ou Deus, me refugio em você ... As linhas caem-me em lugares deliciosos: sim, coube-me uma formosa herança. Louvarei ao Senhor que me aconselhou; até meu coração ora me ensina de noite. Tenho posto o Senhor continuamente diante de mim, nunca vacilarei.
Desde a conversão, uma nova alegria que envolve todo o salmista: Portanto está alegre o meu coração e se regozija a minha glória; também a minha carne repousará segura.
Interessante essa - embora ainda embrionária - distinção entre o coração (sede e fonte de pensamentos e decisões profundas não apenas sentimentais), a alma (aquele algo interior a cada um, invisível, mas real e distinto em relação aos sentidos e ao sensível) e o corpo, meu eu concreto com suas capacidades também físicas de ação de relação: o que de fato poderíamos fazer sem mãos, pés , boca, ouvidos ...).
Frequentemente também encontramos espírito, semelhante a alma, mas outras vezes parece indicar mais o complexo dos dons de Deus adicionados à alma ou ao corpo como força vital para ambos, para o homem inteiro; portanto, nem sempre se pode falar de terminologia clara para o complexo humano que nós somos. Exceto pelas muitas vezes em que a palavra "espírito" indica a força vital do Espírito Santo.
Ora, o Salmo 16 especifica a nova situação do corpo após a conversão: Não deixarás minha alma no inferno (lugar imaginário de todos os mortos sem ainda distinção) nem permitirás que teu fiel/santo (mesmo sendo um pecador) veja a corrupção, isto é, morte e consequente corrupção no túmulo. Pelo contrário, far-me-ás ver a vereda da vida, na tua presença há fartura de alegrias, à tua mão direita há delícias perpetuamente.
Que tipo de vida, de plena alegria, de doçura sem fim, pensava o salmista diante de Cristo, quando as ideias sobre o pós-morte ainda eram muito confusas? Talvez nem mesmo ele o soubesse. Apenas o intuía. Intuía uma nova presença de Deus após a morte. Mais eficaz e alegre do que a presença agradável no templo e nas assembleias de seu povo. Intuição que permanecia aberta a novas luzes. Estas teriam aparecido depois de uma certa Páscoa.
O Salmo 16 teve uma ressonância notável não apenas entre os judeus, mas ainda mais entre os primeiros cristãos. De fato, nos Atos dos Apóstolos é explicitamente referido em dois discursos. Um de Pedro em sua primeira proclamação do Evangelho no Pentecostes, a outra com Paulo em um sábado na sinagoga da Antioquia, de Pisídia.
Na grande festa judaica de Pentecostes, Pedro, com a coragem vinda do poder ardente do Espírito Santo, proclama que aquele miserável crucifixo Jesus de Nazaré - "amaldiçoado" segundo a lei mosaica – era tudo menos amaldiçoado, havia ressuscitado da morte, subiu à direita de Deus Pai, se tornado Senhor e salvador de todos.
Os ouvintes eram principalmente judeus, também necessitando de alguma confirmação de suas escrituras sagradas. Nesse ponto, Pedro insere uma passagem do Salmo 16, atribuído decididamente a Davi, mas para afirmar que, na verdade, não aquele rei escapou da corrupção da morte e da sepultura, mas aquele rei crucificado Jesus (Atos 2,22-34: texto interessante, também porque pelo menos indiretamente confirma os Evangelhos sob o signo do sepulcro vazio).
E aqui Pedro convida todos a esse tipo de conversão: crer em Jesus Cristo e, com base nisso, unir-se à comunidade de seus discípulos, com quem aquele Crucificado continuava a viver e operar. De fato, ele não era um ídolo morto, nem um simples livro de leis e preceitos, mas um Senhor vivo e fonte do Espírito novo.
São Paulo, na esteira do já convertido Pedro, um sábado - dia caro aos judeus, no qual eles celebraram as memórias de seu passado no aguardo do sábado eterno com Deus - amplia o discurso de Pedro e sintetiza a história de Israel; também Paulo enfatiza em particular a figura do rei Davi, cita o Salmo 16 para proclamar que a verdadeira libertação da morte e da corrupção do sepulcro ocorreu apenas com Jesus.
E conclui, escandalosamente para aquelas pessoas (apenas para elas?), que nem mesmo a santa lei de Deus nos faz justos diante de Deus, mas apenas a fé naquele Crucificado, é somente por ele que somos "justificados, perdoados, salvos" e também aprendemos realmente a amar. Nesse ponto também em Antioquia de Pisídia (atual Turquia), surgiu uma Igreja, vivente da escuta da Palavra, da oração, da fração do Pão, da vida comunitária, com alegria do Espírito do Senhor Jesus (Atos 13,16-51 e 2,42-47).
Nessas reflexões partimos de um antigo Salmo, sempre atual por si só, e chegamos à mensagem pascal, fundamental para todas as Igrejas e para sua jornada no mundo, no mundo também de hoje, na expectativa de alegria plena para o coração, para a alma e para o corpo nosso e dos nossos irmãos, mais ou menos crentes, com dúvidas ou mal crentes como dizia o cardeal Martini.
Enquanto isso, especialmente na Quaresma, vamos nos libertar de muitos ídolos antigos e modernos, religiosos ou seculares.