24 Fevereiro 2020
Qual é a maior ameaça para a Igreja Católica Romana hoje: um cisma ou o aumento do poder dos clericalistas fundamentalistas? José María Castillo, padre, acredita que é o último.
O comentário é de Robert Mickens, publicada em La Croix International, 20-02-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O espanhol de 90 anos foi um dos teólogos mais influentes da América Latina e de outras partes do mundo durante as duas primeiras décadas após o Concílio Vaticano II (1962-1965). Seus livros, publicados às dezenas, eram de leitura obrigatória em muitos seminários e universidades de língua espanhola imediatamente após o Concílio.
Depois, eles não foram mais.
Pouco tempo depois da sua eleição em 1978, João Paulo II pisou no freio das reformas eclesiais (que teólogos como Castillo estavam defendendo) e iniciou seu projeto restauracionista de estreitar cuidadosamente a interpretação e a aplicação dos documentos do Vaticano II.
Um dos modos pelos quais o papa polonês fez isso foi nomeando bispos obedientes e doutrinalmente conservadores (e sem muita imaginação). Eles, por sua vez, com o apoio do escritório doutrinal do Vaticano, começaram a silenciar e a marginalizar teólogos como Castillo.
Esses teólogos encontraram uma nova era em suas vidas eclesiais desde que Jorge Mario Bergoglio, SJ foi eleito bispo de Roma em 2013.
O homem que agora chamamos de papa Francisco, mesmo sem quaisquer escritos formais de reabilitação, permitiu que eles começassem a contribuir novamente com as discussões, debates e processos de discernimento que o seu pontificado reintroduziu na Igreja.
É praticamente incrível o quanto a atmosfera dentro da Igreja mudou em apenas sete anos.
O arcebispo Piero Marini, a autoridade vaticana mais identificada com as reformas litúrgicas pós-conciliares há muito tempo, disse logo após a eleição de Francisco que havíamos estado “respirando o ar de um pântano”.
Infelizmente, o papa argentino, famoso até mesmo fora dos círculos da Igreja por ser um dos defensores mais abertos do mundo em relação ao ambiente, não conseguiu limpar completamente a velha e sufocante atmosfera do catolicismo centralizado.
Há padres, bispos e cardeais em locais de influência e poder – em Roma e alhures – que estão fazendo todo o possível para impedir o papa de 83 anos de fazer quaisquer mudanças que possam ameaçar seus privilégios clericalistas.
E um dos métodos sinistros que eles estão usando para tentar detê-lo é agitar constantemente o fantasma de um cisma da Igreja.
Alguns comentaristas acreditam que isso foi pelo menos um dos fatores na decisão do papa de não mencionar, na sua recente exortação sobre a Amazônia, a questão dos padres casados e das diáconas.
“Nos ambientes da Cúria vaticana, têm mais peso as ideias e os interesses dos cardeais, bispos e monsenhores que representam o clero conservador do que as ideias e carências das centenas de milhares de cristãos que vivem desamparados na imensa Amazônia”, observou José María Castillo.
Em um artigo publicado no dia 17 de fevereiro no site Religión Digital, ele disse que a ameaça representada pela influência contínua e fragmentada de tais clericalistas é muito mais séria do que qualquer possível cisma.
E a razão é simples. Os clericalistas, apenas uma minúscula parte da Igreja de 1,2 bilhão de membros, estão violando seriamente os direitos dos fiéis católicos.
Castillo citou o parágrafo 37 da Lumen gentium, a constituição dogmática da Igreja. “Como todos os fiéis, também os leigos têm o direito de receber com abundância, dos sagrados pastores, os bens espirituais da Igreja, principalmente os auxílios da palavra de Deus e dos sacramentos”, diz o texto do Vaticano II.
Junto com todo direito, vem uma obrigação. E aqui é a obrigação e a responsabilidade dos pastores espirituais da Igreja (em primeiro lugar e principalmente de seus bispos) de fornecer os sacramentos ao povo católico. Mas os bispos não estão fazendo isso na Amazônia. Nem o fazem em muitos outros lugares do mundo onde não há presbíteros ordenados suficientes para presidir as celebrações eucarísticas – ou seja, para consagrar validamente as hóstias. “Responder devidamente a esse direito dos fiéis é uma obrigação premente do governo da Igreja”, escreveu Castillo.
“É uma obrigação à qual o papa tem que responder, sejam quais forem os interesses e os argumentos do clero mais integrista e conservador”, continuou. “Na Igreja dos primeiros séculos, reconhecia-se a cada comunidade o direito de eleger os seus ministros. E também o direito de removê-los, quando os ministros não se comportavam de acordo com a sua missão”, observou ele. Ele citou as atas de um sínodo realizado na Espanha, no século III, para mostrar que até mesmo Roma defendia tal direito. E, assim, a Igreja consistia mais na comunidade do que no clero.
Mas hoje, disse ele, a situação está totalmente invertida.
“O que se impõe é o interesse e a conveniência do clero, mesmo quando isso exige abandonar no desamparo religioso e evangélico a centenas de milhares de cristãos”, escreveu.
“É de suma importância deixar muito claro que essa situação só será resolvida quando forem tomadas duas decisões, que são cada vez mais prementes: 1) a ordenação presbiteral de homens casados; 2) estabelecer na Igreja a igualdade de direitos de mulheres e homens”, disse.
Os bispos não deveriam esperar pelo papa para fazer isso. Nem deveriam esperar que ele faça isso, pelo menos não por conta própria.
Eles podem agir agora para cumprir a sua responsabilidade de fornecer ao seu povo os sacramentos, especialmente a Eucaristia. O primeiro passo é pedir formalmente ao papa que permita a ordenação de homens casados.
Os bispos presentes na assembleia do Sínodo sobre a Amazônia “propuseram” isso, mas – tecnicamente – usaram a linguagem canônica em relação à qual pessoas como o cardeal Baldisseri adoram discutir minúcias.
De fato, já existe um processo canônico que um bispo ou uma Conferência Episcopal (ou talvez uma assembleia sinodal) pode seguir para solicitar a ordenação de homens casados. Na realidade, o Código de Direito Canônico prevê essa possibilidade.
Embora afirme que “um homem casado” está simplesmente impedido de receber as ordens sagradas (cân. 1.042, n. 1), ele também diz – de modo muito específico – que a Santa Sé pode dispensar esse impedimento (cf. cân. 1.047 § 2, n. 3).
Costumamos dizer que é mais fácil conseguir o que você deseja se você “pedir com jeitinho”. Na Igreja Católica – sim, também no pontificado do Papa Francisco – é ainda melhor se você “pedir com jeitinho canônico”.
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É hora de enterrar a Igreja centrada no clero - Instituto Humanitas Unisinos - IHU