12 Fevereiro 2020
Se hoje o papado permanece como um dos poucos defensores do multilateralismo e do papel das organizações internacionais, isso se deve, em parte, ao Vaticano I e ao modo como ele ajudou a levar ao Vaticano II.
A opinião é de Massimo Faggioli, historiador italiano e professor da Villanova University, nos EUA, em artigo publicado por Commonweal, 04-02-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O discurso anual do papa ao corpo diplomático é apenas uma das coisas que ressalta as tensões anacrônicas no modo como o Vaticano opera. Realizado na Sala Regia, a ocasião pode remontar à era monárquica do papado – o afresco da Batalha de Lepanto de 1571, entre a Liga Santa e o Império Otomano, é um pano de fundo proeminentemente visível –, mas os conteúdos do discurso são claramente da conjuntura geopolítica.
O discurso do Papa Francisco em 2020 veio logo após o rescaldo do assassinato do general iraniano Qassem Soleimani pelo governo Trump e o ataque com mísseis retaliatórios do Irã contra bases estadunidenses no mesmo país.
Em seu discurso, ele renovou seu apelo para que “todas as partes interessadas evitem uma escalada do conflito e mantenham ‘acesa a chama do diálogo e do autocontrole’, em pleno respeito à legalidade internacional”.
As considerações estão de acordo com uma mudança política e teológica há muito tempo em andamento; a Igreja e o Islã se distanciaram muito da batalha de Lepanto até chegarem ao Documento sobre a Fraternidade Humana assinado por Francisco e pelo Grão-Imã de al-Azhar em Abu Dhabi, há exatamente um ano, no dia 4 de fevereiro de 2019.
O papa não limitou seu foco ao Oriente Médio, mas ofereceu um tour d’horizon pelo mundo, com base no mapa das suas viagens em 2019: do Panamá em janeiro à Tailândia e ao Japão em novembro. Francisco lamentou a situação do conflito em muitas regiões do globo: “Infelizmente, o ano novo não parece pontilhado por sinais encorajadores, mas sim por um recrudescimento de tensões e violências”.
Outro gesto para estes tempos foi a sua menção especial à Austrália – um país que ele não visitou – e seus incêndios catastróficos. É claro que isso se alinha com a ênfase de Francisco nas questões ambientais, um foco do Sínodo para a Amazônia de outubro passado, quando ele disse que “a urgência dessa conversão ecológica parece não ter sido conquistada pela política internacional, cuja resposta às problemáticas levantadas por questões globais, como a das mudanças climáticas, ainda é muito fraca e fonte de forte preocupação”.
Francisco também se dirigiu à América Latina em seu discurso de 2020, destacando a crise na Venezuela em particular. Deve-se dizer que, durante o papado desse primeiro papa latino-americano, as condições econômicas e políticas da região da qual ele provém deterioraram-se consideravelmente.
O discurso também foi uma oportunidade para Francisco descrever o papel global do Vaticano e do papado em termos mais amplos: “A paz e o desenvolvimento humano integral são, de fato, o objetivo principal da Santa Sé no âmbito do seu compromisso diplomático”.
Sobre as armas nucleares, esse papa continua sendo mais franco do que seus antecessores. “Um mundo ‘sem armas nucleares é possível e necessário’”, disse ele, repetindo sua condenação moral anterior não apenas ao seu uso, mas também à mera posse – uma posição que foi acolhida com uma estranha indiferença nos Estados Unidos, onde houve uma reação estridente à Amoris laetitia sobre os católicos divorciados e em segunda união e à revisão sobre a pena de morte no texto do Catecismo.
Francisco também comentou sobre os perigos e a discriminação que as mulheres sofrem globalmente, um tema sobre o qual ele ecoa seus antecessores em vez de falar com sua própria voz. “Espero que, em todo o mundo, seja cada vez mais reconhecido o papel precioso das mulheres na sociedade e que cesse toda forma de injustiça, desigualdade e violência contra elas”, disse ele. Veremos se a Igreja seguirá o exemplo, embora tenha havido alguns sinais recentes de movimento, a se julgar pelo que está sendo publicado recentemente em publicações oficiais aprovadas pela Cúria [o autor se refere a este artigo publicado no jornal L’Osservatore Romano, em inglês].
Francisco também falou sobre a crise dos abusos sexuais, que, nos últimos dois anos, se tornou um problema católico global, e reafirmou a promessa de cooperar com a justiça civil e com a aplicação da lei: “A Santa Sé renova o seu compromisso para que se lance luz sobre os abusos cometidos e para que se assegure a proteção dos menores, através de um amplo espectro de normas que permitam enfrentar tais casos no âmbito do direito canônico e através da cooperação com as autoridades civis, em nível local e internacional.”
Francisco também citou vários aniversários notáveis, particularmente importantes para o entendimento do multilateralismo papal da era contemporânea: o aniversário das Nações Unidas (1945), da Santa Sé como observadora do Conselho da Europa, e do estabelecimento de relações diplomáticas com as então Comunidades Europeias (1970), do Ato Final de Helsinque, que concluiu a Conferência sobre Segurança e Cooperação na Europa (1975), e da queda do Muro de Berlim (novembro de 1989).
Ele não mencionou o 150º aniversário do Concílio Vaticano I, que, com a aprovação da infalibilidade papal, complica sua memorização teológica e política.
Mas ele poderia ter mencionado: a internacionalização da “Questão Romana”, adotada inicialmente como uma resposta estratégica à perda dos Estados papais, culminando com a perda de Roma em setembro de 1870, abriu uma nova fase na história do papado. Começando especialmente com Leão XIII, o papado tornou-se um agente de mediação em situações internacionais e por causas humanitárias.
Se hoje o papado continua sendo um dos poucos defensores do multilateralismo e do papel das organizações internacionais, é graças em parte ao Vaticano I e ao modo como ele ajudou a levar ao Vaticano II.
E agora, em 2020, como o discurso de Francisco deixou claro, o catolicismo continua comprometido com a cooperação e o diálogo internacionais. A Santa Sé parece ser um dos poucos atores globais que lembram as lições sombrias das catástrofes nacionalistas e autoritárias do século passado.
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A importância da diplomacia papal. Francisco se compromete com a cooperação e o diálogo internacionais. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU