30 Janeiro 2020
"Não houve reconstrução propriamente dita do Paraguai após 1870. A destruição-desorganização da sua poderosa classe camponesa de raízes hispano-guarani, primeiro na guerra e, a seguir, com a privatização das terras públicas pelo partido dos generais de Francisco Solano López, permitiu a criação do Estado liberal-oligárquico anêmico e anti-popular que conhecemos hoje", escreve Mário Maestri, historiador e autor de Guerra sem fim: A Tríplice Aliança contra o Paraguai.
Há exatamente 150 anos, vivia-se os últimos momentos do arrasamento, para todo o sempre, do Estado-nação paraguaio, sobretudo pelo exército imperial brasileiro.
No final de janeiro de 1870, uns setecentos soldados, os restos do exército paraguaio, semi-desarmados, marchavam por entre as matas semi-desabitadas do norte do país, sob chuva torrencial e um calor infernal, deixando para atrás soldados, mulheres e crianças mortos de inanição, doença e fome.
Francisco Solano López comandava a retirada sem objetivo certo, em direção ao descampado de Serro Corá, no norte do país, próximo à fronteira com o Brasil, onde, em 1º de março, seria executado sob as ordens do general sul-rio-grandense Correia da Câmara, em um último arremedo de confronto. Era o epílogo de tragédia iniciada em fins de 1864, com a invasão pelo exército imperial, sem declaração de guerra, da República Oriental do Uruguai, para impor ali um ditador-títere: Venancio Flores.
Na “Era das Nações”, as classes dominantes procuravam impor suas versões do passado, para dominar o presente e controlar o futuro. Financiavam institutos históricos reunindo historiadores conservadores selecionados; sustentavam a redação, produção e divulgação em livros, revistas, jornais -a seguir na rádio e na televisão- das suas narrativas historiográficas; dificultavam e combatiam as narrativas do passado desde o ponto de vista das classes exploradas. As universidades e as escolas as eram a ponta de lança da produção e das divulgações das narrativas apologéticas nacionais das classes dominantes. Esforçavam-se para que a historiografia dominante fosse a das classes dominantes.
Na “Era da Globalização”, o silenciamento-destruição do passado, como experiência social determinante, é impulsionado pela natureza profunda do grande capital globalizado. A globalização do capital tudo faz para consolidar a vivência do indivíduo em um tempo “atualista” ou “presentista”. Ou seja, que domine no ser social atomizado, reduzido à situação de consumidor-produtor isolado, a percepção-sentimento, inconsciente e contraditória, de viver eternamente em um presente. Único e imutável tempo histórico. Ou melhor, tempo sem história, sem relação com o passado e o futuro.
A globalização tudo faz para que o passado e o futuro se dissolvam sob o domínio esmagador de um presente sempre estático e sem raízes, onde não há mudanças, apenas permanências. Esse projeto foi e é impulsionado no Brasil em forma avassaladora sobretudo pela globalização desenfreada da economia e da sociedade. Foi e é impulsionado pela grande mídia, pelos governos passados e, agora, em forma desenfreada, pela nova ordem autoritária neo-colonial globalizada em institucionalização.
A chamada Guerra da Tríplice Aliança contra a República do Paraguai [1864-70] foi o mais longo, duradouro e mortífero conflito guerra empreendida pelo Estado Brasileiro. Talvez 150 mil combatentes imperiais foram enviados aos campos de batalha, aos safanões, com talvez 50 mil baixas mortais, sobretudo em combate e doenças [cólera, disenteria, varíola].
O sesquicentenário daquele conflito está se concluindo sem que se tenha realizado nenhum grande evento científico-acadêmico no Brasil, na Argentina, no Paraguai, no Uruguai. Quando muito, realizaram-se as tradicionais celebrações militar-patrióticas castrenses para uso da corporação. O deslizar conservador na Argentina, no Paraguai, no Brasil e, agora, no Uruguai, contribuíram fortemente para impor o enorme e doloroso silêncio, que a mídia preocupa-se em não quebrar.
A guerra, lutada de 1864 a 1870, por decisão da classes dominantes imperiais e liberal-argentinas, opunha-se aos interesses das populações do Brasil, da Argentina, do Uruguai e do Paraguai. Em um sentido histórico, todas as nações envolvidas saíram prejudicadas do conflito, com destaque para a população e a nação paraguaia.
No Brasil, a vitória do Estado imperial contribuiu para consolidar, ainda por longos anos, a monarquia, o conservadorismo, a escravidão. No Uruguai, a ditadura “colorada”, imposta pela força das armas do exército imperial, restaurou e manteve a situação semi-colonial do país em relação ao Império, com destaque para o domínio despótico e prepotente dos criadores escravistas rio-grandenses do norte uruguaio.
Na Argentina, a ordem liberal-unitária portenha, a serviço do comércio e do capital inglês, se espraiou pela nação, liquidando as liberdades federalistas, sufocadas em um banho de sangue que ceifou dezenas de milhares de gaúchos, pequenos plantadores, pequenos comerciantes, etc. das províncias do Litoral e do Interior.
O caso do Paraguai foi dramático. O pequeno país rural, de uns 450 mil habitantes - a população rio-grandense na época -, constituíra-se como talvez o único Estado-nação da América do Sul, quando de revolução nacional-popular vitoriosa dirigida por José Gaspar de Francia, advogado paraguaio jacobino, filho de pai brasileiro.
No governo do Paraguai, de 1813 a 1840, impulsionado pelos acontecimentos, o doutor Francia instituíra ordem político-social apoiada na larga população camponesa hispano-guarani [chacareros], que conheceria então por décadas situação de literal acesso livre a pequenas explorações agrícolas [chacaras]. O doutor Francia e a população paraguaia venceram a revolução democrática na qual, no Uruguai, Artigas fora derrotado, em 1820, com a forte colaboração luso-brasileira.
O governo francista golpeara a reação dos oligarcas proprietários, a quem poupara no geral a vida mas confiscara suas posses, sobretudo fundiárias. Com estas últimas e as antigas fazendas jesuíticas, fundou as “fazendas da nação”, de propriedade pública, que sustentavam os gastos administrativos e militares do Estado, aliviando os impostos pagos por plebeus e camponeses.
O Estado francista nacionalizou o comércio exterior e a Igreja, instituiu a liberdade religiosa, organizou o mais amplo sistema da época de educação pública elementar para os jovens do sexo masculino. Por décadas, o país viveu semi-encapsulado, por ter o acesso negado do seu comércio ao Prata pela oligarquia de Buenos Aires. Boa parte das trocas mercantis paraguaias de então se dava por São Borja, no Rio Grande do Sul.
Com a morte de José Gaspar de Francia, em 1940, se instaurou a Era Francista [1842-70], com o governo dos López, pai e filho, de caráter pró-oligárquico e restauracionista. Entretanto, o lopismo não atacou em profundidade a propriedade camponesa da terra, na qual se assentava, nos fatos, a independência do país.
A união do Império do Brasil e da Argentina liberal-unitária levaram o Paraguai a uma guerra que não poderia vencer. Quando as tropas da Tríplice Aliança invadiram o país, em inícios de 1866, conheceram uma oposição inesperada, heroica e incondicional lutada sobretudo pela população rural, logo traída pelas classes dominantes. Não houve rendição. O exército paraguaio combateu praticamente até a extinção.
A destruição do Estado paraguaio tornou-se inevitável, devido sobretudo aos graves erros militares de sua direção, que dificultaram e mesmo impediram a unificação da resistência paraguaia, uruguaia e argentina, única condição para aquelas forças terem sucesso diante da união dos poderosos Estados imperial brasileiro e liberal-oligárquico argentino.
Não houve reconstrução propriamente dita do Paraguai após 1870. A destruição-desorganização da sua poderosa classe camponesa de raízes hispano-guarani, primeiro na guerra e, a seguir, com a privatização das terras públicas pelo partido dos generais de Francisco Solano López, permitiu a criação do Estado liberal-oligárquico anêmico e anti-popular que conhecemos hoje.
Paradoxalmente, a população paraguaia sente e vibra ainda com as recordações da resistência heroica. Continua não acreditando no fim da história. [Duplo Expresso, quinta-feira, 16.01.2020]
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150 Anos da Destruição do Estado-nação Paraguaio Pelo Exército Brasileiro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU