29 Janeiro 2020
Filósofo interdisciplinar, admirador de Leonardo da Vinci, pensador e caminhante, Esteban Ierardo pesquisou em profundidade as consequências de se viver em uma sociedade onde a excitação constante manipula desejos. A partir da exploração e estudo de diferentes produções estéticas e intelectuais, em seu último livro, realiza uma crítica cultural severa ao capitalismo consumista e apresenta um possível caminho para a liberdade: a arte.
A reportagem é de Marina Ollari, publicada por Clarín-Revista Ñ, 27-01-2020. A tradução é do Cepat.
Em seus livros anteriores, Sociedad Pantalla y Mundo virtual, Ierardo tomou a série Black Mirror como um gatilho e uma desculpa para refletir sobre a dinâmica dos processos culturais atuais, onde a percepção de nossa experiência está sendo modelada pela relação cotidiana com os dispositivos e as telas. Identificou uma tendência à erosão perceptiva dos espaços do mundo físico, nossa primeira realidade.
Em seu livro recente La sociedad de la excitación. Del hiperconsumo al arte y la serenidade (Editora Continente), dá um salto e propõe a experiência artística como um possível caminho de recuperação sensorial.
Para Ierardo, “toda a trama da arte está ligada ao assombro do artista diante da presença material do mundo, do olhar, dos corpos, da luz, da sombra. A arte pode dar outro sinal nesses tempos de hiperaceleração, ser um modo de experiência que envolva reivindicar lentidão, momentos de tédio para um ócio reflexivo, para uma recuperação da meditação sobre si mesmo. É tudo o que não proporciona satisfação imediata, mas que seus dons e frutos são digeridos em um processo que requer uma lenta elaboração. Como ler Ulisses (Editora Abril Cultural, 1983) de Joyce e concordar em decifrar em toda a sua riqueza essa mensagem que procura ser vista e apreciada pelas grandes pinturas nos museus”.
Nesta sociedade da instantaneidade existe, em seu entender, uma perda de memória. Mas que implicações têm, em termos identitários, essa perda contínua de memória coletiva? Ierardo respira fundo e relata sua preocupação: “O capitalismo avançou em uma conquista de nosso tempo, enquanto dedicamos atenção e energia ao consumo de entretenimento que não nos transforma, não nos enriquece, não nos leva a uma atitude reflexiva crítica, mas que nos deixa no mesmo lugar. Um consumo estacionário baseado no simplificado, no superficial que causa a perda da captura da imagem, o visual como um suporte de memória ou de transmissão do conflito do horror humano. Vivemos uma drogadição de imagens felizes, rápidas e banais – como as selfies - que vão erodindo nosso tempo e atitude de perceber imagens que transmitem outra dimensão da vida ligada à existência humana, a finitude, o sofrimento, o horror, a injustiça, o conflito, essas tramas da vida do trágico que nosso hiperconsumo feliz precisa esconder. É um mundo em que o particular é substituído por dados associados aos nossos gostos e pesquisas na internet e que transmitimos às empresas de informática para ajustar nossos perfis de estímulo, nossa capacidade de consumir com base em publicidade personalizada”.
A chave desse enfoque parece ser uma combinação entre o aspecto físico-sensorial, um estado ativo que contextualiza o trabalho e também o jogo do entendimento, uma intelectualização do que acontece. Em sua visão, “tanto o olhar artístico quanto a reflexão filosófica nos permitem recuperar as diferenças e também a percepção da amplitude do espaço. O sublime no pintor romântico David Friedrich, ou então Spinoza, Platão ou Hegel, nos religam com essa percepção que se vincula com o infinito. Refere-se a um entendimento que está além das fronteiras e limites de nossa vida corrente e, portanto, nos faz recuperar uma realidade em que nos sentimos uma parte e não os donos”.
Diante do imperativo da imagem e do olho, propõe não apenas retomar a visão ampliada, mas também restaurar o ouvido e até a palavra poética: “Convivemos com uma explosão de palavras que se exaurem na dimensão de transmitir informação e ser um meio para um ato de comunicação e, portanto, perdemos sua dimensão mais poderosa expressiva, que Borges buscava na poesia em seu alvorecer, quando a palavra se fundia com a coisa. Era uma ponte para nos livrar do constante perigo de nossa consciência de sujeitos, que é ficar preso em nosso ensimesmamento e não nos vincularmos à realidade que nos transcende e transborda”.
Assim como na imagem se desvaloriza o visual, ocorre algo semelhante com o auditivo. O ensaísta ressalta que “vivemos uma saturação de certos sons padronizados que produzem um prazer fácil e até certo ponto falso, que é a chamada música comercial, que de alguma forma perde os poderes exploratórios de ouvir níveis de vida mais surpreendentes e profundos da vida que chega aos nossos ouvidos: os sons da natureza, os sons combinados de uma maneira atípica e experimental do minimalismo - como John Cage - e, finalmente, a possibilidade de perceber a vida como um fenômeno acústico. Por exemplo, nos mantras, o som do “om” pretende se situar na fonte, na origem. Por outro lado, Beethoven indagou a possibilidade de perceber o poder de Deus na escuta musical. E sem ir muito longe, a teoria física das cordas sugere de alguma forma que a origem da matéria em seu nível mais profundo são vibrações, alguma forma de música. Assim, o ouvido recupera sua capacidade exploratória mais ampla, a ponto de descobrir e perceber que a vida é som e um fenômeno de alguma maneira artístico”.
Esse pensador interdisciplinar recupera Leonardo da Vinci em seu processo de trabalho pensante e lento, Spinoza a partir do entendimento intelectual, Foucault na reflexão e no autocuidado, a noção de serenidade de Epicuro. Todos eles têm modelos de alta-costura desse enfoque experimental. Parece que esse mundo de hiperestimulação deixa poucas fissuras de ação para nós, meros mortais.
Diante disso, sugere “apresentar uma mediação e uma reflexão própria a respeito de tudo aquilo que é oferecido a nós ou que querem nos impor. É uma dimensão possível de uma certa liberdade pessoal para situar um limite e não ser invadido, não ser construído como sujeito passivo pelo sistema de excitações em que vivemos, que por sua vez é regulado por um capitalismo algorítmico onde tudo é regulado pela inteligência artificial. O cultivo de nossa diferença pessoal é o caminho que nos resta diante de uma sociedade invasiva que busca nos igualar como consumidores”.
Este é um começo, “uma atitude de recuperação de outro vínculo com o tempo que perdemos, com o mundo exterior cada vez mais desgastado e com o outro desvalorizado, porque muitos preferem a interação on-line do que a antiga interação corporal face a face”.
Ierardo é muito enfático na necessidade de não cair na negação da tecnologia que é algo regressivo e insustentável, mas de ter um filtro crítico que preserva nossa liberdade de construir uma interação dialética entre tudo o que nos dá o mundo tecnológico-virtual e o laço como humanos em nosso corpo, com o mundo da luz, das formas, o mundo físico. Embora, é claro, a proposta não seja apresentada como um caminho de salvação coletiva, é um chamado à consciência pessoal, agora extensiva a esse possível (sereno) leitor.
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“Vivemos uma drogadição de imagens felizes, rápidas e banais”, constata Esteban Ierardo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU