28 Janeiro 2020
E se Frankenstein tivesse sido sutilmente mal interpretado, também por Mary Shelley? É o que parece se compararmos as duas introduções que escreveu para o clássico, a de sua primeira edição anônima, de 1818, e a já publicada com a assinatura de sua autora, em 1831, após o enorme sucesso do romance. As numerosas referências que na segunda introdução mencionam os perigos de “brincar de Deus” - a moral canônica do livro até hoje - estão praticamente ausentes na primeira. É como se Shelley tivesse alinhado sua obra, anos depois, com a opinião geral, com a maneira pela qual a sociedade a entendeu, graças em grande parte às adaptações cênicas simplistas e muito populares.
Philip Ball defende que “a ideia de que Frankenstein é o texto fundamental contra a arrogância científica é, em grande parte, uma visão do século XX. Isso não significa que ‘entendêssemos mal’ Frankenstein, ou ao menos, não simplesmente isso. Significa, ao contrário, que precisávamos de uma história admoestatória para lidar com nossas confusões e ansiedades sobre a vida e como criá-la e mudá-la”.
O britânico Philip Ball (1962) é um dos melhores e mais prolíficos divulgadores científicos da atualidade. Químico na University College de Londres, foi editor da Nature, colabora na New Scientist e assinou uma dúzia de títulos que mostram sua curiosidade insaciável e eclética, desde uma biografia da água à história da cor, passando pelas veleidades nazistas de grandes homens da física quântica (todos eles publicados em nosso país por Turner).
Seu último livro é Como crear un ser humano, traduzido [para o espanhol] por Irene de la Torre, sendo uma fascinante jornada por tudo o que acontece desde que o espermatozoide e o óvulo se encontram e que costumamos resumir prosaicamente, perdendo assim as maravilhas da ficção científica que acontecem na continuação.
Também resume e discute os mais recentes avanços científicos sobre as reais possibilidades de criação de seres humanos em laboratórios e acerca da imortalidade. E tudo atravessado por uma crítica tão implacável como irônica às histórias que os cientistas contam sobre sua tarefa. Histórias que podem, como aconteceu com Frankenstein, estabelecer injustamente explicações pueris, limitadas ou diretamente falsas.
A entrevista é de Daniel Arjona, publicada por El Confidencial, 21-01-2020. A tradução é do Cepat.
Tenho 42 anos. Serei capaz de viver para sempre (mais ou menos) graças à engenharia biológica? Posso pelo menos baixar minha consciência em uma máquina antes de morrer? E se eu não chegar a tempo ... minhas filhas gêmeas de três anos conseguirão?
Sinto muito, mas a resposta em todos os casos é “não”. Acredito que a capacidade de desenvolver novos tecidos e órgãos, sim, prolongará a vida humana. Entre os fatos mais difíceis de serem superados estão os decorrentes de câncer e doenças neurodegenerativas, mas não existem impedimentos fundamentais que não possam ser superados.
Portanto, pode ser que se torne possível estender a vida humana significativamente além de seus limites atuais, talvez até os 200 anos, algo que não é absurdo imaginar. Mas se podemos fazer isso mantendo uma boa qualidade de vida na velhice, é outra questão. E alguns pesquisadores acreditam que pode haver aspectos do processo de envelhecimento que são bastante fundamentais para a nossa biologia e muito difíceis de evitar. De qualquer forma, duvido sinceramente que possamos prolongar a expectativa de vida indefinidamente, tampouco para as vidas de suas filhas.
Quanto a “baixar” sua consciência em algum tipo de dispositivo de computação ... a verdade é que, apesar das alegações às vezes feitas sobre isso, não sei se entendemos o que queremos dizer. Não existe uma teoria científica da consciência e, neste momento, estamos longe de ter uma. E não há absolutamente nenhuma razão para acreditar que nossa “consciência” seja algo que possa ser traduzido de maneira óbvia em bits em um computador, ou que possa ser completamente caracterizado por alguma configuração de bits lógicos (uns e zeros). Dizer isso não é afirmar que há algo místico ou “não-físico” na consciência, é apenas aceitar que não entendemos o que é. A ideia de que “você” desaparecerá do seu cérebro e acordará em um computador é mística e pouco científica!
Seu livro ataca as histórias que os cientistas contam a si mesmos sobre o que fazem, como por exemplo, o influente ‘O gene egoísta’ [1976]. Nossa espécie conta histórias, é inevitável, mas essas histórias às vezes impedem a chegada de novas ideias. Qual você acha que é o relato mais nefasto agora em biologia?
Vou interpretar “nefasto” como “perigosamente enganoso” e, então, diria que é a ideia de que nossos genes são “a essência de nós”, o que nos define como seres humanos. Essa mensagem é impulsionada por empresas comerciais de sequenciamento de genoma, como a 23andMe, e também por alguns pesquisadores em genética: o recente livro ‘Blueprint’, de Robert Plomin, é um exemplo. É uma visão muito imperfeita. O fato de que nossa composição genética influencie nossa saúde, nossa personalidade e traços cognitivos é inegável. Mas sugerir que é a única coisa, ou mesmo a principal, é ciência ruim e é perigoso.
Na pior das hipóteses, isso pode nos levar a descuidar de qualquer consideração sobre os papéis do ambiente em nossas circunstâncias e no nosso futuro. Pode se tornar uma receita para dizer “bem, de qualquer forma, não podemos mudar nada”. Está muito claro, por exemplo, que o desenvolvimento cerebral e os resultados comportamentais não são predeterminados por nossos genes e, portanto, não são previsíveis a partir deles de forma individual. No entanto, receio que veremos mais e mais sugestões de que são: provas genéticas de QI, por exemplo, talvez até para seu uso na gestação assistida (FIV). Isso é cientificamente e eticamente incorreto.
Meu livro tem como objetivo demonstrar, entre outras coisas, que o desenvolvimento humano é um processo complexo que implica muita contingência e oportunidade, embora seja indubitavelmente guiado pela genética.
A sombra da eugenia paira sobre a biologia. Como podemos evitar que, em um mundo tão desigual como o nosso, a possibilidade de criar bebês planejados superinteligentes só seja acessível aos ricos e abra uma lacuna intransponível com o restante da população?
Não acredito que vejamos bebês planejados superinteligentes. Isso se baseia na ideia errônea sobre genética que mencionei na pergunta anterior. Meu maior medo é que assistamos a tentativas equivocadas de projetar essas coisas, por exemplo, selecionando embriões após testes genéticos e inclusive com a edição de genes. Mas isso se deve ao fato de que a inteligência é (a) influenciada por muitos genes, cada um dos quais tem uma influência insignificante por si mesmo, e (b) de qualquer forma não inteiramente sob influência genética (talvez cerca de 50% hereditária), é difícil ver como poderíamos projetar de maneira confiável a inteligência de uma criança.
De qualquer modo, a eugenia é uma preocupação real. Existem problemas difíceis que surgem dos esforços para evitar doenças genéticas e disfunções. Acredito que, em geral, é muito bom que tenhamos métodos como o diagnóstico genético prévio à implantação de embriões de fertilização in vitro (FIV) para evitar algumas doenças genéticas raras, mas desagradáveis, mas o assunto se torna muito complexo quando começamos a pensar se esses métodos devem ser usados para doenças e deficiências que não ameaçam a vida. Entendo a preocupação das pessoas que vivem com tais condições de que as vejam como “indesejáveis” ou que a pesquisa sobre sua condição murche.
E também é uma preocupação genuína que algumas dessas tecnologias estejam disponíveis apenas para pessoas e países ricos. Isso já está acontecendo, é claro, com tecnologias médicas, mas a situação pode piorar. Acho que precisamos de diretrizes e regulamentos internacionais claros que busquem um equilíbrio entre os direitos das pessoas de escolher tratamentos e o que precisamos para manter sociedades saudáveis. E isso necessariamente envolverá compromissos.
Você critica a proeminência do gene e reivindica a da célula. Somos apenas uma montanha de células e, em princípio, de cada célula individual poderia surgir outra como eu. A unidade da consciência é apenas uma ilusão e nada faz sentido?
Como mencionei antes, simplesmente não entendemos a consciência, e uma grande parte do que não entendemos é como surge como uma experiência unificada de muitos fenômenos cognitivos diferentes. Mas não vejo sentido em chamar isso de “ilusão”. É o que todos (quase) parecemos experimentar: como a dor pode ser uma ilusão? Sim, somos uma coleção de células, e acho que isso representa uma maneira muito melhor de pensar sobre nosso ser físico do que como uma “coleção de genes”. O eu, me parece, é o resultado de um processo que envolve genes, desenvolvimento e cognição, e está mudando constantemente. Contudo, isso não significa que seja um conceito sem sentido.
Mas sim, me parece fascinante e surpreendente que qualquer uma de nossas células possa (em princípio, ainda não podemos fazer isso na prática!) crescer como outro ser. Absolutamente não seria “outro eu”, como tampouco são os gêmeos idênticos. Seguiria seu próprio caminho de desenvolvimento e, não menos importante, seu cérebro não estaria conectado de forma idêntica, de modo que nem seria uma “cópia exata”. O que mostra novamente por que não é uma boa prática nos identificarmos com nosso genoma.
“Não nos sentimos à vontade em nossa própria carne”, escreve. Isso nos leva a buscar na biologia uma transcendência, digamos, religiosa?
Não estou certo. Para mim, noções e sentimentos de transcendência estão relacionados ao que podemos criar em comunidade uns com os outros, para alguns isso se experimenta através da fé religiosa, mas para mim isso vem da arte (especialmente da música!). Acredito que é um erro procurar essas coisas em nosso ser físico. Aqui está uma conexão com velhos debates sobre o materialismo e se temos algo como uma alma imaterial. Esses foram os temas explorados por Mary Shelley em ‘Frankenstein’.
Não sei por que sempre nos sentimos desconfortáveis em nossa carne, mas acho que deriva da mesma consideração: como pode ser que essas coisas macias e carnudas sejam tudo o que somos? Como, a partir disso, podem surgir nossos sentimentos de espiritualidade? Sinto cada vez mais que é errado colocar todas essas questões no cérebro: somos cognição e a consciência encarnadas, e nossos corpos constituem um componente profundo de como experimentamos o mundo.
Na semana passada, foi anunciada a criação de uma “máquina biológica”, um ‘xenorobot’. Precisamente, o transumanismo promete que em poucas décadas os humanos se fundirão com as máquinas, talvez a tempo de que Trump e Johnson não destruam tudo... Isso é ciência ou religião?
Estou na afortunada posição de antemão ter conhecido esse trabalho, após ter visitado os cientistas envolvidos, no verão passado. A verdadeira mensagem do que estão fazendo ainda não se tornou evidente, mas eu já estou escrevendo a história real. Fiquem atentos! No meu livro, zombo suavemente de algumas das fantasias do transumanismo, que parecem desconectadas do que realmente sabemos e estamos tentando fazer com o corpo humano. Acredito que muitos dos sonhos do transumanismo se relacionam com impulsos mais profundos e quase míticos: imortalidade, a transcendência do sexo, etc. O transumanismo é um interessante e revelador fenômeno sociológico, inclusive quando às vezes tem uma relação muito tênue com o que poderia ser tecnologicamente possível.
De qualquer forma, sim, acredito que iremos nos fundir com as máquinas em um grau ainda maior que o atual, e também que cada vez mais coabitaremos o mundo com as máquinas. Não temo essa perspectiva em si mesma, embora já possamos ver novos perigos (em termos de como nos comportamos) que podem surgir da nossa interação com as máquinas. Minha suspeita (isso é tudo o que pode ser) é que, dentro de 500 anos, o que significa ser “humano” (se ainda significa alguma coisa) será muito diferente. Também espero ver algumas mudanças profundas e talvez impactantes a esse respeito, inclusive nos próximos 30 anos, se tiver sorte de viver tanto tempo e se, como você disse, nossos péssimos líderes políticos ou a mudança climática não nos apagarem até lá.
Se finalmente conseguimos criar cérebros em recipientes... por que não os conectamos ao modo de Matrix e os deixamos felizes em paraísos artificiais, sem nos ocupar do resto?
Algumas pessoas suspeitam que já poderíamos estar em Matrix, no sentido, talvez, de que poderíamos ser seres “vivos” nas simulações de um computador superavançado. Não creio que esses argumentos sejam convincentes, mas, de qualquer forma, não me preocupa, não altera o que penso, sinto e acho significativo, e se um super-ser decide terminar a simulação, não saberemos! Acho muito interessante que o “cérebro em um recipiente” tenha se tornado um ícone na filosofia (os filósofos adoram Matrix). Como aponto no livro, este é realmente um velho debate, que remonta ao menos a Descartes.
Contudo, é surpreendente para mim, e também eticamente desafiador, saber que esse cenário está se tornando algo mais do que filosófico ou de ficção científica. Como saberá por meu livro, tive meu próprio “mini-cérebro” cultivado de minhas próprias células em um prato. Não era, estou bastante certo, uma entidade que tivesse alguma consciência ou mesmo experiência, mas era mais do que uma massa aleatória de neurônios e tinha o início bruto de uma estrutura semelhante ao cérebro. Na medida em que esses chamados organoides cerebrais se tornam mais complexos, é possível que necessitemos perguntar como pensá-los como entidades morais e se realmente experimentam alguma coisa. Esta é uma das ilustrações mais surpreendentes do poder e da complexidade das novas tecnologias que nos permitem transformar e controlar o destino de nossas células.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“A ideia de que nossos genes nos definem é enganosa e perigosa”. Entrevista com Philip Ball - Instituto Humanitas Unisinos - IHU