06 Janeiro 2020
Se ler jornal e revistas, provavelmente você já viu a seção “gente como a gente” destacando celebridades a fazer coisas normais como levar os filhos ao parque, caminhar de calça jeans, usar uma camiseta, segurar um copo de café...
Podemos pensar, por exemplo, nas fotos humanizantes de Kate Middleton, duquesa de Cambridge, a balançar o dedo indicador ao príncipe George, ou imagens descontraídas da princesa Charlotte.
A reportagem é de Elise Harris, publicada por Crux, 04-01-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
O Papa Francisco teve o seu momento “gente como a gente” em um episódio em duas partes, iniciado na véspera de Ano Novo, quando uma mulher animada além do ponto agarrou sua mão e o puxou para o lado, desequilibrando o religioso e fazendo-o perder a compostura, quando lhe deu dois tapas à sua mão para se livrar.
Durante a oração do Angelus no primeiro dia do ano, o pontífice se desculpou por perder a paciência, pedindo perdão pelo “mau exemplo de ontem”.
Em grande parte, a reação das pessoas que normalmente não acompanham o que se passa no Vaticano foi de apoio ao religioso. No entanto, pessoas internas na Igreja se dividiram em linhas ideológicas previsíveis, com os entusiastas de Francisco dizendo que a mulher foi quem errou e com os críticos queixando-se daquilo que chamaram de uma “violência física” clara.
O político italiano Matteo Salvini, opositor de Francisco por causa da abertura do religioso aos imigrantes, também entrou em cena, postando um vídeo no Twitter em que é “agarrado por uma fã agitada”, presumivelmente a sua esposa, em que primeiramente parece que ele vai desferir um tapa, mas em seguida acaricia o rosto dela.
No entanto, se olharmos a história papal recente veremos que um papa perder a compostura nada tem a ver com ideologia – e isso não se limita ao Papa Francisco.
Por exemplo, São João Paulo II era conhecido por ter pavio curto, uma teimosia polonesa e por irritar-se rapidamente, tendo raras vezes voltado atrás publicamente.
Talvez o exemplo mais memorável desse aspecto da personalidade de João Paulo seja a repreensão pública, em 1983, do padre Ernesto Cardenal, da Nicarágua. Chegando ao aeroporto de Manágua para uma visita à Nicarágua naquele ano, João Paulo parou para repreender o Cardeal no momento em que este se ajoelhava para recebê-lo.
João Paulo II e Ernesto Cardenal. (Divulgação)
Um ano depois, João Paulo suspendeu Cardenal do ministério público por causa de sua militância política e por se juntar ao governo sandinista de Daniel Ortega. Francisco retirou esta suspensão em fevereiro.
João Paulo também foi notado por sua frieza quando, ao chegar aos EUA em 1979, a Irmã Theresa Kane pediu-lhe que incluísse as mulheres em “todos os ministérios da Igreja”, e em 1991 ele irritou-se ao proferir um discurso acalorado na Polônia sobre o adiamento de um projeto de lei que definiria como ilegal o aborto no país.
No entanto, foi também João Paulo II quem normalizou os pedidos de desculpas papais, embora nunca tendo feito em seu nome. Em seu pontificado, o caso mais memorável veio em uma missa em 2000 para o Dia do Perdão, durante a qual pediu perdão pelos pecados cometidos contra judeus, hereges, mulheres, ciganos e povos nativos.
Bento XVI personalizou os pedidos de desculpas papais quando, em viagem em 2008 à Austrália, fez um pedido histórico de desculpas pelos abusos sexuais clericais no país, assegurando que, como pastor universal, ele compartilhava a dor sentida pelas vítimas. Bento também desculpou-se pessoalmente em 2009 por suspender a excomunhão de um bispo que negava o Holocausto, dizendo que se tivesse consultado a internet a situação poderia ter sido evitada.
Da mesma forma, Bento não se viu poupado de ataques por parte da multidão. Na missa da véspera de Natal em 2009, por exemplo, ele foi abordado por uma mulher que pulou as barricadas e se lançou contra enquanto andava pelo corredor. Nesse caso, dar um tapa dificilmente era uma opção, já que ele ainda estava recebendo ajuda para se levantar do chão quando a mulher foi retirada pelos seguranças do Vaticano.
Francisco perder a compostura diante de uma peregrina agressiva, portanto, está fora, certamente, do ideal de conduta papal.
Em todo caso, Francisco já havia perdido a paciência no passado. Em uma visita de 2016 ao México, o religioso chamou um jovem de “egoísta” depois que o adolescente lhe fez cair no colo de um cadeirante na tentativa de pegar um rosário da sua mão.
Mesmo assim, o que o incidente de Ano Novo do Papa Francisco parece revelar é que as pessoas consideram a sua “humanidade” algo positivo.
Por exemplo, vários comentadores no Twitter expressaram apoio ao seu pedido de desculpas, com um comentador dizendo: “Ninguém é perfeito. Pedido de desculpas, perdão e redenção são ainda melhores”.
Um outro comentário dizia: “Não deve ser legal ter pessoas nos agarrando assim”, acrescentando que “é legal ver que ele é humano, e legal vê-lo demonstrar a capacidade de se desculpar. Poderíamos fazer isso mais vezes no mundo”.
Um aprendizado a se tirar do episódio de Francisco, então, pode ser o de que, embora alguns papas são admirados pela força ou mansidão, Francisco é muitas vezes admirado por sua capacidade de se relacionar e este seu tapa na noite de Ano Novo e o pedido de desculpas são percebidos como um claro exemplo.
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O tapa de Francisco e seu pedido de desculpas: Um momento ‘ele é gente como a gente’ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU