04 Dezembro 2019
"Se Bergoglio tivesse sido enviado ao Japão quando jovem, cabe pensar que teria sido razoavelmente bem-sucedido. Nesse encontro, mostrou ter todas as qualidades de um missionário", escreve Andrea Bonazzi, em artigo publicado por Settimana News, 02-12-2019.
Um primeiro resultado positivo, mesmo que (aparentemente) insignificante, já foi alcançado pela visita dois dias antes de começar: o governo japonês decidiu mudar a palavra oficial que se usa para falar papa em japonês. A palavra usada até agora era derivada da versão chinesa da Sutra de Lótus, "o rei do Dharma", como poderia ser traduzida.
Esse termo, embora reconheça seu caráter religioso, insere o papado em um universo interpretativo do tipo budista, com um efeito muito enganador. A mudança pode ser um sinal de que o governo leva o visitante a sério. Numa cultura em que o que dá existência às coisas são as palavras (humanas), pode significar que ouviram uma Palavra de outro lugar. Há décadas que a conferência episcopal pedia a mudança, que desta vez foi ouvida. Deve-se dizer que, se forem rosas, florescerão!
Um funcionário local da nunciatura de Tóquio revelou a um jornal que o papa espera que o governo se envolva mais ativamente em questões de desarmamento nuclear. Deve-se notar que o governo está mantendo o pé em dois sapatos: no cenário nacional dá a entender ser antinuclear, mas no cenário internacional, por razões da Realpolitik, não assinou nenhum tratado de não proliferação. Estamos falando do governo do único país que até agora sofreu um ataque nuclear que continua a causar sofrimento.
Havia muita expectativa pelas palavras do papa sobre essas questões e o papa não decepcionou. A severa advertência sobre a "imoralidade" não apenas do uso, mas também da posse de armas nucleares, não poderia ser mais clara e provocativa.
Até João Paulo II, em um clima de guerra fria e no contexto de negociações em andamento, até podiam ser toleradas, mesmo que contra a vontade. Agora a situação mudou radicalmente e a posição do magistério evoluiu. Como existe um antes e um depois de Cristo, também pode haver um antes e depois de Hiroshima na história da humanidade. Essa consciência também obriga a Igreja a reconsiderar a questão do conflito atômico com uma nova mentalidade.
"O horror indescritível" das bombas atômicas é uma ameaça que paira sobre a humanidade mais do que nunca e torna insensata qualquer lógica de dissuasão: "A paz e a estabilidade internacionais são incompatíveis com qualquer tentativa de construir sobre o medo da mútua destruição ou sobre uma ameaça de aniquilação total”. Ninguém pode ser cego diante das ruínas de uma cultura incapaz de diálogo.
A impressão da opinião pública foi excelente e conseguiu envolver a mídia local, algo que não é assim tão simples. Muitos notaram a "convicção" com a qual ele falou. Ao imperador, então, confidenciou que estava emocionado porque ainda carregava no coração a lembrança de seus pais, quando tinha 9 anos, e os viu chorar com a notícia da bomba em Hiroshima.
Acredita-se que o governo não venha a mudar sua posição realista, mas afirmou que apreciou muito essa declaração "idealista", porque equilibra as posições em jogo.
Uma chama arde dia e noite a alguns metros do centro da explosão em Hiroshima. O braseiro é colocado sobre uma base em forma de mãos humanas. O fogo permanecerá aceso até o dia em que a humanidade não tiver renunciado definitivamente ao uso bélico da energia atômica.
Imediatamente após a visita ao memorial da bomba atômica, o Papa Francisco foi ao memorial de São Paulo Miki e seus companheiros, mortos no século XVI, e os uniu idealmente aos mártires do século XXI; ele pediu para levantar a voz para que "a liberdade religiosa seja garantida a todos e em cada canto do planeta", mas também contra a manipulação das religiões”.
O exemplo dos mártires - continuou o Papa Francisco - nos ajuda a renovar nosso empenho e a viver “o discipulado missionário que sabe trabalhar por uma cultura capaz de sempre proteger e defender todas as vidas, através do ‘martírio’ do serviço cotidiano e silencioso em prol de todos, especialmente os mais necessitados".
Em Nagasaki, Francisco celebrou a primeira missa desde sua chegada ao Japão no estádio de beisebol. Das feridas do passado e da experiência da dor aqui vivida, elevou-se seu convite para não ceder à indiferença, mas para levantar a voz em defesa de todos os sofredores, das vítimas inocentes das guerras de ontem e de hoje. A compaixão - ele disse - constrói a história, e a salvação de Cristo é oferecida a todos.
Ao lado do altar, como símbolo do sofrimento sentido pelos japoneses após o bombardeio atômico, está a cabeça da estátua de madeira da Virgem Maria: a única parte que ficou intacta e foi recuperada das ruínas daquela terrível destruição de 1945.
No dia seguinte, no Catedral de Tóquio, reuniu-se com mil jovens de diferentes religiões. Esse foi - talvez - o evento mais interessante de toda a visita. Apesar da diferença de idade e cultura, apesar da barreira linguística, o Papa conseguiu iniciar um verdadeiro diálogo sobre os problemas reais.
Se Bergoglio tivesse sido enviado ao Japão quando jovem, cabe pensar que teria sido razoavelmente bem-sucedido. Nesse encontro, mostrou ter todas as qualidades de um missionário.
Muitas foram as ideias bem interessantes que surgiram da conversa, mas, em particular, vale a pena deter-se no tema do medo, sobre o qual o papa recorreu a várias manifestações "fora programa" e improvisações. Estimulado pelo testemunho de um jovem, que teve a coragem de contar sobre sua experiência de sofrer bullying quando garoto, o Papa o elogiou pela força de sua sinceridade e aproveitou a oportunidade para lhe dizer que são eles, os valentões, que são fracos: “Paradoxalmente, porém, são os molestadores, aqueles que intimidam, que são realmente fracos, porque pensam que podem afirmar sua identidade prejudicando os outros. Às vezes, atacam qualquer um que considerem diferente e que veem como uma ameaça. No fundo, [...] são medrosos de se cobrem com a força”.
A partir disso, surgiu uma rápida, mas profunda, meditação sobre o tema do medo que é "sempre o inimigo do bem, e é por isso que é o inimigo do amor e da paz. As grandes religiões - todas as religiões que cada um de nós pratica - ensinam tolerância, ensinam harmonia, ensinam misericórdia; as religiões não ensinam medo, divisão e conflito. Para nós, cristãos: vamos ouvir Jesus, que sempre dizia a seus seguidores para não terem medo. Por quê? Porque se estamos com Deus e amamos com Deus os nossos irmãos, o amor expulsa o medo (cf. 1 Jo 4.18)”.
Portanto, não é o ódio que é o verdadeiro inimigo do amor, mas, antes disso, o medo. É o medo que paralisa as relações humanas, minando a confiança e fomentando a desconfiança em relação aos outros, ao desconhecido, ao diferente. É o amor que é bloqueado pelo medo, e assim também a paz não pode ser gerada porque é sufocada pela raiz.
Segundo alguns analistas, esta breve catequese "de improviso" sobre o medo, gerada pelas palavras dos jovens, lança luz sobre outros discursos, mais "oficiais" proferidos pelo Papa nesses dia, especialmente aqueles sobre o tema da paz que representou, junto com o tema do "proteger a vida", o coração de sua viagem ao Japão.
Quando, por exemplo, ele falou no Parque Hipocentro da explosão atômica em Nagasaki, o papa denunciou com preocupação o fenômeno de uma "erosão do multilateralismo", que surge pela mesma razão, a desconfiança e o medo do outro: "É necessário romper a dinâmica da desconfiança que atualmente prevalece", insistiu o Papa, ciente de que essa dinâmica perversa se manifesta tanto no grande quanto no pequeno, entre as grandes potências internacionais, mas também entre os meninos na escola, na família, entre os cidadãos, nas comunidades eclesiais e assim por diante.
No nível internacional, a dinâmica da desconfiança segundo o papa "corre o risco de provocar ao desmantelamento da arquitetura internacional de controle dos armamentos".
A lógica subjacente aos vários discursos e homilias é a mesma: um convite para que todos os homens tenham coragem, encontrem aquela força que permite enfrentar e superar o medo, que leva a levantar a voz contra a injustiça e responder à dinâmica da desconfiança que leva a se isolar e se fechar em si mesmos, rejeitando e agredindo os outros. Presos por essa dinâmica, os homens não podem fazer nascer a paz.
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Francisco missionário no Japão - Instituto Humanitas Unisinos - IHU