03 Dezembro 2019
Não está entre os apocalípticos da mudança climática. “Decididamente, não”, responde terminantemente. Sendo assim, não estamos diante de um desnorteado e desinformado ativista, mas de um cientista que colocou esse processo entre as prioridades de suas pesquisas. Carlos M. Duarte (Lisboa, 1960), há décadas, analisa os efeitos do aquecimento global. Primeiro, pelo Instituto Mediterrâneo de Estudos Avançados do Centro Superior de Investigações Científicas da Espanha - CSIC (do qual está de licença). Agora, pela King Abdullah University da Arábia Saudita, onde estuda, entre outras questões, a ecologia e restauração de corais, pradarias subaquáticas e manguezais, poluentes e plásticos no oceano, o movimento de grandes animais marinhos, aquicultura sustentável, genômica marinha com big data e Inteligência Artificial aplicada aos ecossistemas oceânicos. E se isso não bastasse, ajuda a UNESCO a proteger áreas marinhas declaradas Patrimônio da Humanidade e a desenvolver programas de “carbono azul” para mitigar o aquecimento da Terra.
“Pertenço à geração que mais causou danos ao planeta”, observa Duarte com preocupação, embora sua visão em relação ao futuro seja de esperança. “Minha filha Guiomar, que tem 35 anos, integra a geração que está detendo e freando os danos, e meu neto Olivier, de seis meses, a que irá recuperar um planeta saudável, com um oceano transbordante de vida”.
Para o cientista, ao menos nos oceanos, fomos profundamente longe em termos de perda de biodiversidade, no final do século passado. “Vislumbro, embora os indícios sejam fracos, sinais de clara recuperação que precisamos comunicar, compartilhar e potencializar. Serão um antídoto diante de tanta depressão ambiental”.
A entrevista é de Javier López Rejas, publicada por El Cultural, 02-12-2019. A tradução é do Cepat.
Tendo presente a COP 25, que medidas os governos devem adotar com urgência para conter a mudança climática?
É muito importante desenvolver tecnologias que forneçam energia limpa, melhorem a eficiência energética de nossos sistemas, promovam práticas de consumo responsáveis e saudáveis (incluindo a alimentação), que reconstruam o capital natural que perdemos nos oceanos e continentes, que coloquem em andamento mecanismos de mercado e fiscais e que formem uma cidadania cientificamente informada, capaz de compreender e valorizar as evidências da ciência.
Para o cientista espanhol, a transição para uma sociedade ambientalmente responsável é um processo horizontal que afeta todos os seus aspectos e requer um marco que desenvolva o que chama de economia circular de carbono: “Afinal, a vida está fundamentada no carbono. Uma sociedade ‘descarbonizada’ é uma sociedade que passou por um crematório. Não se trata de demonizar o carbono (as árvores, as flores, os pássaros, nossos próprios ossos e músculos são feitos de carbono), mas de saber como geri-lo, buscando inspiração nos ciclos da natureza”.
Qual a sua opinião em relação às grandes potências, com os Estados Unidos na liderança, que vão escapando de tais encontros e acordos como o de Paris? É possível chegar a grandes consensos sem a participação delas?
O drama dos grandes desafios da humanidade, que incluem a mudança climática, mas também muitos outros problemas ambientais, é que resolvê-los requer determinação e uma perseverança que se mede em décadas. No entanto, os ciclos políticos das sociedades democráticas conduzem a uma impossibilidade de adquirir compromissos de longo prazo. Os Estados Unidos passaram de ser celebrados como um campeão na luta contra a mudança climática, sob Obama, para o polo oposto com Trump.
Em nosso próprio país, já estamos há anos sem um governo capaz de aprovar um novo orçamento, que é com o qual se executa o programa. É necessário repensar a democracia para dotá-la de mecanismos de amortização que impeçam esses vaivéns. Felizmente, no caso particular dos Estados Unidos, o que o governo federal faz pouco importa. As cidades, estados, indústrias e corporações têm muito mais peso sobre o conjunto das emissões, de forma que eu acredito que os Estados Unidos acabarão se comportando de uma forma coerente com o Acordo de Paris.
Que aspectos entre aqueles que serão discutidos na Cúpula do Clima você mudaria?
Acima de tudo, que a resposta à mudança climática não se torne uma lista de boas intenções. O que é necessário é um novo modelo de sociedade que a torne mais responsável ambientalmente e também mais solidária com os desfavorecidos.
Quais disciplinas precisariam se unir para estudar com eficácia a mudança climática?
Todas. Até as políticas populacionais. Por exemplo, os sistemas de aposentadorias são esquemas institucionalizados Ponzi, que requerem um crescimento populacional perpetuado para ser estáveis. Temos que repensar nossa alimentação e dieta, pois a pecuária e a agricultura são fontes importantes de emissão de gases do efeito estufa e de emissões de poluentes no meio ambiente (recordo-lhe o que aconteceu no Mar Menor). Os grandes da internet (Google, redes sociais e outros) sofrem de uma voracidade energética profunda. Os leitores devem saber que uma pesquisa no Google consome muita energia, principalmente pela refrigeração de seus servidores, como um micro-ondas ao esquentar uma xícara de chá. O desenho urbano e residencial também condiciona. É preciso repensar todo o sistema.
É possível “repensar” esse modelo com setores negando o processo de aquecimento?
Essas pessoas não têm uma boa educação científica ou simplesmente questionam a capacidade de previsão, pois os dados constatados até o momento não permitem dúvidas. Seu questionamento - que não pode ser baseado em evidências científicas -, o fato de não serem tomadas medidas para evitar as emissões de gases do efeito estufa, justificam pelo custo que estas possuem para a economia. De qualquer forma, se consideram que é improvável que os prognósticos dos modelos científicos se cumpram, deveriam considerar como eles próprios administrarão essa incerteza.
Falaria em Antropoceno para se referir à era atual?
Sim, entramos (na verdade, há décadas) em um período da história do planeta em que uma força, a atividade humana, participa de forma determinante nos processos que regulam o funcionamento da biosfera como a distribuição de ecossistemas, a abundância e diversidade de organismos, a composição da atmosfera, os ciclos da água, os elementos fundamentais para a vida e muitos outros.
Demos importância às advertências de Rachel Carson, em ‘Primavera silenciosa’?
Não, em absoluto, e a primavera está mais silenciosa ainda, porque a abundância de insetos e aves diminuiu ao menos pela metade devido, em parte, a pesticidas, mas possivelmente também ao barulho de algum fator mais difícil de detectar, como a radicação da telefonia móvel. Nesse sentido, seria necessário avaliar os riscos do 5G, antes de implementar esta tecnologia.
Que mudanças no clima são causadas diretamente pela ação humana?
Aquelas associadas às emissões de gases do efeito estufa derivados de fogos provocados pela atividade humana (especialmente nos trópicos), mudanças no uso da terra, perdas de habitats, emissões de ruminantes, queima de combustíveis fósseis, produção de fertilizantes e cimentos ... As mudanças concretas são o aquecimento da biosfera (atmosfera e oceanos) e a acidificação do oceano, que estão associados, entre outros, ao aumento do nível do mar, à perda de gelo nas altas montanhas e áreas polares, à diminuição do albedo pela perda de gelo e o aumento de fenômenos extremos.
De todo esse panorama, que danos já seriam irreversíveis?
Destacaria especialmente a diminuição da camada de gelo da Groenlândia e o consequente aumento do nível do mar. Não está mais em nossas mãos parar esse processo. Mas, de qualquer forma, modular sua velocidade e impacto.
Ao menos considera factível estabilizar o aquecimento global em 1,5 grau?
Considero factível não chegar a 1,5 grau e até reverter parte do problema. O que será necessário é gerar um sistema econômico em que agir seja mais rentável do que não fazer nada. Uma vez desenvolvidas tecnologias eficientes de captura de CO2 da atmosfera, não temos razões para nos contentar com o nível elevado e insalubre que alcançamos. Mas não pode acontecer que seja mais barato emitir uma tonelada de CO2 na atmosfera que capturá-lo e transformá-lo em outro produto inócuo.
Quais mudanças do clima obedeceriam à inércia do planeta?
Existem algumas, como as derivadas da atividade vulcânica, as mudanças na atividade solar e na posição relativa da Terra, mas seu peso tem sido relativamente modesto em comparação com as derivadas da atividade humana.
Finalmente, considera que os cientistas são ouvidos em relação à emergência climática?
Bem, ouço dizer de Greta Thunberg que a única coisa que pede é que os cientistas sejam escutados, mas ouço apenas dela. Nunca vi o microfone ser dado a alguém da ciência. Somos escutados através do IPCC (Painel Intergovernamental de Especialistas sobre Mudanças Climáticas), mas é um processo que, por ser tutelado por políticos, tende a ser conservador e a subestimar o impacto da mudança climática. O papel dos cientistas é alertar, diante das tentativas de se confundir a sociedade.
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“A internet sofre uma profunda voracidade energética”. Entrevista com Carlos M. Duarte - Instituto Humanitas Unisinos - IHU