12 Novembro 2019
"Surpresa: nos EUA, multiplicam-se experiências de cooperativismo de plataforma. Operários que ocupam fábricas, imigrantes, mulheres: dezenas de iniciativas reconquistam a internet para difundir e praticar outras lógicas".
O comentário é de Rafael A. F. Zanatta, doutorando pelo Instituto de Energia e Ambiente da USP, mestre em Direito e Economia Política pela Universidade de Turim e mestre em Sociologia Jurídica pela USP, onde foi coordenador do Núcleo de Direito, Internet e Sociedade, publicado por Outras Palavras, 10-11-2019.
Essa semana um grupo brasileiro, formado por cooperados e ativistas, desembarcou em Nova Iorque para uma missão sobre “cooperativismo de plataforma”, em preparação ao encontro The State of Platform Cooperativism que ocorreu entre os dias 07 e 09 de novembro.
O evento, que acontece desde 2015 na New School por iniciativa do professor e ativista Trebor Scholz, se dedica a repensar o futuro da economia digital e a importância crescente de estruturas de trabalho mediadas pela tecnologia que retomem os princípios do cooperativismo, como a valorização, reconhecimento e envolvimento dos trabalhadores em decisões. Trebor é autor de importantes livros relacionados ao tema, como Uberworked and Underpaid e Cooperativismo de Plataforma, conceito utilizado para descrever “empreendimentos que usam um website, aplicativo ou protocolo para vender bens ou serviços enquanto baseiam-se em processos decisórios democráticos e propriedade compartilhada da plataforma tecnológica por trabalhadores e usuários”.
Há quatro anos, o Platform Cooperativism tem criado conexões entre programadores, ativistas e lideranças comunitárias. O “Diretório de Cooperativas” reúne mais de 300 experiências de projetos que vão desde cooperativas de entrega de comidas (pense em um Rappi no qual os entregadores são proprietários da plataforma), plataformas de uso de apartamentos em comunidades vulneráveis (pense em um AirBnb no qual a taxa de intermediação é direcionada a cooperados de um bairro) e plataformas em blockchain para rastreamento da produção artesanal de produtos vendidos online.
A missão brasileira foi organizada pela Coonecta, grupo de São Paulo que se dedica ao fomento do cooperativismo e inovação no Brasil. Nela, participam representantes de cooperativas brasileiras do setor de crédito, transporte e saúde – todos interessados no potencial de uma economia de plataforma enraizada nos valores do cooperativismo. Sinal claro desse interesse é o fato do cooperativismo de plataforma ter sido um dos temas principais do 14º Congresso Brasileiro do Cooperativismo em maio de 2019.
O cooperativismo de plataforma é o velho e o novo, ao mesmo tempo. É notável que os princípios de “controle democrático”, “participação econômica”, “autonomia e independência”, “cooperação” e “engajamento com a comunidade” sejam vistos como definidores de uma nova economia nos EUA. Na realidade, muitos desses princípios são releituras de ideais lançados há mais de 150 anos por movimentos de trabalhadores (os “princípios de Rochdale”, disseminados no Brasil desde o final do século XIX). A diferença está na remodelagem desses princípios em economias de múltiplos lados, caracterizadas por efeitos em rede, por novas formas de intermediação tecnológica e pela extração de valor a partir dos dados pessoais.
Evidentemente, o cooperativismo tem ganhado força justamente em razão da aproximação com os níveis de desigualdade do século XIX nas sociedades capitalistas contemporâneas e a precarização do trabalho na “economia dos bicos” de hoje. Como mostram inúmeros economistas – Thomas Piketty, Branko Milanovic e Frances Stewart –, o problema da concentração de renda é brutal e o fosso entre “super ricos” e classe trabalhadora é profundo. O cooperativismo é uma das possibilidades, dentro de uma agenda reformista maior, que envolve imposto progressivo sobre a fortuna de bilionários e regimes de propriedade social, baseados na partilha de direito de voto e de poder com os assalariados nas empresas.
Paralelamente ao cooperativismo, há um movimento de employee-owned enterprises em ascensão. Nos últimos anos foram criadas certificações para verificar se os empregados possuem pelo menos 30% da propriedade de um negócio e se o acesso à propriedade é aberto a cada empregado, limitando a concentração acionária. O trabalho da Certified EO é justamente fazer essa avaliação nos EUA. São mais de 6.000 empresas nesse formato, com mais de 1 milhão e meio de “empregados donos de negócios” nos EUA. Já as cooperativas de trabalhadores estão na casa de 500, segundo dados da Certified EO.
É claro que em comparação com Brasil as cooperativas dos EUA são menores em número, escala e impacto. Segundos os dados mais recentes do Anuário do Cooperativismo Brasileiro 2019, o Brasil possui 6.828 cooperativas, sendo que o número de cooperados saltou de 9 milhões para 14 milhões entre 2010 e 2018, com quase 400 mil empregos diretos. Somente em 2018 a receita bruta acumulada das cooperativas brasileiras foi de 259 bilhões de Reais, com bilhões injetados no interior do país. Como argumenta Mario de Conto, da Faculdade de Tecnologia do Cooperativismo, é evidente o potencial para as CoopTechs no Brasil.
As experiências estadunidenses, no entanto, mostram empreendimentos comunitários concretos e um interesse crescente pela tecnologia que não deve ser negligenciado. Em especial, elas revelam um amplo movimento de “democracia econômica” em Nova Iorque.
O Center for Family Life está presente há mais de quarenta anos em SunSet Park em Nova Iorque. Eles começaram com um trabalho específico com imigrantes e com a comunidade trabalhadora. Eles dividem o trabalho em três níveis. Primeiro, community services, que abarca apoio a alimentação, legalização e apoio jurídico a impostos. Segundo, family counseling, que se dedica ao aconselhamento familiar, cuidados, apoio a imigrantes, e ajuda com crises familiares. Terceiro, employment services, que se dedica ao apoio para trabalhadores e aulas de computação, inglês e job placement.
O primeiro trabalho com tecnologia começou em 2006, com a ideia de uma plataforma para apoio a trabalhadoras imigrantes. O Si, se puede começou com 13 mulheres e a ideia básica era criar um plataforma de conexão de trabalhadoras para trabalhos domésticos, no qual as trabalhadoras seriam as proprietárias da plataforma (“women-run, women-owned, eco-friendly housecleaning business”).
Desse trabalho, surgiram outros projetos e experiência como Beyond Care, Émigré Gourmet (catering), Golden Steps (cuidados de adultos e idosos), Brightly (limpeza) e, finalmente, a Up&Go.
A Up&Go é uma plataforma digital para que os clientes possam pedir serviços de limpeza. É a primeira plataforma digital em que a propriedade é dos trabalhadores em Nova Iorque. O sistema baseia-se em (i) trabalhos justos e (ii) propriedade intelectual coletiva do código e das marcas.
O projeto foi concebido como uma alternativa ao modelo de gig platform de outras empresas como Handy. Na visão da ONG, o sistema de agenciamento sempre existiu. O que a Up&Go quer é quebrar o lucro do intermediário por meio da gestão comunitária. A plataforma luta contra políticas de preços flexíveis de empresas como Uber, que não possuem transparência sobre o funcionamento do algoritmo.
O desenvolvimento inicial ocorreu em 2016 com o estudo de viabilidade e um apoio técnico do fundo de investimento social Robin Hood, fundado por uma liderança do Bronx. O desenvolvimento inicial ocorreu em dezembro de 2016. O lançamento Beta e o lançamento público ocorreram em 2017. Em dezembro os founding co-ops tornaram-se proprietários.
De acordo com Sylvia Morse, coordenadora do projeto Up&Go, o primeiro desafio foi o parceria com uma cooperativa de tecnologia para desenvolvimento do protótipo. Além da Robin Hood, a cooperativa CooLab deu o apoio a tecnologia e human-centered design. A meta era criar uma plataforma que representasse os valores da cooperativa.
Posteriormente, foi feito um trabalho de engajamento e ensino-aprendizagem para que as trabalhadoras se apropriassem do conhecimento sobre a arquitetura do sistema e passassem a tomar decisões sobre licenciamento do software e políticas de uso de dados.
Uma das mais tradicionais cooperativas de consumo de Nova Iorque é o Park Slope Food Coop, fundado em 1973 por um grupo de 9 pessoas na Union Street, em Brooklyn.
O Park Slope possui hoje 17 mil cooperados e o propósito central da cooperativa é criar um mercado no qual produtos de qualidade são vendidos a preços justos e baixos. O enfoque está em adquirir produtos locais em grandes quantidades, privilegiando pequenos produtores do entorno de Nova Iorque. Um segundo objetivo está em quebrar os intermediários, fazendo a conexão direta entre uma “plataforma de consumo” e os produtos.
Desde o início, um dos desafios do Park Slope foi reduzir os custos de se manter um mercado deste porte. Para tanto, os cooperados criaram um sistema de trabalho colaborativo. Todo cooperado do Park Slope Food Coop precisa assumir a obrigação de trabalhar 2 horas e meia a cada 28 dias. Por dia, praticamente 500 pessoas se revezam em diferentes funções. Há grupos de cooperados que assumem função de caixa, grupos que abrem e fecham caixas, grupos que rotulam preços, grupos que analisam a qualidade dos alimentos, grupos que auxiliam a levar as compras até os veículos e grupos que fazem a segurança. Essa dinâmica de trabalho cria um forte espírito de comunidade e de pertencimento aos cooperados.
O mercado da cooperativa é exclusivo para os cooperados. Não é possível um turista ou visitante comprar algo se não assumir obrigações perante a comunidade enquanto cooperado. O Conselho Diretivo da cooperativa também é obrigado a acatar as recomendações dos cooperados, que são feitas em assembleias na Union Street.
De acordo com Joe Holtz, um dos fundadores da Park Slope Food Corp, o ideal de quarenta anos atrás ainda se mantém forte na cooperativa. Movidos por um amplo movimento de contracultura e de novos movimentos de justiça social na década de 1970, o ideal era o de construir “sucesso comunitário” e não apenas “sucesso individual”. Atualmente, a Park Slope Food Coop tem utilizado ferramentas tecnológicas de gestão do trabalho, aviso aos cooperados por celular (“Amanhã é seu turno às 14h”) e mecanismos facilitados de deliberação online.
Em diferentes partes dos EUA e da Europa, há iniciativas semelhantes ao Park Slope Food Coop, como o La Louve em Paris. Nem todas, no entanto, são exclusivas aos cooperados e exigem compulsoriamente uma forma de trabalho, o que faz de Park Slope um exemplo bastante único de empreendimento comunitário. Como diz o veterano Joe Holtz, o cooperativismo é “um exercício prático do dia-a-dia e construção de comunidade a partir do trabalho”.
A Cooperative Home Care Associates foi fundada no Bronx, um bairro tipicamente marcado pela imigração latina e caribenha, em 1985, a partir da iniciativa de Rick Surpin e Peggy Powell. O objetivo inicial era de maximizar os salários dos cooperados e benefícios a partir de um modelo de trabalho de cuidados primários e secundários.
Atualmente, a CHCA é a maior cooperativa de trabalho de cuidados dos EUA. As trabalhadoras são 99% mulheres. 74% são latinas ou hispânicas e 15% são afro-americanas. 56% são imigrantes. Desde 1985, o modelo de treinamento já formou mais 10.000 trabalhadoras. Anualmente, 600 pessoas trabalham regularmente a partir da cooperativa.
A cooperativa trabalha com o conceito de “riqueza comunitária”. Essa riqueza é mensurada a partir dos princípios de treinamento gratuito, serviços de qualidade, emprego, tutoria, desenvolvimento profissional e a ideia de ser dono do próprio negócio.
A CHCA funda-se em um conjunto de princípios. Os principais são (i) adesão voluntária, (ii) controle dos membros de forma democrática, (iii) participação econômica dos membros, (iv) autonomia e independência, (v) educação, entretenimento e informação, (vi) cooperação entre cooperativas e (vii) preocupação com a comunidade. As cooperadas trabalham e vivem no Bronx.
A adesão é feita por um preço total de $ 1.000 (mil dólares). É exigido um depósito inicial de 5 dólares. Os $ 950 são pagos com cotas de $ 3,65 por semana (o preço de uma refeição). Entre as responsabilidades, estão o comprometimento com 90 dias de trabalho e a participação em treinamentos e orientação.
Atualmente, a CHCA possui certificado pela Certified Employee-Owned e é integrante de redes como US Federation of Worker Cooperatives (criada em 2004) e Democracy At Work Cooperatives. Eles também contam com apoio do CYNU Murphy Institute Center e ICA Group, que provê consultorias para empreendimentos de impacto social.
A CHCA possui um time de tecnologia e privacidade para cumprimento das leis de proteção de dados pessoais e cuidados com os dados relacionados à saúde dos clientes que utilizam os serviços da cooperativa. Atualmente, há interesse em criação de uma plataforma web para que usuários dos serviços no Bronx possam contatar a CHCA de forma simples, integrante meios de pagamentos.
A Savvy Cooperative é uma cooperativa da “nova geração” nos EUA. Ela surgiu há dois anos a partir da união de três profissionais da área da tecnologia e da saúde. Diferentemente da CHCA, ela não possui uma “base local”, mas trabalha com potenciais cooperados online.
O objetivo central da Savvy Cooperative é criar um mercado de dois lados, onde, de um lado, cooperados produzem dados e inteligência a partir de seus tratamentos de saúde e, de outro, empresas da área da saúde podem acessar tais dados e remunerar os pacientes de forma justa.
A ideia surgiu a partir de experiências concretas de tratamentos de doenças pelos fundadores. Os três possuem condições médicas específicas e perceberam que há todo um conjunto de partes interessadas em acessar tais informações e gerar conhecimento a partir do modo como um paciente realiza um tratamento de saúde ou responde perguntas específicas em user-testing e grupos focais.
A cooperativa foi desenhada a partir de um princípio de “justiça econômica” dos dados gerados pelos pacientes. A premissa é que, se os pacientes colaboram na produção de informações que geram valor para diferentes empresas no seu próprio tratamento de saúde, então é justo que haja um arranjo de consentimento informado e de remuneração pela informação gerada por parte dos pacientes.
A cooperativa possui 500 cooperados e mais de 10.000 pacientes que engajados. A Savvy Cooperative está em fase inicial e possui um modelo bastante particular de organização. A cooperativa possui quatro diferentes classes de “cotistas”, permitindo, inclusive, que haja investimento de fundos privados na cooperativa. Ainda não há distribuição de dividendos e valores concretos, mas a cooperativa espera escalar nos próximos meses e sacudir o debate sobre “titularidade dos dados” em um cenário onde grandes empresas de tecnologia estão interessadas em mercados relacionados à saúde populacional e serviços de saúde.
No fundo, a Savvy Cooperative coloca em debate a provocação do filósofo estadunidense Jaron Lanier sobre “dignidade dos dados” e sobre a propriedade dos dados pessoais. Sem dúvidas, o surgimento de cooperativas dedicadas a esse fim tende a provocar ricas discussões sobre o futuro das economias digitais e as possibilidades de experimentação econômica com viés democrático.
As cooperativas aqui analisadas mostram a força dos valores do cooperativismo e as possibilidades de readaptação desses modelos organizacionais em uma economia progressivamente intermediada por plataformas e por geração de valores a partir dos dados.
O cooperativismo de plataforma, enfim, abre três discussões fundamentais.
Primeiro, a possibilidade da redistribuição dos valores gerados a partir dos dados, baseado na concepção de que a produção de informação é uma forma de trabalho – um assunto polêmico diante da proposição de que os dados pessoais não são “mercadoria” mas uma projeção da personalidade que não poderia ser negociada.
Segundo, a importância do engajamento das cooperativas com a compreensão do funcionamento dos mercados de múltiplos lados e da extração de valor a partir dos dados. Abre-se aqui a possibilidade de que negócios éticos sejam modelados a partir da inteligência gerada pela análise de dados, em conformidade com as novas legislações sobre dados pessoais (como a LGPD que entra em vigor em 2020). As cooperativas de plataforma podem ser líderes na adoção da proteção de dados pessoais.
Terceiro, a possibilidade de inovação social nos métodos de deliberação e envolvimento dos cooperados na “vida onlife”, usando a expressão do filósofo Luciano Floridi. Isso significa a ausência de fronteira clara entre o off-line e o online, fazendo com que os processos deliberativos típicos (assembleia presencial anual) sejam reimaginados em uma dinâmica de engajamento constante, multimídia, interativa, participativa e mensurável. A necessidade de democracia econômica abre grande espaço de inovação tecnológica para concretização desse objetivo e precisa ser avaliada criticamente, diante da crescente necessidade do “direito de desconexão”. Abre-se aqui uma tensão entre as possibilidades de participação constante, mediada pelas tecnologias, e uma necessidade de “descanso digital” para garantia de um bem-estar mínimo.
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