08 Novembro 2019
Mary Beard desperta paixões. Seja por seu talento na hora de divulgar a História, seja por seu vasto conhecimento sobre a Roma antiga ou porque sempre é capaz de conectar o passado aos fenômenos presentes, como o feminismo e o papel das mulheres na arte ou no poder.
Esta professora de Estudos Clássicos da Universidade de Cambridge voltou a lotar um auditório em sua passagem por Barcelona, na Espanha. A célebre latinista recebeu o título de doutora Honoris Causa da Universidade Aberta da Catalunha, em um ato que contou com a presença da prefeita Ada Colau.
Autora de mais de uma dúzia de obras sobre temas clássicos, Beard se tornou uma celebridade por sua participação, há anos, em documentários da BBC. Os últimos, da série Civilisations, agora adaptou ao livro La civilización en la mirada. Antes, também publicou Mulheres e Poder (2017), um manifesto feminista no qual analisa, com base em seu conhecimento sobre o mundo clássico, os papéis das mulheres e homens no poder e como as estruturas de tomadas de decisão seguem masculinizadas.
A entrevista é de Pau Rodríguez, publicada por El Diario, 06-11-2019. A tradução é do Cepat.
Seu último livro, ‘La civilización en la mirada’, parte da ideia de que os seres humanos, desde as civilizações mais antigas, se tornaram obcecados em se representar através da arte. A que você atribui isso?
Esta é uma pergunta muito interessante porque quase não tem resposta. Há diferentes maneiras de se aproximar dessa questão. No livro, tentei pensar a arte não apenas por meio da história dos grandes artistas, mas a partir das pessoas que contemplam a arte. Os observadores, os consumidores. É importante porque se consegue novos ângulos: para que serve a arte, por qual motivo uma obra foi feita, quem a pagou... Talvez você não consiga responder às grandes perguntas, mas terá uma visão mais completa do que se apenas olhasse para o artista, que é importante, mas é apenas um. Nossa maneira de ver uma obra de arte, como pode ser a Vênus de Milo - cujo artista morreu há 2.000 anos -, faz parte de sua história.
No livro, você também fala sobre como o poder é representado. E dá um exemplo, o de Ramsés II, que dedicou a si grandes templos e estátuas. Pensa a questão não apenas como um fato propagandístico para o povo, mas para ele próprio.
No caso das representações de pessoas poderosas, de monarcas a faraós, costuma-se considerar que são tentativas de propaganda. Um faraó que tenta afirmar seu poder avassalador, demonstrando a todos que ele é o chefe. Este relato não é falso, mas esquecemos de duas coisas. Primeiro, que nem todo mundo acredita nisso: esses grandes objetos de Ramsés II foram um foco de descontentamento. E também nos diz algo sobre a história do poder político. Quem realmente precisa se convencer de que é rei, é o próprio rei. Muitos objetos artísticos servem para reforçar a visão que o rei tem de si mesmo. Isso me lembra o que acontecia com Diana de Gales, que revisava todos os jornais, durante o café da manhã, em busca de fotos suas. Dizia-se que isso era vaidade, e poderia ser, mas parece-me que ela estava tentando se convencer de que era uma princesa. Validava sua existência olhando as imagens.
Se o objetivo do livro ‘La civilización en la mirada’ é explicar como nos representamos ao longo da história, que papel as mulheres desempenham?
Por um lado, o de artistas ignoradas. No mundo antigo, encontramos muito poucas mulheres artistas, com histórias que foram esquecidas e que devem ser resgatadas. Como a da mulher que fez o primeiro retrato desenhando uma silhueta de seu amante em uma parede. Depois, continuamos vendo as mulheres como objetos, e isso nos leva a se deparar com uma série de perguntas complicadas, como, por exemplo, por qual motivo as mulheres eram representadas.
Em seu famoso monólogo ‘Nanette’, Hannah Gatsby descreve as mulheres na história da arte como “vasos vazios para flores-pênis dos artistas”.
Sim, você pode dizer assim ou de forma mais acadêmica: as mulheres como criação da visão masculina. Se assumimos isto, que as mulheres são uma criação para o desejo masculino, temos que nos perguntar de que forma olhamos, como mulheres, uma obra de arte tradicional, como pode ser a Vênus de Urbino, de Ticiano. Cheguei à conclusão de que, com o passar do tempo, podemos começar a recuperar algo dessa visão masculina.
Outro dia, vi a Vênus de Urbino, que desde sempre foi objeto da visão masculina. E desejei lhe dizer: “Olá, querida, estamos do mesmo lado, estou do seu lado”. Como observadora que não é um senhor idoso lascivo, acredito que existem diferentes maneiras de olhar, e alguns podem servir para empoderar aquelas que estiveram aparentemente subordinadas ao desejo masculino.
Na política, cada vez há mais mulheres, mas nos últimos tempos também vimos a ascensão de homens muito beligerantes contra o feminismo, de Trump a Bolsonaro. Como você vê isso?
A longo prazo, sou otimista. Eu mesmo vivi uma revolução e acredito que não há como retroceder. Quando eu era adolescente, olhava para os políticos e todos eram homens de terno. Havia um punhado de mulheres na Câmara dos Comuns, mas também pareciam homens de terno. Agora, começa a ser diferente. É claro que não gosto da maneira como esses homens poderosos tentam minar o progresso das mulheres, mas acredito que representam apenas uma ameaça a curto prazo. A longo prazo, preocupa-me mais a concepção que temos sobre o poder. Muitas mulheres ocidentais, que querem entrar na política mainstream, ainda tentam se parecer com os homens, vestindo-se e falando como eles.
Contudo, cada vez mais, há exemplos do contrário: figuras políticas que não cumprem esse estereótipo, como Alexandria Ocasio-Cortez, a prefeita de Bogotá, Claudia López, e, inclusive, a de Barcelona, Ada Colau.
Sim, existem. E nós estamos indo na direção certa. Mas, se hoje fosse dar uma aula e pedisse aos alunos para fechar os olhos e imaginar um primeiro-ministro, alguém imaginaria uma mulher? Mesmo quando tínhamos uma mulher como primeira-ministra, talvez apenas um punhado levantaria a mão.
Em seu livro, ‘Mulheres e Poder, você defende que a chegada das mulheres ao poder também deve servir para reconfigurar a própria ideia de poder. O que você quer dizer com isso?
Na maioria dos cursos de liderança, o conselho dado às mulheres é que elas precisam mudar, que se querem exercer autoridade, precisam se comportar de maneira diferente. Isso é o que tiveram que fazer por séculos e nada muda. As mulheres seguem pensando que o poder é para elas uma pretensão. Deveríamos mudar a concepção do que é o poder, não a concepção do que é uma mulher, e que deixe de ser algo que se possui à custa do outro.
Agora, é um jogo de soma zero: se eu tenho poder, você não. Mas, o poder pode ser algo que compartilhamos para conseguir coisas. Penso no movimento Black Lifes Matter, uma organização de mulheres que não se tornaram celebridades individuais. Em todo o mundo, há mulheres com poder nos colégios, em lojas, organizando e mudando as coisas sem esse aspecto masculino e de celebração do poder. Se o pensarmos em termos de colaboração, talvez possamos ir mais longe.
Você protagonizou certa controvérsia com Boris Johnson, anos atrás, embora tenha dito que respeita seus vastos conhecimentos sobre o latim e os clássicos. Qual é a sua opinião sobre o mesmo, agora como presidente?
É um bom estudioso dos clássicos, nada mais. Muitas vezes, sai dizendo que é um especialista no mundo antigo, mas quando se trata de citar em latim, procura fazer com que se pareça algo tory (conservador), como se fosse um assunto fora de moda. Isso está longe do que eu quero ensinar.
E sobre o Brexit, acho que está complicando as coisas. Pode ser que consiga um acordo, mas é um desastre completo. Ele tem talento, seria absurdo não reconhecer, mas tudo o que faz é lançar falsas promessas que fazem com que as pessoas se sintam bem, e não é isso que um primeiro-ministro deve fazer, precisa fazer promessas que possa cumprir e ter um bom controle dos riscos que possam surgir.
Você dedicou anos de sua carreira profissional à academia e também aos meios de comunicação. Onde recebeu mais mansplainning?
Nos dois lugares, pode acreditar.
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“Deveríamos mudar a concepção do que é o poder, não a concepção do que é uma mulher”. Entrevista com Mary Beard - Instituto Humanitas Unisinos - IHU