07 Novembro 2019
Com o seu desenvolvimento, durante a primeira metade do século XX, os antibióticos apagaram do cérebro dos humanos o medo de morrer infectados. Alexander Fleming iluminou o caminho ao descobrir os efeitos da penicilina e milhões de soldados foram capazes de salvar suas vidas, durante a Segunda Guerra Mundial. No entanto, o uso excessivo e incorreto de medicamentos, ao longo do tempo, tornou as bactérias mais resistentes e levou à sua evolução para “superbactérias”. Por que isso acontece? Como é que evoluíram? Este trabalho revela que cada bactéria “escolhe” e “seleciona” as proteínas que utiliza para desativar os antibióticos e configurar “escudos bacterianos”.
Embora muitas dessas proteínas sejam tóxicas para seu hóspede e habitualmente são expulsas, existe uma que representa a soma de todos os males. Trata-se da denominada “NDM”: uma enzima que não intoxica as bactérias, é muito resistente às terapias terapêuticas convencionais e, acima de tudo, se dissemina rapidamente. Tanto que, recentemente, causou dezenas de mortes na Itália.
Alejandro Vila é doutor em química e pesquisador do Conselho Nacional de Pesquisa Científica e Técnica (Conicet), no Instituto de Biologia Molecular e Celular de Rosário (IBR). Aqui, compartilha em detalhes o estudo que realizou com seus colegas Carolina López e Lisandro González que, nos últimos dias, foi publicado na revista Nature Communications.
A entrevista é de Pablo Esteban, publicada por Página/12, 06-11-2019. A tradução é do Cepat.
Como é que as bactérias nos infectam se somos feitos delas?
Se olharmos para a história evolutiva, é fácil ver como o nosso mundo foi feito por bactérias. Foram os primeiros organismos vivos, embora nosso viés antropocêntrico, às vezes, nos impeça de percebê-lo. Nossa vida, seja na saúde ou na doença, depende da interação que temos com elas, nos protegem, nos imunizam, modulam nosso humor e ajudam no bom funcionamento de sistemas muito complexos, como o digestivo. Constituem um excelente exemplo de convivência dentro da diversidade. A quantidade de células bacterianas em nossos corpos é maior que as humanas. Somos bactéria. No entanto, nem tudo o que vem delas é tão benéfico.
Também nos adoecem...
Existem algumas, como as patogênicas e as oportunistas que, na ânsia de sobreviver, procuram ganhar terreno à custa dos outros. Isso acontece principalmente quando temos defesas baixas (imunossuprimidos) e estamos hospitalizados, da mesma forma que ocorre com as bactérias que infectam outros animais, como o gado. A penicilina, o primeiro antibiótico desenvolvido por Alexander Fleming, era um composto secretado naturalmente por um fungo e, apenas na Segunda Guerra Mundial, permitiu salvar a vida de seis milhões de feridos. As bactérias participam de um processo de seleção e incorporam mutações há bilhões de anos de evolução. Se utilizamos antibióticos indiscriminadamente, estamos pisando no acelerador e, involuntariamente, também selecionamos superbactérias capazes de resistir a tudo. É uma corrida que não podemos vencer.
Sua pesquisa representa uma tentativa de tentar entender os mecanismos de comportamento e ação dessas superbactérias.
60% dos antibióticos no mundo são utilizados na pecuária e os 40% restantes destinados à saúde humana, metade é usado erroneamente para infecções virais. Essa situação não faz nada além de selecionar as melhores e abrir caminho para superbactérias. Trabalhamos para entender como funciona a NDM (Metallo-beta-lactamase de Nova Déli), uma proteína que se espalhou em todos os tipos de bactérias patogênicas e oportunistas e se tornou capaz de resistir a qualquer antibiótico de última geração.
Essa enzima foi descoberta quando uma pessoa escandinava viajou para a Índia para fazer uma cirurgia estética de baixo custo. Quando retornou ao seu país, teve uma infecção bacteriana e morreu. O incidente aconteceu em 2008 e em apenas três anos se espalhou por mais de 100 países, inclusive, no Paquistão, não apenas a encontraram em bactérias patogênicas, mas também em água potável.
Ou seja, a proteína não apenas resiste aos antibióticos, mas também demonstra uma alta capacidade de disseminação.
A globalização do mundo em que vivemos e o notável aumento das viagens transoceânicas potencializaram essa situação. Tudo se move mais rápido, até as enzimas encontradas nas bactérias que nos deixam doentes. Em nosso laboratório, conseguimos advertir que a NDM se expulsava em vesículas (pequenas esferas). Essas proteínas - quando se alojam em bactérias patogênicas - são lançadas como pequenos mísseis e destroem os antibióticos. Ultimamente, também comprovamos que a NDM não gera nenhum custo para as bactérias, não as intoxica. Evita qualquer dano nelas.
Não apenas resiste aos antibióticos e se dissemina muito bem, como também tem a virtude de não intoxicar as bactérias?
Exatamente, é que foi selecionada com todas essas características e, graças a isso, possui uma vantagem muito importante sobre as outras que conhecemos. No mês passado, foi relatado um surto de resistência na Itália - devido a bactérias com NDM - que causou 30 mortes.
Segundo a OMS, em 2050, estima-se que 10 milhões de pessoas possam morrer a cada ano por infecções bacterianas. Constituiria, assim, a principal causa de mortalidade em todo o mundo.
Antes das guerras mundiais, a principal causa de morte eram infecções bacterianas. Estamos voltando à era pré-antibiótica. Quando, no início do século XXI, melhorou a qualidade de vida, as doenças cardiovasculares e câncer dominaram o pódio. No entanto, de acordo com os últimos relatórios da Organização Mundial da Saúde, estamos voltando ao passado. Do ponto de vista da ciência básica, o que podemos fazer é buscar entender seus mecanismos de disseminação para que as estratégias terapêuticas tenham melhores resultados. Pertencemos, atualmente, a um consórcio internacional que projeta inibidores que buscam frear as ações da NDM. Ainda estamos em fase laboratorial (pré-clínica), mas existem perspectivas muito boas.
E como entra a política nisso tudo?
As políticas públicas não são apenas necessárias, são fundamentais. Deve haver um controle no uso de antibióticos na pecuária, porque são usados, em muitos casos, de forma preventiva e para favorecer o crescimento dos animais. Disseminar antibióticos no ambiente, a única coisa que faz é selecionar bactérias mais resistentes.
Por outro lado, deve existir uma regulamentação sobre a venda livre que as farmácias realizam. É antipático dizer isso e eu sei, mas ninguém deve poder comprá-los sem receitas. Não é correto se automedicar, ao mesmo tempo que é obrigatório respeitar as doses e os horários que os profissionais de saúde estipulam. Por último, e conectado a isso, seria muito importante ter mais conscientização dos cidadãos, ou seja, tratar de conhecer um pouco mais o que os médicos nos receitam, porque em muitos casos não faltam aqueles que “nos dão antibióticos por dúvidas”, quando não necessitamos deles. Em suma, também precisamos de uma mudança na concepção cultural do assunto.
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“Estamos voltando à era pré-antibiótica”. Entrevista com Alejandro Vila - Instituto Humanitas Unisinos - IHU