19 Outubro 2019
Para sociólogo português, vazamentos do The Intercept podem provar ingerência na política nacional: em conflito com a China, EUA teriam usado a Lava Jato para conseguir alinhamento total do Brasil e liquidar Pré-Sal e Embraer.
O sociólogo e jurista português Boaventura de Sousa Santos, das universidades de Coimbra (Portugal), de Wisconsin-Madison e de Warwick (EUA), está em visita ao Rio Grande do Sul. No domingo, 16 de junho, Boaventura participou do debate “Ecologia dos Saberes” na Casa de Cultura Hip Hop (CCHH) de Esteio e repercutiu as revelações do site The Intercept que indicam conluio entre o ministro Sérgio Moro, então juiz federal da Lava-Jato, e o chefe da força-tarefa da operação, procurador Deltan Dallagnol. “Não há ninguém hoje no sistema judiciário internacional que ponha Moro como exemplo; ele é o contra-exemplo do que não se deve fazer”, afirma Boaventura – que é também coordenador científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa.
A entrevista é de Henri Figueiredo, publicada por Sul21, 18-06-2019.
O sociólogo fez questão de participar da atividade em Esteio também pela estreita relação de amizade, desde 2012, com o rapper Rafa Rafuagi, coordenador da CCHH. O evento foi uma promoção conjunta da Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP/RS), da Associação da Cultura Hip Hop de Esteio (ACHE) e do Instituto de Assessoria às Comunidades Remanescentes de Quilombos (IACOREQ) e integrou uma série de ações de combate ao trabalho infantil com o apoio do Ministério Público do Trabalho (MPT) e da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Além disso, a tarde quente de domingo, reuniu centenas de pessoas no espaço da CCHH para marcar o encerramento do curso organizado pela Universidade Popular do Movimento Social (UPMS) Vozes da Periferia, do qual Boaventura é um entusiasta e colaborador.
As recentes revelações do site The Intercept, que indicam conluio entre os procuradores e o juiz da Lava-Jato, mostram também o modus operandi que o senhor descreveu, em recente artigo, tanto como “manipulação da opinião pública” quanto “táticas de desinformação”. O senhor também já tinha comentado que talvez demorasse 50 anos para o Brasil ver de fato o que ocorreu na Operação Lava-Jato. Acredita que os fatos recentes podem ser o início desse esclarecimento da opinião pública?
Olhando mais para aquilo que tem de ser feito, precisamos voltar a credibilizar o sistema judiciário brasileiro – que passa por uma crise gravíssima. Sobretudo porque o sistema judiciário é muito heterogêneo. Mas, normalmente, aqueles que têm um perfil mais elevado e que, a certa altura, protagonizam a voz do Judiciário, se cometerem algo de errado, isso repercute em toda a classe. E, portanto, neste momento estou é preocupado com os juízes, os magistrados e os procuradores que não têm nada a ver com esta vergonha desta manipulação – que é realmente um estudo, um caso de laboratório. Um caso de manipulação, destruição, confusão de papéis, violação de todos os procedimentos legais que mostra que o direito, neste país, deixou de ser a ordem jurídica para ser a desordem jurídica.
Os juízes e os magistrados que se envolveram nisso criaram uma desordem jurídica de consequências que, neste momento, não podemos plenamente avaliar. E talvez leve os tais 50 anos a tentar saber, efetivamente, qual foi o dano que se criou. Eu e aqueles que têm formação jurídica e sociológica, e que leram as sentenças, há muito tempo sabíamos que o presidente Lula estava inocente. Portanto, não havia realmente prova que pudesse condená-lo. Aliás, cometeram-se atropelos de todo tipo que, mesmo sem essas revelações, já mostrava que se o sistema judiciário brasileiro estivesse a funcionar normalmente, os tribunais hierarquicamente superiores haveriam de neutralizar o dano que se estava a criar ao nível de primeira instância.
O que aconteceu foi a primeira grande enfermidade, distorção do sistema judiciário: as instâncias superiores, por pressão dos militares, ou não, passaram a ser subsidiárias das instâncias inferiores. Passaram, assim, a ratificar praticamente todos os erros. Isto criou uma desordem extraordinária e fragmentou o STF – que era uma instituição extremamente credibilizada no Brasil e hoje está pelas horas da amargura. Ainda é a última esperança, mas é uma esperança desesperada em função dos acontecimentos que ocorreram nos últimos tempos.
O senhor considera que essa situação pode ser uma inflexão do que chamou de “orgia de opinião” ou dos “fluxos de opinião unânime” contra e a favor, que correm paralelos nas redes sociais e tendem a intensificar a polarização política?
É evidente de que há revelações que são do tipo daquelas de Edward Snowden, senão ainda mais bombásticas. E até mais numerosas. E estão algumas ainda por revelar. E, ao que sei, as que estão por revelar ainda vão causar muito mais dano a quem se envolveu em tudo isto.
Obviamente que eles vão ver se conseguem minimizar o dano por aquilo que fizeram até agora. E o que fizeram até agora? Foi exatamente através das fake news que puderam criar os tais “rios de opinião unânime” – mas já comecei a detectar que a divergência já está no terreno.
Há os que dizem que tem de defender o Moro, que o que ele fez é normal – e é impossível de imaginar que alguém pense que é normal um juiz dar ordens ao procurador; dizer-lhe como ele dever organizar seu manifesto para a imprensa para liquidar a defesa. Criou-se um sistema em que as pessoas deixaram de dialogar. Criou-se muito o elemento do amigo versus inimigo. Temos hoje no Whatsapp as duas tendências: os que dizem que isso é o descalabro e Moro devia renunciar; e os que dizem que foi nada de mau, que é normal, e nada vai acontecer.
Quais os riscos que o senhor identifica em relação a uma possível sanha persecutória contra o jornalista Gleen Greenwald, de The Intercept, com o uso de rule of law como acontece com Julian Assange – cuja situação, neste sentido, o senhor já comparou a de Lula? E como o senhor vê, hoje, o uso do lawfare e a interferência dessa prática nas nossas últimas eleições, em 2018?
Glenn é um grande jornalista. Deveria lhe ser concedido, tal como já defendi para Assange, o Prêmio Nobel da Paz. Tem que se cuidar porque, obviamente, está na mira das milícias e de todos aqueles que não querem que a verdade seja apurada. Os dados já não estão no Brasil apenas, os dados estão a salvo. Portanto se matarem o Glenn, não matam os dados – e teria um custo político muito grande. Podem atacar pessoas relacionadas com o Gleen. Ele é um homem muito experiente e, desde que tornou públicos os dados de Snowden, sabe bem como funciona o sistema, portanto também sabe defender-se. Mas ninguém, obviamente, é isento de qualquer fragilidade que o possa levar a um erro. Ele está a ter muito cuidado na estratégia de publicação.
Agora, o dano principal está feito: revelou-se internacionalmente que tudo foi uma fraude com todo o apoio dos Estados Unidos, de onde vieram os dados da Lava-Jato. Todo o apoio foi para que isso tivesse o efeito político de eleger Bolsonaro. Ninguém mais na direita tinha garantido que o Pré-sal seria privatizado – que era o grande objetivo dos EUA –, que a Embraer fosse vendida e que a Previdência fosse privatizada. Os objetivos dos EUA são os objetivos do capital financeiro internacional e estes só eram satisfeitos por alguém que mostrasse toda a disponibilidade, como Bolsonaro.
Estamos num momento de grande rivalidade entre os EUA e a China. E os EUA querem alinhamentos totais para quem está próximo; e queria o Brasil totalmente alinhado. O impeachment da presidente Dilma foi parte deste processo. A condenação do presidente Lula, também. Portanto, agora vamos ver se as forças democráticas deste país finalmente se levantam diante deste enorme atropelo da justiça que está a fazer da democracia uma ditadura.
Penso que Moro está apoiado pelos militares e isto talvez seja a sua segurança – já que não tem prestígio internacional nenhum. Este homem foi duas vezes, em dois meses, a Portugal vender a delação premiada. Não foi aplaudido como queria e foi criticado pela nossa ministra da Justiça e pela ex-procuradora-geral. Portanto, falhou nos seus objetivos internacionais. Não há ninguém hoje no sistema judiciário internacional que ponha Moro como exemplo; ele é o contra-exemplo do que não se deve fazer.
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Boaventura: a intrincada geopolítica da Lava Jato - Instituto Humanitas Unisinos - IHU