13 Agosto 2019
Agora que a coalizão populista de direita e esquerda a governar a Itália já trilhou o mesmo caminho que muitos dos governos italianos anteriores – isto é, agora que a coalizão acabou em paralisia, disputas e acusações –, os italianos aparentemente terão em breve de voltar às urnas.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada por Crux, 10-08-2019. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Quando isso acontecer, com razão a figura oposicionista singular mais importante não estará nas cédulas e provavelmente não fará campanha, nem sequer no sentido mais indireto possível: o Papa Francisco, que, entre outros títulos, conta com o de “Primaz da Itália”.
Estas eleições representam um referendo contra Matteo Salvini, ministro italiano do Interior e líder da Liga, que se tornou a figura mais popular e polarizada da vida política do país desde os anos de Silvio Berlusconi no poder.
Salvini domina a vida política italiana desde 2018 com o cargo de ministro do Interior, que lhe deu a autoridade para impor uma linha mais dura na questão da imigração, por exemplo, não permitindo que botes carregados de refugiados atraquem em seus portos. Esta postura teve bastante aceitação entre os italianos que temem sofrer com uma enxurrada de estrangeiros entrando no país, ressentidos de que a União Europeia pouco tem feito para mitigar a situação.
O que é também um cenário profundamente irônico para este momento, que conta com um pontífice mundialmente conhecido por ser uma figura pró-imigrantes.
O que incitou este mais recente movimento por parte do atual governo foi um projeto de construção de uma linha de trem a ligar Turim com Lyon, na França, ideia que Salvini apoia e a que o Movimento 5 Estrelas se opõe como um investimento multibilionário com consequências ambientais degradantes. Ao perder, nesta semana, uma votação no parlamento a respeito do projeto, Salvini declarou morta a coalizão.
Agora, cabe ao presidente do país Sergio Mattarella decidir o que acontece na sequência, mas é difícil imaginar outra coisa diferente de eleições.
Em certo sentido, esta corrida eleitoral iminente na Itália resume-se a uma escolha entre as duas figuras mais visíveis e influentes aqui: Salvini e Francisco.
Salvini representa um impulso nacionalista forte, impulso que, na verdade, nunca abandonou o país desde a era de Mussolini. (Recentemente, o prefeito de Predappio, pequeno município nas cordilheiras dos Apeninos, anunciou planos de abertura do túmulo de Mussolini por durante um ano, o que atrai muitos visitantes e devotos.) Salvini também apela aos conservadores culturais e católicos tradicionais, muitas vezes vindo a público segurando uma Bíblia ou um rosário, ou insistindo que defende os valores cristãos ocidentais.
Salvini é, sobretudo, um herói para o eleitorado que adota o pensamento da “Itália para os italianos”. Já com quatro anos desde o começo da crise europeia de refugiados, catástrofe humanitária pela qual a Itália se viu forçada a carregar um fardo desproporcional devido à sua inaptidão na União Europeia, é compreensível que um eleitorado com este pensamento continue a crescer.
O Papa Francisco – cujas próprias origens, lembremos, remontam à região de Piemonte, no norte do país – encarna a outra Itália.
Ele apela ao evangelho social, que se baseia num sentido de vocação ao cuidado dos fracos e marginalizados, força bastante influente na Itália desde São Francisco e que se cristalizou em termos doutrinais inicialmente com o Papa Leão XII em meados do século XIX. (O minúsculo oratório em meu bairro onde vou às missas dominicais pertence a um movimento leigo fundado no século XX chamado Trabalhadores Silenciosos da Cruz, que se dedicam a cuidar dos enfermos e que decorre diretamente desta tradição. São pessoas que admiram a forma de ser o Papa Francisco.)
Francisco evoca o ethos cosmopolita, sofisticado e aberto da Itália, a ideia de país como uma encruzilhada do mundo, cuja reputação sempre foi motivo de orgulho para os italianos. Francisco apela à generosidade básica destas pessoas, que talvez estejam vivendo tempos difíceis na questão política, mas que, em geral, são medalhistas de ouro quando o assunto é relações humanas.
E o que é mais importante para a política italiana hoje: Francisco representa um sentido de acolhida e compaixão diante da crescente população de migrantes e refugiados no país, lembrando o povo de sua longa história como destino para imigrantes, mas também como fonte de imigração.
No momento, os números sugerem que o partido de Salvini fique com 40% dos votos, o que não basta para governar sozinho, número, porém, bem maior do que qualquer outro partido possa angariar. O partido que compõe a coalizão, o 5 Estrelas, liderado por Luigi Di Maio, tem somente 17%, e o Partido Democrata, de centro-esquerda, 22% aproximadamente.
Aqui, a maioria dos analistas acham que Salvini fará uma coalizão com outros dois partidos de direita. Um é o “Fratelli d’Italia” (Irmãos da Itália), liderado por Giorgia Meloni, principal herdeira da tradição conservadora pós-fascista do país, e o outro é “Popolo della Libertà” (Povo da Liberdade), liderado por Berlusconi. Ambos contam com cerca de 6 e 8% nas pesquisas. Estes números, ao lado dos 40% da Liga, resultam em 52%, mais ou menos.
Projeções como estas, no entanto, estão baseadas na forma como as coisas se encontram antes das campanhas. Muitos italianos já se mostram inquietos com Salvini por ele não ter aguardado até o fim do “ferragosto”, feriado de agosto tradicional no país, para, aí então, propor novas eleições e forçar as classes política e de imprensa a voltar ao trabalho.
Ainda que sem fazer referência específica à situação no país, Francisco concedeu uma entrevista na sexta-feira na qual pareceu comparar o populismo no estilo de Salvini com os nazistas.
“Estou preocupado, porque ouvimos discursos que lembram os de Hitler em 1934. ‘Primeiro nós. Nós… nós…’”. Tais pensamentos, disse o papa, “são assustadores”.
Talvez a variável mais importante seja esta: supondo que Francisco continue com o seu jeito usual com relação à política interna italiana, será que alguém mais – um religioso, talvez, ou um outro representante político – vai surgir como um tradutor eficaz da visão do pontífice?
Outro elemento interessante pode a presença de um novo porta-voz papal desde a última eleição e agora, na pessoa do experiente jornalista italiano Andrea Tornielli como o diretor editorial do Vaticano. Será interessante ver se Tornielli resistirá à tentação de ser arrastado para dentro do ciclo de campanhas – ou, se preferir, se demonstrará alguma resistência.
Esta temporada começou com a revista italiana L’Espresso exibindo uma capa com o Papa Francisco vestido de Zorro, visto que os opositores de Salvini estão aparecendo nos comícios vestidos como os lendários espadachins. A ideia é que Francisco representa a inspiração, o comandante em chefe da Itália que não se alia a Salvini e à Liga.
Por fim, as próximas semanas talvez nos darão um retrato do tamanho que realmente é a “outra Itália”, e de como ela influencia em uma votação.
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O Papa Francisco conseguirá despertar a “outra Itália” em eleições iminentes? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU