23 Julho 2019
"Que a violência geradora da insegurança, porém, um efeito contrário ao direito em cuja defesa o presidente sempre procurou legitimar sua ação, está cada vez mais presente (direcionada, seria melhor dizer) para uma classe de gente trabalhadora e pobre desde que ele assumiu, isso é inquestionável. Coincidência ou não do seu amor pelas armas, o recente crime praticado em Valinhos foi feito por alguém que não esconde a admiração que nutre por ele", escreve Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
Parece que o declarado ódio do presidente Bolsonaro contra o MST, indígenas e quilombolas, entre outras multidões pobres, não está recebendo apoio expresso só de latifundiários brasileiros contrários a reforma agrária, da bancada ruralista que transforma em lei tudo quanto eles exigem, de milicianos, de praticantes do tiro ao alvo, que treinam para eventuais violências a serem executadas contra gente que pense diferente. Entre essas/es, o ódio mira defensoras/es de direitos humanos, do meio-ambiente, da autonomia universitária, da verdadeira independência e da verdadeira imparcialidade do Poder Judiciário, de lideranças dos movimentos populares.
Segundo notícia publicada em vários sítios da internet, dedicados a não disfarçar, nem esconder a violência presente nos conflitos por terra urbana e rural que freqüentemente ensanguentam a nossa história, essa injusta realidade teima em reaparecer. O site G1 do dia 20 deste julho, por exemplo, noticia mais uma triste prova disso. Durante um protesto de agricultoras/es do MST, integrantes da ocupação “Marielle vive”, no município de Valinhos (SP), “O motorista de uma caminhonete avançou sobre os moradores quando eles fecharam a estrada para panfletar em um ato que reivindicava serviços essenciais para a prefeitura na manhã de quinta.”
Morre atropelado, aí então, no dia 18 deste julho, Luís Ferreira da Costa, de 72 anos, mais um pobre sem-terra, lutando por direitos dele e de milhões de outras/os brasileiras/os, que são desrespeitados, para vergonha nossa, com não velado apoio do governo federal, na medida em que considera todo esse povo como bandido, conforme mais de uma das manifestações do presidente Bolsonaro.
Um cinegrafista Carlos Felipe Tavares e mais quatro pessoas saíram feridas. O primeiro, ouvido pelo G1, afirmou: "Eu queria deixar claro que não foi um acidente. Foi um assassinato. Ele quis fazer o que fez", disse. Um vídeo flagrou o crime e o autor do homicídio foi identificado pela Polícia Civil como Leo Luiz Ribeiro, de 60 anos. Sobre esse cidadão, o Brasil de Fato, já na edição do dia seguinte ao do assassinato, mostrou algumas publicações do assassino nas redes sociais, de onde pode se formar ideia das suas opiniões. Lula é comparado com Stalin e Hitler, a foto da ministra Damares Regina Alves é encimada pela manchete do “fim da bolsa ditadura”, em que se revela a rejeição por ela decidida “de 265 pedidos de indenização de pessoas que alegavam ter sido perseguidas pela ditadura militar no Brasil”, entre elas a jornalista Miriam Leitão: “A fotografia dessa tragédia aponta para um assassino que reproduz, em suas redes sociais, o perfil do militante de extrema direita no país. As publicações de Leo Luiz Ribeiro, que é vendedor em um grupo que trabalha com produtos infantis, exaltam o presidente Jair Bolsonaro (PSL) e sua equipe de governo e criminalizam políticos e movimentos de esquerda.”
Qualquer seguidor/a, ou qualquer eleitor/a ainda fiel à postura altamente agressiva do presidente Bolsonaro contra os direitos sociais, há de dizer que toda essa sucessão de fatos que constrangem a nação perante o mundo todo, não passa de gente inconformada e ressentida com as derrotas que vem sofrendo por força do que ele pensa, sente, fala, faz e impõe.
Que a violência geradora da insegurança, porém, um efeito contrário ao direito em cuja defesa o presidente sempre procurou legitimar sua ação, está cada vez mais presente (direcionada, seria melhor dizer) para uma classe de gente trabalhadora e pobre desde que ele assumiu, isso é inquestionável. Coincidência ou não do seu amor pelas armas, o recente crime praticado em Valinhos foi feito por alguém que não esconde a admiração que nutre por ele. Já que este assassino, segundo mais de um meio de comunicação, alega que não percebeu como tudo aconteceu e que só fugiu do local por medo da multidão que reagiu à violência do ocorrido, convém - guardada toda a trágica ironia presente no cinismo desta explicação - examinar-se o fato à luz das leis de trânsito, onde ele mesmo o colocou.
A disputa ferrenha entre motoristas que brigam por espaço e tempo entre si, por ruas e estradas, frequentemente envolvidos em conflitos marcados por violência e até mortes, onde existem todas aquelas possibilidades de se desrespeitar direitos alheios - do tipo excesso de velocidade, desobediência a semáforos, ultrapassagens em locais proibidos, estacionamentos em áreas reservadas - serviu de um dos motivos para um geneticista francês, Stanislaw Lyonnet publicar um livro “A caridade Plenitude da Lei”, onde ele faz uma advertência sobre trânsito que, embora óbvia, parece totalmente esquecida nos dias de hoje, por demasiadamente ingênua e, mesmo por isso, de efeito pratico nenhum:
“Na verdade, se todos estivéssemos preocupados de fazer passar os interesses dos outros na frente do nosso, de não fazer nunca a um outro o que não queremos que nos façam, e em particular interessados em salvaguardar nossa vida e mais ainda a dos outros, poderíamos, talvez, dispensar uma lei de trânsito.” Como se tivesse falando para o assassino do sem-terra, diz o autor: “Infelizmente não é assim, por isso há uma lei de trânsito.”
Daí Lyonnet lembrar uma lição que ouvira da Radio Vaticana: “Nenhuma lei do trânsito, nenhuma medida oficial, nenhuma máquina, por perfeita que seja, nenhuma estrada, por mais eficiente, poderá conferir segurança ao tráfego, enquanto a consciência daquele que está ao volante não tiver atingido a plenitude da maturidade moral”. Ao que o autor se permite criticar: “A “plenitude da maturidade moral” é precisamente um agir moral em virtude da própria vontade, e não só por força de uma obrigação imposta de fora.” {...} Neste caso, a lei externa, bem longe de aparecer aos seus olhos como um peso insuportável, ser-lhe-á bem-vinda, porque, prevenindo-o do perigo, possível ou provável, ajudá-lo-á a satisfazer o que é uma verdadeira exigência do amor.”
Como deve soar estranha uma opinião como essa aos ouvidos de quem matou o velho sem-terra Luís Ferreira da Costa. De que plenitude moral e de que amor fala o seu ídolo presidente Bolsonaro, se até as estreitas vielas que a história conseguiu construir para garantir o trânsito das garantias devidas aos direitos sociais do povo pobre brasileiro, mesmo essas estão sendo literalmente bloqueadas pelas recentes políticas públicas executadas pelo (des)governo brasileiro.
Um assassino de sem-terra, fiel ao discurso de ódio contra toda a gente que vive nessa condição, não mata uma pessoa só, o que já é muito grave. Torna-se cúmplice de toda uma política de extermínio coletivo, senão direta ou indiretamente intencional, com toda a certeza indiferente à sorte de quantas/os já morreram vítimas do mesmo ódio, como o próprio presidente deixou claro, quando votou pelo impeachment da presidente Dilma. Se tudo isso é divulgado como de inspiração divina, a fidelidade a uma tal blasfêmia está nos levando de volta ao tempo da inquisição. O passado brasileiro testemunha, todavia, que Luís Ferreira da Costa não morreu em vão. O protesto da ocupação Marielle vive, como outros que resistiram e ainda resistem ao poder da opressão que ora enfrentam, segue vivo como a mártir que lhe inspirou o nome, acreditando na sua própria libertação, e sendo digno da causa pela qual ela e ele deram as próprias vidas.
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Até um automóvel serve de arma para assassinar sem-terras - Instituto Humanitas Unisinos - IHU