14 Julho 2019
"Alimentar a esperança de se buscar e construir as alternativas ético-políticas indispensáveis ao enfrentamento dessa situação é missão de cada cidadã/o consciente de sua responsabilidade pela proteção e defesa das vítimas desse estado de coisas", escreve Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
Ainda deve estar bem longe de se poder medir todos os efeitos das revelações periódicas que o Intercept vem publicando sobre as conversas extra-processuais que o ex-juiz Sergio Moro manteve com o procurador da República Deltan Dallagnol.
Em tempos de confusão extrema como os que estamos vivendo, a toda hora acrescentando dúvidas, forjadas ou não, sobre o que pode ser verdade ou mentira nesses diálogos, deixa insegura qualquer certeza sobre o fato. O quanto se recebe de notícias, pregações nas redes sociais, avisos e ameaças sobre riscos exagerados para gerar medo sobre qualquer matéria, ainda mais uma explosiva como essa, constitui um desafio diário e estressante para toda a pessoa preocupada em não se deixar enganar.
Versões de um mesmo fato se autoproclamando como as únicas “credíveis” por quem as divulga - como costuma dizer Boaventura de Sousa Santos - são desmentidas horas depois, quando os danos que causaram já não podem mais ser reparados. Estamos entrando numa era de exercício contínuo de paciência, de pesquisa, de comprovação do que diz a “fonte”, se é idônea ou não.
Enquanto todo esse conflito de avaliações críticas sobre a realidade não ultrapassa o bate boca de quem não sabe bem o que diz, mas a vaidade pessoal exige que se afirme opinando sobre tudo, os danos provocados por falas e escritos quase sempre se esvaem logo adiante desmoralizados. Quando esse problema chega a elaboração das leis, porém, das decisões administrativas dos Poderes Públicos e até das sentenças judiciais, se a revelação do que é verdadeiro ou falso não conseguir se estabelecer, aí a injustiça é certa. A lei é sempre lembrada como o remédio necessário para curar esse mal, erigindo-se em dogma indiscutível o de ninguém se encontrar acima dela.
No entanto, é a própria lei, quando a interpretação do seu enunciado se faz para ser aplicada, que se encarrega de colocar em causa esse juízo aparentemente pacífico. O artigo 37 da Constituição Federal o demonstra, exigindo da administração pública o respeito devido ao princípio da moralidade, entre outros. Ora, aí está uma obrigação sobre a qual a capacidade da cultura ideológica de quem aplica essa disposição constitucional pode cumprir um papel devastador sobre a verdade, pois o juízo sobre o que é moral ou imoral pode muito bem considerar uma convicção puramente pessoal sobre o bem e o mal, na certeza equivocada de se encontrar em perfeita sintonia com o pensamento e a moral de todo o mundo.
O presidente Bolsonaro tem sido um exemplo claro dessa possibilidade. Não se esgota sua opinião sobre moralidade, notoriamente discutível, se forem lembradas apenas aquelas que ele faz quando elogia torturadores, quer facilitar o mais possível o acesso das pessoas à utilização de armas, despreza quilombolas e indígenas, generaliza sem-terras pobres como bandidos, dá apoio à aplicação indiscriminada de venenos sobre a terra, quer nomear dois ministros evangélicos para o Supremo Tribunal Federal, deixa evidente o seu machismo até em relação a uma filha, já foi condenado por um insulto infamante praticado contra a deputada Maria do Rosario. O que existe, concretamente, de moral pessoal e ética pública nesse tipo de conduta?
Sobre a verdadeira oportunidade de implementação da sua política econômica, do retrocesso sob o qual estão sofrendo os direitos sociais “garantidos” (?) pela Constituição Federal, do quanto a reforma da previdência não pode servir de prioridade justificativa, não faltam opiniões críticas contrárias e qualificadas. A edição da revista IHU On line de 6 de junho passado entrevistou entre outras conhecidas autoridades em economia e direito, Luiz Gonzaga Belluzzo, Guilherme Delgado e Luiz Carlos Bresser Pereira. O tema proposto à análise de cada um pretendeu obter resposta sobre as “possibilidades de uma economia que faz viver e não mata.”
O primeiro (Belluzzo), sob o título de “O “velho capitalismo” e seu fôlego para a dominação do tempo e do espaço”, atingiu em cheio não só o calcanhar de Aquiles da política econômica neoliberal e privatizante do atual (des)governo sob o qual vivemos, como mostrou de que forma, em vez de aumentar a segurança da população - um verdadeiro mantra responsável pela eleição do presidente Bolsonaro - tem efeito contrário, por não se opor às causas dessa insegurança:
“A intensificação da concorrência entre as empresas no espaço global não só acelerou o processo de financeirização e concentração da riqueza e da renda, como submeteu os cidadãos às angústias da insegurança.” Com base em um documento da Congregação para a doutrina da Fé, aprovado pelo Papa Francisco em 2015, transcreveu Belluzzo o seguinte: “Está em jogo o autêntico bem-estar dos homens e das mulheres do nosso planeta, os quais correm o risco de serem confinados de maneira crescente sempre mais às margens, se não de serem “excluídos e descartados do progresso ... Se queremos o bem real para os homens, o dinheiro deve servir e não governar.”
O segundo, (Guilherme), sob o título de “Existem alternativas para o totalitarismo do mercado”, além de sublinhar o fato notório de que “a economia convencional não apresenta fundamentação ética universalmente reconhecível”, denuncia outra evidência sobre a qual essa mesma economia não tem resposta para a urgência do problema que depende (e não raro cria, seria lícito acrescentar):
“A questão de desemprego e do desalento no mercado de trabalho, não pode esperar por muito tempo”, e “na economia de serviços é relevante recuperar o conceito de atendimento de necessidades básicas, pondo destaque à promoção dos cuidados interpessoais. Na economia monetária e financeira, conceituar os critérios para tratamento das dívidas e da guarda e gestão de tesouros humanos, superando o cassino global em que se converteu a economia financeira.”
O terceiro (Bresser-Pereira), sob o título de “Novo desenvolvimentismo e “raposa fora do galinheiro”; estratégias para sair da crise”, identifica os “rentistas com poder político”, avisando:
“Além de o sistema financeiro ter o poder inerente ao fato que as instituições financeiras criam moeda e de seus agentes exercerem o papel de ideólogos do capitalismo rentista, esses financistas passaram a ter poder político pessoal, ocupando os ministérios de finanças e os bancos centrais. Dessa maneira, de sistema a ser regulado, o sistema financeiro e seus financistas passaram a ser reguladores do sistema econômico, desregulando-o, prevatizando-o e liberalizando-o. Repetiu-se, assim, a história da raposa ser colocada para cuidar do galinheiro.”
Não por acaso, o ministro Paulo Guedes se empenhou tanto em garantir a aprovação da reforma da previdência, sabidamente uma das maiores fontes futuras de muito dinheiro para os Bancos, a partir da sua aprovação.
O que tudo isso tudo tem a ver com as conversas de Sergio Moro com o procurador Deltan Dallagnol? A completa irrelevância do que for comprovado como imoral, ilegal e inconstitucional. Pode até acontecer que tudo o que os dois fizeram seja anulado juridicamente, mas para um sistema socioeconômico regido por interesse financeiro, nada importa a não ser que a sua própria conveniência de ganhar dinheiro, seja prejudicada. Embora a “reta intenção” própria da moral, e muito mais exigível da ética pública, consiga ser desvelada como falsa nesse episódio, e em praticamente todas as políticas atualmente partidas de Brasília, imorais, classistas, integristas, neocoloniais, aos seus efeitos anti sociais ficará reservada apenas a indiferença dos poderes que realmente mandam.
Alimentar a esperança de se buscar e construir as alternativas ético-políticas indispensáveis ao enfrentamento dessa situação é missão de cada cidadã/o consciente de sua responsabilidade pela proteção e defesa das vítimas desse estado de coisas. Isso pode começar com os meios de conscientização, inclusive daquelas maiorias enganadas, contaminadas se não até a demência, pelo menos ao fanatismo inspirador das mentiras de que têm sido vítimas.
A nossa história já conheceu mais derrotas do que vitórias de resistência social, de desobediência civil à opressão, tanto privada quanto pública. Respeitado melhor juízo, é justamente por isso que vale a pena tentar de novo, de forma coletiva, organizada, disposta a não dar qualquer chance à acomodação vil e ao medo covarde.
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Mentiras invadindo mentes podem criar maiorias dementes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU