04 Junho 2019
"Se um bem é de uso comum do povo, ele é de interesse público, de todas as pessoas, portanto. Sua defesa fica obrigatoriamente dependente de uma política de Estado, não sujeita ao arbítrio de uma política episódica, de uma só gestão governamental. Quando essa patrocina um interesse privado direta ou indiretamente, potencialmente ou não, que se comprove contrário àquele uso, infringe a Constituição Federal", escreve Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
As políticas governamentais de um determinado Estado podem levá-lo a dois julgamentos contrários da opinião pública, dividindo a sociedade onde ela se expressa. Para uma parte desta, restrita ao que se pode chamar de oposição, considerá-lo desprestigiado e desmoralizado, indigno de ser respeitado e obedecido; para outra, restrita ao que se denomina aliada, merecedor de firme sustentação das suas políticas, seus programas administrativos, sem qualquer reserva à contestação.
O Brasil está vivendo sob esta polarização com claros sinais de que ela vai aumentar. Entre as muitas causas que podem ser arroladas para justificar a primeira dessas posições críticas, talvez a mais notória pode ser identificada pela comprovada opção governamental em sacrificar os direitos sociais de uma classe em favor dos interesses exclusivos de outra. Uma democracia, mesmo aquela que se prenda a um Estado fiel ao liberalismo, como o atual ministro da Fazenda tanto enfatiza, perde toda a sua legitimidade, quando revela essa parcialidade, assumindo a proteção e a defesa de determinados interesses econômicos, pois esses, quando não são hostis aos direitos sociais, lhes reservam apenas indiferença.
Os exemplos dessa disfunção promotora de desigualdade inconstitucional são notórios, verificados a partir até das próprias frações de povo que elegeram o atual (des)governo sob o qual vive o país, e que continuam lhe dando apoio. O agronegócio exportador, proprietário de grandes extensões de terra por aqui, conhecido grileiro de grande parte delas, as poderosas confederações empresariais, a maioria da classe média e dos militares, deram o seu voto a quem hoje preside a administração pública da União. Segundo aquela porção majoritária da mídia e das redes sociais, que também contribuiu para a vitória eleitoral dos atuais administradores, isso teria sido motivado, principalmente, pelo amor à ética, já que todo o recente passado do Poder Público brasileiro teria provado ser corrupto.
Por mais visíveis e convincentes já se mostrem agora os desatinos dessa escolha - considerando-se boa parte do Ministério atual da República não isenta de suspeita dos mesmos e até dos piores vícios morais de que eram acusados os governos anteriores - já existe dificuldade grande de se encontrar um Ministério sequer que esteja fazendo o que seria minimamente razoável de se esperar. A partir de uma administração que se dizia capaz de salvar o Brasil da crise sob a qual está padecendo, a balbúrdia (!...) atualmente reinante lá, para se lembrar uma palavra cara ao ministro da Educação, é total.
Mesmo assim, o poder da dominação ideológica classista que inspirou a eleição passada ainda consegue - sabe-se lá até quando - manter entrincheirado um outro tipo de milícia(!) a seu serviço. Usado e abusado por fake news que frequentam as redes sociais, esse poder se arma (!) para enfrentar qualquer questionamento contrário. De preferência, sem dar resposta, utiliza a saída mais utilizada por quem não a possui: afirma que tudo parte “da esquerda”, como se isso constituísse um crime.
Onde ele não esperava, talvez, mostrar a sua vulnerabilidade, aparece agora com a discussão que começa a tomar conta do país sobre a defesa do nosso meio ambiente, a tragédia de Brumadinho servindo de motivo mais do que justificado para isso. Uma edição especial da Pastoral da Terra, em boa parte relacionada com essa matéria, fez um levantamento de projetos de lei tramitando no Congresso Nacional entre 1996 e 2018, sobre o uso da nossa (?) terra, 99 deles propostos entre 2015 e 2018: 44 afetam terras indígenas, 40 se referem ao licenciamento ambiental, 36 pretendem liberar mais agrotóxicos, 24 ampliam áreas de mineração. Bastam esses números para se concluir que o Poder Executivo da União está retomando, com muito interesse, por sua base congressual aliada, especialmente a composta pela bancada ruralista, a transformação em lei dessas propostas. É suficiente levar-se em conta o número de agrotóxicos já liberados desde janeiro e a confusão gerada em torno da Medida Provisória que pretende modificar o Código Florestal.
É muito pouco provável que o tão proclamado respeito à lei, sempre exigido para liberar o capital, o mercado, a economia, quanto postergado permanentemente para garantir eficácia aos direitos sociais, esteja sendo cogitado pelo Congresso e pela administração pública da União para dar seguimento às suas políticas de “desenvolvimento econômico” brasileiro. O artigo 225 da Constituição Federal, por exemplo, determina:
“Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”
Se um bem é de uso comum do povo, ele é de interesse público, de todas as pessoas, portanto. Sua defesa fica obrigatoriamente dependente de uma política de Estado, não sujeita ao arbítrio de uma política episódica, de uma só gestão governamental. Quando essa patrocina um interesse privado direta ou indiretamente, potencialmente ou não, que se comprove contrário àquele uso, infringe a Constituição Federal. Este risco se encontra presente no uso de agrotóxicos utilizados para certas culturas agrícolas, que acaba prejudicando a produção de outras, como acontece entre o aplicado nas lavouras de soja vizinhas às videiras, por exemplo, ora em aceso debate no Rio Grande do Sul, como se não bastasse tudo o que aqui ainda se acha envolto em polêmica sobre o Mina Guaíba.
Um editorial da Zero Hora deste 3 de junho, intitulado “Conciliação Óbvia” tenta colocar panos quentes sobre feridas iguais ou semelhantes a essas, fechando sua opinião assim: “O campo e os seus negócios encadeados formam uma ilha de prosperidade em um país que pena para sair da crise. Se crescer a percepção de que o governo Jair Bolsonaro não tem compromisso com a preservação ambiental, os produtores brasileiros, incluindo os do Rio Grande do Sul, correrão o risco de perder mercados significativos no Exterior.”
Ora, o meio ambiente é muito mais do que isso, condição essencial à vida de toda a gente e de toda a terra, não se reduzindo assim a uma preocupada recomendação ao presidente, útil apenas ao capital e ao mercado. Se correm o risco de perder parte dos seus lucros, sejam advertidos: Quem pariu este governo que o embale, e não pretenda impor à Constituição federal, a terra e ao seu povo, a cumplicidade dos crimes ambientais que praticaram ontem, estão planejando continuar fazendo hoje, inclusive por força de novas leis e, se puderem, vão continuar comprometendo o nosso amanhã.
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A Constituição não pode se reduzir a regimento interno do capital - Instituto Humanitas Unisinos - IHU