23 Mai 2019
Cada frase do recente artigo de James Carroll (1) na revista The Atlantic, “Abolish the Priesthood”, é teologicamente inepto, historicamente anacrônico, autorreferencial, ou todos os três. Nada disso é uma surpresa.
O comentário é de Michael Sean Winters, publicado por National Catholic Reporter, 22-05-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A adoção da teologia de Carroll é completamente oportunista. Em um ponto, ele sente nostalgia da Igreja pré-constantiniana dos primeiros seguidores de Jesus, mas depois afirma: “Quando a imaginação católica, influenciada por Agostinho, demonizou a inquietação sexual construída sobre a condição humana, a autonegação foi apresentada como o caminho para a felicidade. Mas a renúncia sexual como um padrão ético entrou em colapso entre os católicos, não por causa das pressões de uma modernidade ‘secular’ hedonista, mas por causa de seu peso desumano e irracional”.
Mas é nos próprios Evangelhos que Jesus defende a abnegação, encoraja os solteiros a permanecerem celibatários e diz a seus seguidores que tomem a sua cruz e o sigam. Seguir Jesus pode levar a muitos caminhos diferentes, mas nenhum deles tem a ver com o liberacionismo sexual [sexual liberationism].
Voltando à história, Carroll repete o tipo de afirmações que há muito tempo enchem os seus livros e artigos. Por exemplo, ele escreve:
“As origens do clericalismo não estão nos Evangelhos, mas sim nas atitudes e nos organogramas do fim do Império Romano. (...) Mas, sob o imperador Constantino, no século IV, o cristianismo efetivamente se tornou a religião imperial e assumiu as armadilhas do próprio império. Uma diocese era originalmente uma unidade administrativa romana. Uma basílica, um salão monumental onde o imperador se sentava com majestade, tornou-se um lugar de culto. Um grupo diversificado e descentralizado de igrejas foi transformado em uma instituição quase imperial – centralizada e hierárquica, em que o bispo de Roma reina como um monarca. Os concílios da Igreja definiam um conjunto único de crenças como ortodoxas, e tudo mais, como heresia.”
Ele dá um passo em falso aí. A adoção de algumas das armadilhas da Roma imperial não foi simplesmente imposta à Igreja como um acréscimo alienígena, e elas também não foram adotadas como tal por clérigos famintos por poder. Os cristãos do século IV, assim como os cristãos dos nossos dias, tentam entender o sentido da autorrevelação de Deus em Jesus Cristo. Eles se beneficiam das categorias, ideias e experiências que conhecem. Se você quiser construir uma bela igreja para expressar seu senso de admiração diante das admiráveis afirmações da obra de Deus no meio do Seu povo, e você viu as basílicas romanas e as acha lindas, o que há de errado em construir igrejas de maneira semelhante?
Mais adiante, Carroll afirma no artigo: “Ironicamente, a Igreja, que patrocinou o meu trabalho pelos direitos civis e estimulou meu engajamento com o movimento antiguerra, me fez um radical”. Por que ele pode entrelaçar a sua fé com pontos de referência e compromissos mundanos, mas os cristãos do século IV não podem fazer o mesmo?
Para enfrentar essa questão, Carrol teria que tomar uma distância crítica de si mesmo, e ele não pode fazer isso. Considerem-se as frases que seguem às que acabamos de citar. Ele escreve: “Eu era o capelão católico da Universidade de Boston, trabalhando com objetores e manifestantes antiguerra, e logo me vi em conflito com a hierarquia católica conservadora. Foi só gradualmente que eu percebi que havia uma trágica falha bem no interior da instituição para a qual eu tinha entregado a minha vida e que tinha a ver com o próprio sacerdócio. O ‘meu’ sacerdócio”.
O sacerdócio de quem? O sacerdócio cristão – o do clero e o dos batizados – é participar do sacerdócio de Jesus Cristo. Isso é teologia básica, seja ela liberal ou conservadora. Eu concordo com Carroll que o clericalismo está na raiz da crise dos abusos sexuais do clero, mas a ideia de que ele é indelével é uma ideia para a qual ele não oferece nenhum argumento que não envolvam o pronome da primeira pessoa do singular “eu”.
Carroll nunca entendeu o Concílio Vaticano II. Para ele, era tudo aggiornamento e nada de ressourcement. Ele parece não entender como a doutrina se desenvolve, nem como ela se relaciona com a história. Ele também não compreende que, para a Igreja Católica, embora ela deva ser historicamente consciente, a história relevante é também e sempre a história da salvação. A Igreja não pode ficar presa no tempo, mas também não pode simplesmente fazer as coisas à medida que avança. E Carroll parece não reconhecer a horrenda escravidão de ser uma criança do seu próprio tempo.
Seus ataques contra o Papa Francisco são um exercício de ignorância. Ele disse que a resposta de Francisco à confusão dos abusos sexuais clericais no ano passado foi “um brando pedido para uma reunião de quatro dias entre os principais bispos, a ser realizada em Roma sob a rubrica ‘A Proteção dos Menores na Igreja’. Isso foi como colocar os chefões da máfia no comando de uma comissão criminal”.
A reunião foi importante, resultando em novas políticas e procedimentos surpreendentemente rápidos para responsabilizar os bispos, implementando políticas de proteção às crianças em todo o mundo, exigindo que todos os clérigos e outros ministros denunciem o abuso sexual e qualquer esforço para acobertá-lo.
Isso é “brando”? Ele realmente está comparando Francisco com um mafioso? O cardeal Sean O’Malley? O cardeal Blase Cupich? O arcebispo Charles Scicluna? Será que eu perdi a parte de suas carreiras quando eles agiram como criminosos?
Carroll repete a mentira de que o ex-cardeal Theodore McCarrick era um “aliado próximo” de Francisco. Ele lamenta que o papa respondeu às acusações do ex-arcebispo Carlo Maria Viganò com silêncio, mas, enquanto o papa continuava em silêncio, ele encorajou os jornalistas no avião de volta da Irlanda a investigar as alegações de Viganò. Carroll fez alguma investigação? Eu fiz. As acusações de Viganò, na maior parte, eram bobagens.
A maior diferença entre Carroll e o papa é que Carroll essencialmente não oferece nenhum caminho à frente exceto – você adivinhou – que todos os católicos se tornem como ele, entram no “exílio interno”. Ele quer que a Igreja não pregue Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado, mas sim James Carroll, e James Carroll insatisfeito. Esse não é um plano para o futuro. Tudo o que ele faz nesse artigo é rasgar as coisas; é um exemplo de iconoclasma pueril.
Francisco, de muitas maneiras diferentes, propôs três caminhos para a fé católica: redescobrir a centralidade da misericórdia no querigma do Evangelho; ir às periferias para experimentar o potencial do Evangelho para a autêntica libertação; e adotar mais estruturas sinodais de governança eclesial. Todos os três estão enraizados nas antigas tradições da Igreja. Todos são fiéis à tradição e fecundos para a evangelização. Não são autorreferenciais.
Meu colega, o padre jesuíta James Martin, respondeu ao artigo de Carroll primeiramente observando, corretamente, que a The Atlantic nunca, nem em um milhão de anos, publicaria um artigo pedindo a abolição dos rabinos ou dos imãs. Ele compartilha o meu ceticismo em relação ao argumento de Carroll:
“Se esse é o ‘mergulho profundo’ da The Atlantic na crise dos abusos do clero, isso representa um desserviço aos leitores e ao público geral. Essencialmente, a longa (e, reconhecidamente, em alguns pontos, cuidadosa) análise da crise dos abusos do clero por parte de Carroll pode ser resumida assim: o problema são os padres. Ele afirma a sua tese com uma concisão admirável em um ponto: ‘A própria noção de sacerdócio é tóxica’. Usando o velho ditado de que aquilo que é facilmente afirmado é facilmente negado, eu responderia: ‘Não, não é’.”
Martin é mais gentil do que eu. Eu sempre achei os escritos de Carroll sobre a fé católica solipsistas e de má qualidade. Ele usou a sua visão distorcida da Igreja para envenenar as mentes de muitas pessoas instruídas contra a Igreja, pessoas que não a conhecem melhor. Agora, seu texto já se tornou enfadonho. Como muitos autores “boomers”, ele salta de um capricho para uma ontologia em um piscar de olhos: o sacerdócio não funciona para Carroll, então o sacerdócio é o problema e deve ser abolido. Seria triste se ele acreditasse nisso e não publicasse esse lixo. Como ele o publicou, a sua influência é perniciosa.
1- James Carrol é um escritor americano, historiador e jornalista. Católico romano, ele escreveu extensamente sobre suas experiências no seminário e como padre, e publicou, além de romances, livros sobre religião e história. (Nota de IHU On-Line)
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Pedido para ''abolir o sacerdócio'' é equivocado e enfadonho - Instituto Humanitas Unisinos - IHU