30 Abril 2019
“Lamento dizer que a Dominus Iesus desatou, de alguma maneira, esta onda de violência entre religiões e já provocou as violações sobretudo de tipo clerical dentro da Igreja por seu tom em que reverberam os acordes do messianismo, ritmos do carreirismo e ares de superioridade institucional”, escreve Macario Ofilada, teólogo filipino, em artigo publicado por Religión Digital, 28-04-2019. A tradução é do Cepat.
A horrível série de atentados no Sri Lanka, no Domingo de Páscoa de 2019, me fez pensar muito. Certamente, ocorrerão mais reações violentas. Que Deus nos apanhe confessados. Já provocou a ira do Cardeal de Colombo, que, segundo os meios de comunicação, pediu para que os autores sejam punidos sem piedade por ter se portado como animais. Compreendo-o.
Esta carnificina inútil e deplorável me fez arrepiar os pelos em fúria, em tristeza, em amargura. A Páscoa é a celebração da vida. Converteu-se em um massacre, em um triunfo aparente da violência. Em minhas reflexões nestes dias, vieram-me à mente as palavras lapidares do teólogo dissidente suíço Hans Kung: “Não há paz sem paz de religiões”.
Eu não sou um admirador deste personagem, mas é necessário reconhecer a beleza literária de seus escritos teológicos e o impacto dos mesmos – embora careça de originalidade. Em seu caso, é a força expressiva e sugestiva que anima seu pensamento.
Em sua longa história, nossa igreja, lamentavelmente, fomentou a violência religiosa. E acredito que uma mostra recente deste fato é a Declaração da Congregação para a Doutrina da Fé, em 2000, aprovada e assinada pelo então prefeito, o cardeal Joseph Ratzinger.
Um dos principais redatores desta declaração é o atual prelado do Opus Dei, dom Fernando Ocáriz, coautor de um excelente manual de cristologia dogmática, que voltei a ler pelo menos dez vezes por sua densidade e coerência. É admirável a reafirmação da cristologia tradicional da igreja, mas este documento – escrito com lógica impecável – falhou em algo fundamental: na caridade. A raiz cristológica será impecável – falhou em algo fundamental: na caridade. A raiz cristológica é irrepreensível, mas sua visão soteriológica e eclesiológica é defeituosa. Este fato lamentável anula a grandeza de todos os esforços intelectuais com os quais se elaborou esta declaração.
Não quero repetir o que afirma esta declaração (que é uma traição ao espírito ecumênico e abarcador do Concílio Vaticano II). Não só me dói recordar, como também me envergonho de tudo isso. Sobretudo, a esta altura da época da globalização em que, graças em grande parte aos meios de comunicação, nos sentimos mais unidos aos membros da mesma raça humana.
Consequentemente, eu fiz eco às críticas a este documento, não só dos ortodoxos, anglicanos e outros grupos, mas também de respeitados teólogos católicos como o cardeal Walter Kasper e outras figuras próceres como o P. Timothy Radcliffe.
Graças a estes autores não perdi a esperança na Igreja Católica quando alguns católicos me marginalizaram por ser muito caridoso com nossos irmãos ortodoxos, anglicanos, protestantes e não-cristãos.
Após minha primeira leitura da Dominus Iesus, fiz as seguintes perguntas, e as sigo fazendo até hoje: “Quem somos nós para dizer que os corpos protestantes não são igrejas em sentido estrito e que têm defeitos? Por que este ar de superioridade excludente e exclusivista? A que se deve este medo ou falta de respeito a religiões não-cristãs? A que se deve este medo, próprio de pessoas com transtornos mentais, às perspectivas relativas?
É inevitável que haja percepções individuais e relativas, dado que a vivência da realidade se torna concreta em vivências distintas, com perspectivas diferentes, prismas nem sempre convergentes, situações sempre não similares. Então, por que não se pode encontrar a Deus e seu plano salvífico em tradições não-cristãs? Nós, católicos, podemos monopolizar a salvação, sendo um dom gratuito oferecido por Deus a todos?
Jesus Cristo, o Filho de Deus e Redentor dos Homens, não pensaria deste modo. Por que queremos reduzir a verdadeira eclesialidade a um conceito radicalmente clerical, insistindo em um episcopado válido, em uma ortodoxia que muitas vezes se distancia da ortopráxis? Por que nós, católicos, devemos pensar que somos os melhores, nos identificar como seres superiores, em vez de nos identificar com os menores, assim como fez Jesus? Porque queremos nos extraviar do que, há tempo, disse a Lumen Gentium, que elementos da igreja fundada por Jesus Cristo subsiste na Igreja Católica e em outros corpos cristãos? Não queremos partir o pão com eles? Estamos certos de que Jesus Cristo deseja continuar partindo o pão conosco, se seguimos excluindo os demais de sua mesa?
O que estes ares de superioridade, de exclusivismo, de piedade fechada em si mesma conseguem é reduzir a eclesialidade ou a catolicidade ao sinal visível que é o Papa. São elementos no pensamento ultraplatônico (ou ultradistante) da realidade cotidiana e compartilhada de Joseph Ratzinger. Este é o mesmo que, desde 11 de fevereiro de 2013, deixou de reinar como Bento XVI. Sua manifestação mais recente é um artigo deplorável em uma publicação alemã para sacerdotes.
Uma consequência lamentável de tais tipos de delineamentos é a violência contra os outros, contra as demais religiões, provocando assim uma onda interminável de violência religiosa, não só entre cristãos e outras tradições, mas entre cristãos também.
Esta falta de caridade - e a verdade só pode ser verdadeira se é caridosa e a caridade é caridosa apenas se é verdadeira - faz com que uma verdade, por mais objetiva que seja, se reduza à grosseria de intelectuais prepotentes que se acreditam no direito de monopolizar a verdade.
Pior ainda é quando esta mesma grosseria joga mais lenha na fogueira já ardente da violência religiosa projetada para os outros, não só no que se viveu no Sri Lanka, há alguns dias, mas no que está ocorrendo dentro da própria Igreja Católica com os abusos sexuais.
A violência religiosa nasce do poder institucionalizado e do clericalismo católico com suas pretensões de messianismo, carreirismo e insistência na superioridade de uma hierarquia ou estado ontológico específico, frente à assembleia que é o Povo de Deus.
A violência religiosa é fruto, e por sua vez raiz, da atitude religiosa que a Dominus Iesus e seus autores e propagadores defendem. Seu pensamento intolerante e anticaridoso continua fazendo estragos na vida eclesial que precisa se curar, assim como curar os feridos que temos em nossos seminários, lugares de formação e paróquias.
É preciso cicatrizar os feridos dentro e fora da comunhão eclesial visível, ao mesmo tempo, projetar uma imagem de credibilidade, confiabilidade, respeitabilidade neste mundo de falsidades, desqualificações e intolerâncias.
A verdadeira igreja fundada por Cristo não é um estado histórico fixo, mas, sim, uma vocação – uma constante conversão e renovação, cujo dinamismo, origem e caminho é a caridade – de que a verdade se manifeste acima de partidarismos que ferem, tergiversações ideológicas e abusos desumanos.
A Igreja precisa caminhar no mundo. O mundo precisa caminhar como igreja, mas não como estrutura monolítica, ao contrário, com diversos rostos que refletem com vozes (às vezes discordantes, mas sempre ao uníssono) o rosto de Jesus Cristo, a voz do Bom Pastor que quer levar suas ovelhas a pastos verdes e prósperos, longe dos lobos vorazes, perto das fontes vivificadoras que também é Chama de Amor Viva, como disse São João da Cruz, o Espírito de Deus, a mesmíssima Vida de Deus derramada nos homens.
Dominus Iesus é um documento cristológico formidável e colossal, mas não é cristão. Antes de tudo, deve vir a caridade. Esta apenas se vive no ecumenismo, na tolerância, na fraternidade com o outro.
Lamento dizer que a Dominus Iesus desatou, de alguma maneira, esta onda de violência entre religiões e já provocou as violações sobretudo de tipo clerical dentro da Igreja por seu tom em que reverberam os acordes do messianismo, ritmos do carreirismo e ares de superioridade institucional.
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“‘Dominus Iesus’ desatou esta onda de violência entre religiões”. Artigo de Macario Ofilada, teólogo filipino - Instituto Humanitas Unisinos - IHU