Exercícios de liberdade. Artigo de Ivânia Vieira

Mulheres indígenas. | Foto: Karina Zambrana/ONU Brasil, Flickr

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08 Março 2019

"Reafirmamos a defesa dos direitos, de acesso aos benefícios a todas e todos, balizada pela equidade como tradução efetiva de cidadania e do caminho que nos tornará cada vez mais aptas e aptos para construir e assumir outra sociedade onde o diferente seja aceito e seja livre", escreve Ivânia Vieira, jornalista, professora da Faculdade de Informação e Comunicação da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), doutora em Comunicação, articulista no jornal A Crítica de Manaus, co-fundadora do Fórum de Mulheres Afroameríndias e Caribenhas e do Movimento de Mulheres Solidárias do Amazonas (Musas).

Eis o artigo.

Em julho de 2012, mulheres e homens, de todas as idades, ocuparam dois auditórios e o hall do Instituto de Ciências Humanas e Letras (ICHL) da Universidade Federal do Amazonas (Ufam). Somavam mais de 300 pessoas reunidas e espalhadas pelos amplos espaços do campus da universidade, em Manaus. Chamavam atenção pelas roupas, profusão de acessórios, pelo mosaico de peles e rostos formando uma grande tela real, ativa, em pleno movimento por direitos e reafirmação do respeito às pessoas e as outras vidas não humanas.

Mulheres estavam à frente do tecimento da teia geradora do 1º Encontro de Mulheres Afro-Ameríndias e Caribenhas. Sete anos depois, o percurso afro-ameríndio e caribenho das mulheres ganhou outros contornos e reafirma a complexidade desse jeito de caminhar: Na universidade, a reestruturação física pôs fim ao velho e gigantesco ICHL (onde vivi a primeira e rica fase de estudante universitária) e deu origem ao Instituto de Filosofia, Ciências Humanas e Sociais (IFCHS), os outros cursos fora desse arco geraram outras unidades acadêmicas que têm a chance de promover espaços às novas interlocuções. O Fórum de Mulheres Afro-Ameríndia e Caribenhas, criado como resposta à inquietação de mulheres que queriam juntar as raízes afro, indígena e caribenha e constituir um espaço aberto para refletir e agir, reafirmou o 25 de julho como marco pan-amazônico dessa empreitada. Seguiu com os encontros, até a quarta versão, em outros ambientes e formatos. As sementes lançadas em 2012 brotam em ambientes sobre os quais ainda necessitamos refletir, compreender e, para isso, perceber a extensão e o leque das andanças feitas. Eis alguns dos passos dados:

As mulheres indígenas ampliaram as formas de organização representativa, ao criarem, em 2017, a Rede de Mulheres Indígenas do Estado do Amazonas (Makira-Êta) e, nesse mesmo ano, realizaram o primeiro encontro. Este ano, em abril, acontecerá mais um encontro de mulheres indígenas, mobilizado pela Makira-Êta. Na pauta, a luta das mulheres pelos direitos indígenas, garantia dos territórios, da água e das cosmologias indígenas. No meio urbano, jovens mulheres organizaram coletivos diversos onde questões étnico-raciais, homofóbicas e das outras formas de violência em vigência no Brasil estão sendo debatidas e enfrentadas a partir de um trançado de ações. Nas atividades do 8 de março deste ano, uma série de vídeos, onde mulheres ativistas se manifestam e convocam outras pessoas à luta, está sendo exibida nas redes sociais. Duas jovens, Jéssica e Raquel, são as responsáveis pelos vídeos, por meio de uma proposta maior em execução a partir do Projeto Ponta de Lança, um coletivo de produção audiovisual popular, constituído por mulheres dispostas a realizar outra comunicação.

Pedagogia das lutas

Desenterrar o que foi narrado, fazer memória e re-memória do mundo vivido e compreender os acontecimentos são instrumentos cada vez mais reivindicados pedagogicamente nos arranjos da grande luta guarda-chuva das lutas cotidianas das mulheres afro-ameríndia e caribenha. É exercício acadêmico e de rua. E aqui o faço a partir desse pedacinho da Pan-Amazônia onde iniciou o diálogo entre brasileiras, da Amazônia, venezuelanas, bolivianas e cubanas. Um diálogo fundamental na ampliação da visibilidade das lutas feministas e de mulheres nessa parte do mundo. A construção do Fórum de Mulheres Afro-Ameríndia e Caribenha deve continuar. Nele agem substâncias das resistências em rosto de mulheres.

No pulsar dessas lutas são traduzidas as batalhas travadas pelos povos pan-amazônicos pelo direito de existir; de ter suas culturas valorizadas; de garantir as terras, os rios, as florestas; de viver as suas culturas. As lutas das mulheres incorporam e abrigam as lutas dos povos. São as mulheres o corpo condutor da resiliência, do gesto de convocação, do passo dado para prosseguir no caminhar que se faz há séculos. As mulheres são esteio e pontes.

Esse é um dos aspectos posto em evidência, como aprendizado, pelo Fórum de Mulheres Afro-Ameríndia e Caribenha. O 1º Encontro em 2012 demonstrou o quanto precisamos mergulhar nesses rios e viver esses territórios para, em sintonia pan-amazônica, elaborar mais narrativas e envolver com fios mais fortes os espaços acadêmicos numa dimensão criativa dos conceitos que alimentam a produção do conhecimento.

Nessa direção, ao pensar sobre os desafios das mulheres neste ano de 2019, releio a “Carta Compromisso” do 1º Encontro de Mulheres Afro-Ameríndias e Caribenhas. As propostas formuladas há sete anos ganham emergência na pauta deste 8 de Março. O Brasil de hoje as atualiza e pede leitura atenciosa sobre o que compôs o olhar das e dos participantes. Eis trechos do documento:

“Nós, mulheres e homens, acolhidas e acolhidos neste 25 de julho de 2012 pelas matas, as águas e as mentes da Universidade Federal do Amazonas, no Instituto de Ciências Humanas e Letras (ICHL), celebramos a resistência da Mulher Afro-ameríndia e Caribenha e exaltamos a luta contra todas as desigualdades de gênero e étnico-raciais como forma de ampliar e fortalecer as organizações de mulheres, compreendidas como fonte de vida e perpetuação dos valores, das culturas e da natureza.

A relação com a natureza não é só a matricialidade feminina, mas as responsabilidades de gênero na economia familiar, criadas por meio da divisão social do trabalho, da distribuição do poder e da propriedade. Tudo isso nos leva a defender como tarefas necessárias e urgentes, assumir novas práticas de relação de gênero e de relação com a natureza.

As estratégias de enfrentamento ao racismo, sexismo, discriminação, preconceito, desigualdades raciais e sociais já não podem deixar de analisar as alterações ambientais como causa e consequência de relações de poder e de uma cultura do egoísmo e do desrespeito com o diferente, com tudo o que está fora do nosso eu. Compreendemos que o nosso eu só se completa com o outro para que aconteça a vida plena conjugada no plural: Nós! (...) discutimos, em Manaus, os esquemas de opressão e de abuso que servem para manter, na sociedade, as chamadas minorias étnico-raciais, as primeiras que são afetadas quando a natureza é desrespeitada, é agredida.

(...) Nos contrapomos à “economia verde”, por entendê-la como uma das expressões da atual fase financeira do capitalismo que também se utiliza de velhos e novos mecanismos, tais como o aprofundamento do endividamento público-privado, o estímulo desenfreado ao consumo, a apropriação e concentração das novas tecnologias, dos mercados de carbono e da biodiversidade, a grilagem e estrangeirização de terras e as parcerias público-privadas, entre outros.

Acreditamos que podemos sim encontrar em nossos povos, empoderando-nos da nossa história, dos nossos costumes, dos conhecimentos, das práticas e dos sistemas produtivos, as alternativas que nos façam ser parte de uma nova ordem e de uma nova sociedade. Nossos povos devem ter vida assegurada dignamente, revalorizados e visibilizados como parte do espaço pan-amazônico de ontem, de hoje e do futuro.

A defesa dos espaços públicos, nos municípios, com gestão democrática e participação popular, a economia cooperativa e solidaria, a soberania alimentar, um novo paradigma de produção, distribuição e consumo, a mudança da matriz energética, são alguns dos exemplos de alternativas reais frente ao atual sistema que gerencia a vida humana e os bens da Natureza na América Latina, no Caribe e em todo o mundo.

Reafirmamos a defesa dos direitos, de acesso aos benefícios a todas e todos, balizada pela equidade como tradução efetiva de cidadania e do caminho que nos tornará cada vez mais aptas e aptos para construir e assumir outra sociedade onde o diferente seja aceito e seja livre.

Juntas, diferentes e iguais, convivendo com a natureza à qual respeitamos, em luta e com os braços abertos na grande acolhida ecofeministas pela vida que FORTALEÇAMOS nossa identidade de Mulheres Amazonenses e Amazônidas, Negras, Indígenas e Latino-americanas. Nosso alimento é a Resistência, a Esperança e a Alegria!”

Nossas lutas de ontem, nossas lutas de hoje não cessam e não serão silenciadas. São exercícios de liberdade.

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